O buraco da agulha*
Noite de 31 de dezembro. O telejornal saía do ar por alguns instantes para dar espaço ao intervalo comercial. A última imagem era a de dois garis que, abraçados, olhavam para a câmera da reportagem e desejavam a todos um "Feliz Ano Novo".
Por um descuido técnico, desses que já derrubaram ministros no auge do prestígio, o microfone do âncora permaneceu ligado. Enquanto a vinheta de passagem se movimentava na tela, em milhões de lares ouviu-se o comentário jocoso do repórter: "Que merda, dois garis, a escala mais baixa de trabalho, desejando felicidade!" -- foi o que disse Bóris Casoy.
Não foi um deslize ético porque o profissional não teve a intenção de se manifestar no ar, publicamente, mas o comentário é muito revelador sobre a visão de mundo de muitos que, absortos numa vida pautada por valores materialistas, se alienam do sentido essencial da vida.
Para pessoas como o repórter, só um alienado seria capaz de sentir alegria e cultivar esperanças vivendo nas condições modestas em que vivem os garis. Há quem, isolado pelos muros do conforto, mimado em seu universo de luxo excedente, perca a capacidade de perceber a beleza das coisas pequenas.
Aquele gari deve ter filhos, por exemplo, e a alegria de revê-los em casa, após uma jornada extenuante de trabalho, justifica existencialmente pelo menos uma parte de suas privações. Quem sabe a métrica com que se mede o amor? Não tenho motivos para considerar aquela uma alegria menor do que as minhas, que ganho o meu sustento de modo menos árduo.
Como eu, como você, aquele senhor que limpa as ruas torce por um time de futebol, visita seus pais aos domingos, tem amigos na rua onde mora e todos aqueles vínculos simbólicos e afetivos que aliviam o fardo da existência e alimentam o espírito -- com um significado sempre renovado para esse mistério que se chama Vida.
Extrair prazer das coisas simples é o tesouro dos pobres. Há neles uma demanda de realização humana que, de tão reprimida e negada, se mobiliza ao menor indício de gozo. Por isso, é tão fácil se perder desses vínculos gratuitos com a graça quando se alcançam as distrações do conforto.
É o "buraco da agulha", na metáfora do profeta nazareno.
*Ricardo Alcântara é escritor e publicitário. Imagem: Needle's Eye -- formação rochosa do Custer State Park, South Dakota, USA, em www.gdargaud.net --, sob a qual espreme-se o fio da Needle's Highway
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06 janeiro 2010
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