22 setembro 2015

ÚNICA CHANCE: PARTIR


Uma crise sem nome


O homem de joelhos olha um ponto indefinido no horizonte e no futuro, após atravessar por baixo a barreira de arame farpado. Seu rosto possui uma expressão antiga, como as representações em cerâmica dos reis assírios, da antiga Mesopotâmia, preciosas relíquias destruídas pelo Estado Islâmico. Absorto no olhar investigador, ele parece indiferente à menina que chora desesperada, talvez porque os grampos do arame feriram seu corpo frágil.

A mãe também já conseguiu livrar-se da barreira e tenta consolá-la, acariciando-a com a mão direita, enquanto sustém no braço esquerdo o filho pequeno, um menino a ponto de cair. Do outro lado da cerca, um rapaz suspende os arames, a expressão aflita. Teme ser retido, antes da sua travessia. O rosto possui os mesmos traços dos povos arcaicos, as civilizações que nos legaram a maior parte do saber.

O parágrafo acima não se trata de um exercício de descrição, daqueles que fazíamos na quarta série do primário, olhando imagens toscamente coloridas. Trata-se de uma das milhares de fotos que todos os dias aparecem nos jornais e na internet, algumas tão comoventes que mudam o sentimento das pessoas em relação ao drama vivido pelos que tentam fugir da guerra, perseguição e pobreza, no Oriente Médio e na África.

São migrantes, refugiados ou clandestinos? Perde-se tempo buscando a palavra certa para defini-los, evitam reconhecer que se trata de refugiados, pessoas buscando refazer suas vidas, longe da pátria insalubre. Países como a Inglaterra e a França, que colonizaram a África e o Oriente Médio, enriquecendo às suas custas, fecham as portas e tentam barrar a entrada dos indesejados. Esquecem quando ocuparam o mundo inteiro com seus exércitos, sem pedir licença nem atravessar cercas de arame.

As fileiras de homens, mulheres e crianças se deslocando a pé também lembram os retirantes nordestinos fugindo à seca. A dor, a desolação e a miséria são as mesmas. Os nordestinos caminhavam dentro de um território chamado pátria, falavam o mesmo idioma, mas nem por isso estavam imunes à rejeição, ao desprezo e ao preconceito.


Dos campos de concentração cearenses da década de 1930, às propostas de barreiras migratórias em alguns estados do Sul e Sudeste, os fugitivos da seca enfrentaram barreiras reais e simbólicas, tão intransponíveis quanto as cercas de arame farpado do leste europeu. E toda vez que eles mesmos buscaram soluções para a miséria, em aglomerados como os de Canudos e Caldeirões, foram reprimidos pela força, mortos e destroçados, como se representassem ameaça à ordem estabelecida pelos mais poderosos.

Essa relação se alterava bruscamente quando havia interesse em mão de obra barata, semiescrava ou escrava, como no ciclo da borracha amazônica, da construção civil em São Paulo, da edificação de Brasília e da ponte Rio - Niterói, na expansão de fazendas no Mato Grosso e Goiás. Nesses casos, fazia-se um trabalho de aliciamento dos sertanejos analfabetos e miseráveis através de folhetos de cordéis, violeiros repentistas e de pessoas treinadas para seduzir com promessas de enriquecimento fácil. A realidade se revelava bem distinta do sonho, o tráfico escravo da África para o Brasil, em navios negreiros, mudava-se em tráfico do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte, em barcos a vapor e caminhões pau-de-arara.

Quando nosso tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Nós ainda morávamos na fazenda dos Inhamuns. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que os adultos nunca me contavam.

Ofereceram ao tio o que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca, enquanto a mãe acendia o fogo e preparava uma refeição quente. Antes, o tio não comia nenhum alimento à base de leite. O sofrimento rebaixara seu orgulho. O Sul não existe – ele falou enquanto mastigava –, é pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.

Disse que tinha chegado ao Mato Grosso, trabalhava numa fazenda. Os grileiros o tornaram escravo. Tomaram suas roupas e até o fumo do cigarro controlavam. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Teve malária e pensou não escapar com vida. Quando sentiu que ia morrer, fugiu por dentro da mata.

