30 junho 2008

SONHO DIFÍCIL

Brasileiras da vida



Para realizar seu trabalho de graduação, Carine Carvalho Arruda passou muitas noites acompanhando o percurso de prostitutas brasileiras nas ruas de Lausanne (Suíça). Seu curso de Ciências Sociais representou muito mais do que um aprendizado sobre o que significa sobreviver numa zona de prostituição.

Sua mais importante descoberta conclui que a maioria das mulheres escolheu o meretrício para fugir da precariedade do mercado de trabalho no Brasil e como forma de concretizar seus sonhos. Porém, muitas vezes eles não se concretizam... A história já é nossa velha conhecida. A menina chega à Suíça com a expectativa de arrumar um bom emprego de garçonete e ajudar financeiramente a família que ficou no Brasil. No aeroporto, seu passaporte é confiscado e ela é levada a um bordel, trancada em um quarto e passa a vegetar numa triste existência como escrava sexual.

"Observei uma relação muito forte entre a precariedade do trabalho feminino no Brasil e a decisão de imigrar e entrar na prostituição", conta Carine ao jornalista da Swissinfo que assina esta matéria, durante o encontro que tiveram em um café de Lausanne (foto). Ela sabe o que diz: aos 25 anos, esta jovem brasileira acaba de formar-se em Ciências Sociais pela Universidade de Lausanne.

O problema é sério e existe, ninguém nega. Os vários inquéritos realizados pela polícia helvética e os registros nas ONGs de proteção à mulher podem testemunhá-lo. Porém, o mundo do meretrício é muito mais complexo do que parece à primeira vista. De fato, milhares de estrangeiras vêm à Europa já sabendo que irão exercer a profissão mais antiga do mundo. Elas apenas querem uma alternativa para a situação econômica que existe em seus países de origem.

Como pesquisa de campo para o trabalho de graduação, Carine detalhou o percurso de sete prostitutas brasileiras com idades entre 25 e 52 anos. "A idéia do meu projeto de graduação era acompanhar as trabalhadoras do sexo brasileiras que migraram para o cantão de Vaud e tentar entender porque imigraram e porque entraram na prostituição", explica. O titulo da tese dela já diz tudo: A difícil vida fácil.

Nascida em Fortaleza, Estado do Ceará, Carine chegou aos 17 anos à Suíça em fevereiro de 2000, acompanhada pela irmã gêmea e pela mãe, que havia se casado com um suíço. A família foi viver na pequena comuna de Daillens, com apenas 700 habitantes, no cantão de Vaud (região Oeste do país). Em pouco tempo Carine aprendeu o Francês e integrou-se à sociedade suíça. Depois de concluir o ensino secundário, com as melhores notas — ela e sua irmã até receberam um prêmio de integração —, Carine decidiu estudar Ciências Sociais. A outra gêmea, Ciências Políticas.

O interesse por questões feministas teve a inspiração da mãe, que havia sido líder sindical em Fortaleza, e também foi motivado pelo choque vivido ao descobrir como a mulher brasileira era vista na Suíça. "Lembro-me de que o chefe de um ex-namorado perguntou-lhe, brincando, se ele havia checado entre as minhas pernas para ver se eu era realmente uma mulher", conta indignada. Na memória, há também piadas e comentários, todos relacionados à imagem supostamente erótica e submissa da mulher brasileira.

Logo ao chegar à Universidade, Carine iniciou sua pesquisa sobre o tema. Durante uma palestra, ela conheceu a Fleur de Pavé ("Flor da Calçada"), uma ONG suíça integrada por pessoas que vivem da prostituição ou já a abandonaram, além de assistentes sociais e voluntárias, cujo principal objetivo é ajudar mulheres que estão na profissão do meretrício.

Além de acompanhar as trabalhadoras do sexo nas repartições públicas, hospitais e centros sociais, a ONG também mantém um ônibus nas ruas da zona de prostituição de Lausanne, onde as mulheres podem entrar para receber material descartável, tomar um café e obter informações sobre questões ligadas à saúde, à segurança e ao sistema social vigente. O ônibus também funciona como correio, devido ao fato de muitas prostitutas se encontrarem em situação ilegal no país e não terem um endereço fixo.

Carine é há três anos voluntária na Fleur de Pavé. No início, ela tentou simplesmente acompanhar as prostitutas nas ruas, mas percebeu que era mais fácil ter contato com elas através da ONG. "Fico duas vezes por mês no ônibus e participo também de uma reunião mensal", descreve. A experiência também mostrou-se fundamental para o seu trabalho de graduação. "Foi lá que consegui conquistar a confiança dessas pessoas. A grande surpresa para mim foi encontrar tantas brasileiras, muitas delas com a minha idade. Com o tempo, eu já conhecia a história pessoal de cada uma", lembra-se.