Fluxo ou crise migratória? Chega um tempo em que a única chance de sobrevivência é partir. Não tem que ver com nomadismo, expansão de território, busca de um guru espiritual. Foge-se das causas da miséria. E esse trânsito muda a feição do mundo. Foi sempre assim, desde o começo da história. E não adianta criar barreiras, interdições, porque nada contém essa força em deslocamento. O Brasil mudou graças a ela e a Europa certamente mudará.

Para melhor, tenho certeza.


*Ronaldo Correia de Brito é escritor, médico e dramaturgo.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br 
Imagens: Darko Vojinovic/AP e em www.imagereflex.com

15 setembro 2015

COLAPSO EM (MENOS DE) 40 ANOS


O Futuro Climático da Amazônia*



Lançado há um ano em São Paulo, o relatório “O Futuro Climático da Amazônia” conclui 
que a redução do desmatamento não basta para garantir as funções climáticas do bioma

A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente. Mas em menos de 50 anos, encontra-se ameaçada pela ação de humanos. Existe um paralelo entre a lenda grega do calcanhar de Aquiles e a importância da grande floresta amazônica para o clima da Terra.

Como o herói grego, a Amazônia – essa assembleia astronômica de extraordinários seres vivos – deve possuir algum tipo de capacidade que a tornou uma guerreira invulnerável, por dezenas de milhões de anos, resistindo aos cataclismos geofísicos que assolaram o planeta. Os achados quanto ao poder sobre os elementos da grande floresta, do condicionamento atmosférico umedecedor, passando pela nucleação de nuvens, à bomba biótica, revela e sugere mecanismos elaborados de invulnerabilidade. Onde estaria então o ponto fraco?

Resposta: na degradação e no desmatamento. Como a grande floresta presta um rol determinante de serviços para a estabilidade do clima local, regional e global, sua ruptura física significa levar a “grande guerreira” à derrota nesses papéis, a exemplo da ruptura do calcanhar de Aquiles, que o fez perder a guerra. A flecha do inimigo é a motosserra, o correntão, o fogo, a fumaça, a fuligem e outros fatores de origem humana que surgiram do uso errado, descontrolado e terrível das invenções do Antropoceno, a nova era em que a humanidade tornou-se uma força geológica capaz de mudar a face do planeta.

A perturbação antropogênica, embora já extensiva e provavelmente demasiada, é o fator mais imprevisível numa projeção sobre o destino final da Amazônia. A razão simples é que temos o livre arbítrio. Se escolhermos continuar no ritmo “deixa-como-está-para-ver-como-é-que-fica” (business as usual), e principalmente se optarmos por não recuperar os estragos infligidos à grande floresta, a teoria sugere que o sistema amazônico pode entrar em colapso em menos de 40 anos.

Os limiares de desmatamento nos quais as simulações indicavam ruptura do sistema climático atual estão se aproximando. Os efeitos locais e regionais no clima já estão sendo observados muito antes do esperado, especialmente ao longo das zonas mais devastadas, mas também nas áreas mais afastadas que dependiam da floresta para sua chuva.

O futuro climático da Amazônia chegou. A responsabilidade é nossa, sobre o que faremos com esse conhecimento. Portanto, a decisão urgente e já tardia pela intensificação da ação não pode esperar, se é que existe ainda chance de se reverter o quadro ameaçador. O investimento feito na atividade científica na Amazônia rendeu frutos de informação rica, fundamentada e disponível. A responsabilidade é nossa sobre o que faremos com esse conhecimento.

Para contemplarmos a dimensão do que precisa ser feito em relação ao futuro climático da Amazônia (e como consequência, da América do Sul), imaginemos um futuro próximo no qual o Brasil fosse atacado por uma poderosa nação inimiga com uma tecnologia secreta que emprega ondas perturbadoras emitidas por satélites para dissipar nuvens e, assim, reduzir as chuvas. A nação inimiga teria interesses comerciais ameaçados pelo sucesso do setor agrícola brasileiro.

Sua arma mata-chuvas serviria para minguar as plantações que com eles competem, quebrando safras e fazendo os preços internacionais explodirem. Informados pelo nosso serviço secreto dos malfeitos daquele país sobre o nosso, qual seria a reação dos agricultores brasileiros? Qual seria a reação da sociedade e do governo? Com toda a humilhação que o ultraje impõe, não precisamos de clarividência para suspeitar que a reação seria imediata e poderosa.

Nas grandes ameaças a uma nação, as forças militares entram logo em prontidão. Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, os Estados Unidos decidiram ser necessário entrar na Segunda Guerra Mundial. Em poucos meses montou um “esforço de guerra”, em que fábricas de automóveis passaram a produzir tanques e aviões de guerra, e outras fábricas não bélicas passaram a produzir munição, armamentos e outros materiais e equipamentos requeridos. 

Até à Amazônia chegou aquele esforço de guerra, com os soldados da borracha. Sem tal esforço concentrado e extraordinário, os Aliados não teriam vencido.

Saindo da ficção e voltando à realidade, vemos que o ultraje contra o Brasil está em pleno curso sem qualquer envolvimento de nação estrangeira. Em uma guerra não declarada, nos últimos 40 anos centenas de milhares se dedicaram a exterminar as florestas. A remoção das florestas, ameaçando as chuvas e o clima, não derrotaria somente a competitiva agricultura; falta (ou excesso) de água afeta a produção de energia, as indústrias, o abastecimento das populações e a vida nas cidades. 

Mas, diferentemente da Europa e dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, nós estivemos e permanecemos praticamente inertes em relação aos ataques sofridos, deixando que sigam, ano após ano, a destruir o berço esplêndido. Quem são os que atentam contra o bem-estar da nação? Por que a sociedade não se levantou e nosso Exército não foi acionado em nossa defesa?

Para enfrentar a gravidade da situação, precisamos de uma mobilização semelhante a um esforço de guerra, mas não direcionada ao conflito. Em primeira instância é urgente uma “guerra” contra a ignorância, um empenho sem precedentes para o esclarecimento da sociedade, inclusive e especialmente daqueles que ainda se aferram ao grande erro de acreditar ser inócua a devastação das florestas. 

Entre eles, os que manejam motosserras, tratores com correntão e tochas incendiárias, e os grupos que formularam políticas públicas, financiaram, controlaram e deram cobertura legislativa, legal e propagandística aos comandos da devastação. Contudo, apenas uma minoria da sociedade esteve e ainda está diretamente envolvida na destruição de florestas.

E é essa minoria que empurra a nação na direção do abismo climático. A esperança é de que a eliminação da ignorância quanto à função essencial das florestas na geração do clima amigo haverá por si só de participar como vetor na conversão de desmatadores em protetores, e quiçá, até em restauradores das florestas. Muitos exemplos já existem onde essa conversão ocorreu, com grandes vantagens para todos os envolvidos. 

Enquanto não ultrapassarmos o ponto de não retorno, existem umas poucas frestas de oportunidade para a ação reparadora. Este é o momento para engajar aquele vigoroso e saneador esforço de guerra na tentativa de reverter o desastre climático decorrente da destruição da floresta oceano-verde. Nessa direção, várias tarefas se impõem:

1) Popularizar a ciência da Floresta: saber é poder e  quem conhece protege.
É vital fazer com que os fatos científicos sobre o papel determinante da floresta para o clima amigo e o efeito do desmatamento na geração do clima inóspito cheguem à sociedade e tornem-se conhecimento corrente. Todos os esforços devem ser feitos para simplificar a mensagem sem deturpar-lhe a essência. Antes de tudo, deve-se falar para a sensibilidade das pessoas.

2) Zerar o desmatamento no curto prazo é indispensável, se quisermos conter dano maior ao clima.
É preciso erradicar vigorosamente a complacência e a procrastinação com a destruição. Um nível adequado de rigor compara-se com o tratamento dado ao tabaco. Constatados os males ao ser humano e os prejuízos econômicos à sociedade, uma série de medidas foram adotadas para desestimular o tabagismo.

No que diz respeito ao desmatamento no Brasil, várias providências do governo federal iniciaram esse processo de controle e desestímulo. Resultados significativos foram alcançados. Mas é preciso ir mais fundo e chegar à raiz do problema. Ampliar as políticas do Executivo, mobilizar a sociedade para neutralizar ações desagregadoras do Legislativo, como a anistia dada a desmatadores no novo Código Florestal Brasileiro. 

Infelizmente, as discussões em torno do Código Florestal não incluíram as consequências climáticas do uso do solo. Uma situação extraordinária requer medidas extraordinárias. Sempre é tempo de rever leis para adequá-las às demandas da realidade e da sociedade. Somente multar desmatadores, que mais adiante serão anistiados pela burocracia ou pelo Congresso, é receita de fracasso.