A primeira constatação que fez foi de que os clichês — a impressão de que toda mulher é forçada a se prostituir — tinham que ser relativizados. O meretrício não é uma via de uma só mão. "Existem várias modalidades de se prostituir na Suíça, o que existe em comum em todas elas é a mobilidade. As pessoas podem começar a prostituição e parar depois de um tempo para fazer outros trabalhos, podem trabalhar um dia num tipo de estrutura como cabarés, salões de massagens e depois voltar às ruas. O que as caracteriza a todas é a precariedade e a ilegalidade", analisa Carine.

Como percebeu a cientista social, a maioria das prostitutas brasileiras vem à Suíça como turistas e trabalham de forma ilegal, para juntar o máximo de dinheiro possível. Como as batidas policiais nas ruas de Lausanne são freqüentes, quando pegas, elas são geralmente expulsas do país. Porém, muitas retornam depois de algum tempo. "Elas acabam criando uma espécie de rede social, que trazem outras como elas para cá. Uma passa a experiência à outra", revela a recém-formada cientista. E acrescenta: "O medo marca a experiência delas".

Cafetões? Carine afirma que nunca escutou, durante seu trabalho, que as brasileiras tivessem alguém que vivesse da sua prostituição, explorando-as ou atuando como "dono" de prostíbulo. "Elas trabalham, em grande parte, de forma independente". Mas as condições de vida na Suíça acabam surpreendendo muitas delas. "As trabalhadoras do sexo brasileiras vêm para cá achando que irão ganhar muito dinheiro, porém descobrem rapidamente que o custo de vida aqui é altíssimo e que têm que pagar pela moradia, alimentação e para se manterem bonitas. O resultado é que precisam 'trabalhar' ainda mais", resume.

Outros fatores fundamentais para explicar a condição das prostitutas brasileiras, segundo Carine, é a situação familiar. "Quase todas têm filhos que ficaram no Brasil com suas famílias. Dar uma vida digna a eles é o que mais as motiva a agüentar essa situação. Ao mesmo tempo, existe uma pressão muito grande sobre essas mulheres para que elas enviem dinheiro para casa. Algumas até perdem o contato quando não conseguem mandar o suficiente", descreve.

Uma grande surpresa para Carine no seu trabalho com as prostitutas brasileiras foi descobrir os códigos sociais que imperam no meio. Em primeiro lugar, o silêncio velado das famílias no Brasil. "Elas não falam abertamente sobre o que seus parentes estão fazendo na Suíça, mas eles sabem do que se trata, e dependem, muitas vezes, desse dinheiro", diz.

Acreditar que as brasileiras associam sua situação pessoal a aviltamento, desonra ou rebaixamento também é errôneo. "O status da prostituta é muito ambíguo: se por um lado elas têm vergonha do que fazem, por outro consideram que estão exercendo um trabalho como outro qualquer e que são profissionais no que fazem. A prostituição é uma estratégia para alcançar seus objetivos", sintetiza Carine.

Segundo ela, pessoas com as mais variadas profissões vêm a Lausanne tentar sua sorte nas ruas. "Já encontrei pessoas bem humildes, mas também outras com profissão definida, como uma cabeleireira e até mesmo uma advogada", recorda-se. A idéia de todas é economizar dinheiro e retornar ao Brasil para montar um negócio próprio.

Carine concluiu sua tese e está com o diploma embaixo do braço. Algumas associações de brasileiros na Suíça têm convidado a jovem para dar palestras e explicar o que descobriu ao escrever A difícil vida fácil. Assim, ela agora trabalha como colaboradora científica na Universidade de Lausanne e também no escritório de igualdade de sexos. Sua meta é prosseguir os estudos e obter um Mestrado. O tema não seria diferente: "Se possível, gostaria agora de entender como as trabalhadores do sexo brasileiras vivem a sua situação de mães e como é o relacionamento com seus filhos", antecipa.

Entre a vida profissional e a pessoal, Carine ainda encontra tempo para passar as madrugadas no ônibus da ONG Fleur de Pavé. Com sua experiência, a cientista social cultiva a impressão de ter descoberto o que motiva tantas compatriotas a permanecerem nas ruas de Lausanne, uma constatação que tem também algo de trágico. "A grande conclusão do trabalho é que, acima de tudo, elas não são vítimas, mas pessoas que têm um projeto de vida e fazem tudo para alcançá-lo. A estratégia que elas elaboraram para isso foi entrar na prostituição e emigrar", finaliza.


*por Alexander Thoele para o portal Swissinfo (texto e imagens)
www.swissinfo.org/por/swissinfo.html

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