Outras vulnerabilidades do programa de controle do desmatamento incluem o estímulo de ciclos econômicos, a demanda crescente de mercados por madeira e produtos agrícolas, a cobiça por terras e os vetores representados por estradas, hidrelétricas e outros programas de desenvolvimento, cujas debilidades de planejamento fomentam a invasão e ocupação de áreas florestadas. Para que o desmatamento seja efetivamente zerado, como é indispensável para conter dano maior ao clima, todos esses buracos precisam ser tapados com mobilização e articulação da sociedade e governo, estratégia, inteligência, visão de longo prazo e sentido de urgência.

3) Acabar com o fogo, a fumaça e a fuligem: chamem os bombeiros!
Todas as formas de ignição originárias de atividades humanas sobre a floresta precisam ser rigorosamente extintas. O fogo em áreas florestais, pastos e áreas agrícolas, próximas ou distantes da Amazônia, é um problema grave. Quanto menos fontes de fumaça e fuligem existirem, menor o dano à formação de nuvens e chuvas, portanto menor o dano à floresta oceano-verde.

Dada a cultura do fogo ainda prevalente no campo, essa não será uma tarefa fácil, porém ela é fundamental. Mas voltemos à comparação com o tabaco. Durante décadas, a indústria mascarou a realidade sobre os danos do fumo à saúde. Empregou elaboradas estratégias e muitos recursos no embaralhamento cognitivo, buscando desmerecer a ciência e confundir a sociedade.

Mas a verdade triunfou. E algo que parecia impossível tornou-se tendência mundial irreversível. O mesmo percurso de banimento em relação ao fogo é facilitado pela existência de muitas alternativas à queima que podem ser empregadas com vantagens pelos produtores.

4) Recuperar o passivo do desmatamento: a fênix ressurge das cinzas
Embora zerar o desmatamento seja tarefa obrigatória, inescapável e há muito devida, somente isso já não é suficiente para reverter as ameaçadoras tendências climáticas. É preciso confrontar o passivo do desmatamento acumulado, começar a pagar o principal da enorme dívida ambiental com a floresta. Embora o esforço de reflorestamento seja desafiador, é o melhor - e talvez único - caminho para desviar um risco maior em relação ao clima.

Mas como reconstruir uma paisagem devastada? Se fosse uma paisagem urbana, seria o caso de se retrabalhar com as estruturas e edifícios que demandariam penosa reconstrução, tijolo a tijolo, um esforço de anos. Já estruturas inertes da natureza, como solos, rochas e montanhas levam milhares, milhões ou até bilhões de anos para se compor ou recompor, fruto da ação de lentas forças geofísicas.

E a paisagem viva? Se a vida anterior não tiver sido extinta, isto é, se houver propágulos, esporos, sementes, ovos, pais e seus filhotes, uma força misteriosa e automática de reconstrução entra em ação. Os “tijolos” biológicos são os átomos, que unem-se nas moléculas, compõem as substâncias que constroem as células, articulam-se nos tecidos, aglomeram-se nos órgãos, constituem os organismos, povoam os ecossistemas, interagem nos biomas e cuja soma total é a biosfera.

Para uma ideia prática do que está implícito nesta ordem viva encadeada e automática, imaginemos como seria se pudéssemos dispor de bens modernos (da tecnologia humana), da mesma forma que o faz a natureza. Poderíamos encomendar um automóvel (espécie) que viria em um módulo desenvolvedor (semente). Colocado em um vaso ao sol e regado por algumas semanas, cresceria o veículo.

Parece difícil? Acontece que essa tecnologia já existe, funcionando a todo vapor nos ecossistemas da Terra, desde a sua origem. Uma árvore portentosa, cujas habilidades físicas e bioquímicas para existir e sobreviver beiram a ficção, saiu inteirinha de uma simples e minúscula semente, tirando do ar e da terra os materiais para se formar.

Na perspectiva do clima, precisamos regenerar tudo o que foi um dia alterado. Assim, a própria floresta nos oferece soluções mirabolantes para a reconstrução das paisagens florestais nativas, pois dispõe de engenhosos mecanismos para recompor-se a partir de sementes, ou cicatrizar-se, com o processo natural de regeneração das árvores em clareiras. 

Há uma coleção rica de espécies de plantas pioneiras que têm a capacidade de crescer em condições ambientais extremas. Essas plantas formam uma floresta secundária densa, criando, assim, condições para que a complexa e duradoura floresta tropical possa restabelecer-se por sucessão ecológica de médio e longo prazos.

Entretanto, quando a área desmatada é muito grande, o processo natural entra em falência por não conseguir fazer chegar ao solo descoberto as sementes das pioneiras. Aí torna-se necessário o plantio das espécies nativas. Se ainda houver chuvas, a floresta se regenerará nas áreas replantadas. Uma coleção de árvores plantadas é melhor que o solo exposto, entretanto ainda está longe de reconstituir em toda sua complexidade a parte funcional do ecossistema destruído.

Precisamos e devemos regenerar o mais extensivamente possível o que foi alterado. Somente a integridade do oceano verde original garantiu ao longo de eras geológicas a saúde benigna e mantenedora do ciclo hidrológico na América do Sul. É preciso usar a paisagem de modo inteligente, zoneando as terras por suas potencialidades, vulnerabilidades e riscos.

Mas essa recomposição florestal implicaria a reversão do uso do solo em vastas áreas hoje ocupadas, algo improvável na ordem atual. Não obstante, existem caminhos alternativos com chances de criar condições imediatas de aceitação. Trata-se de fazer um uso inteligente da paisagem, com aplicação de tecnologias de zoneamento das terras em função das suas potencialidades, vulnerabilidades e riscos.

A agricultura e outras atividades econômicas nas zonas rurais podem ser otimizadas, aumentando sua capacidade produtiva e liberando espaço para o reflorestamento com espécies nativas. Variados estudos da Embrapa mostram como intensificar a produção pecuária, reduzindo grandemente a demanda por área de pastos. Projetos como o Y Ikatu Xingu e Cultivando Água Boa demonstram como é possível a associação de interessados dos vários setores na recuperação de matas ciliares e outras valiosas ações de sustentabilidade.

O caos climático previsto tem o potencial de ser incomensuravelmente mais danoso do que a Segunda Guerra Mundial. O que é impensável hoje pode tornar-se uma realidade incontornável em prazo menor do que esperamos. A China, com todos os seus graves problemas ambientais, já trilha esse caminho e tornou-se o país que mais refloresta. Restaurar as florestas nativas é a melhor aposta que podemos fazer contra o caos climático, uma verdadeira apólice de seguro.

5) Governantes e sociedade precisam despertar: choque de realidade
Em 2008, quando estourou a bolha financeira de Wall Street, governos mundo afora precisaram de apenas quinze dias para decidir usar trilhões de dólares de recursos públicos na salvação de bancos privados e evitar o que ameaçava tornar-se um colapso do sistema financeiro. A crise climática tem potencial para ser incomensuravelmente mais grave do que a crise financeira, não obstante as elites governantes vêm procrastinando por mais de 15 anos tomar decisões efetivas que desviem a humanidade do desastre climático. E essa procrastinação parece piorar com o tempo, mesmo a despeito da disponibilidade de vastas evidências científicas e saídas viáveis, atraentes e criativas.

Na Amazônia, o retardamento decisório está nos prazos dilatados para metas e ações que deveriam ser urgentes, mas emperram na burocracia impenetrável e impeditiva. Encontra-se também na demora no financiamento de projetos alternativos e benéficos e, principalmente, na lenta apropriação dos fatos científicos sobre a importância das florestas para o clima. Ignorar soluções inovadoras, disponíveis e viáveis de valorização econômica das florestas é jogar o problema para a frente. 

O desmatamento zero, que já era urgente há uma década, ainda é colocado como uma meta a ser realizada em futuro distante. Muito diferente portanto dos 15 dias usados para salvar os bancos. As elites governantes ainda têm como mudar o curso dos acontecimentos. Por isso precisam ter a boa vontade e humildade de reconhecer o risco de colapso no sistema ambiental.

Vimos o primeiro esforço coerente e consequente para reduzir efetivamente o desmatamento na Amazônia brasileira ganhar momentum a partir de 2003, e seus resultados são visíveis, demostrando que é possível ir mais longe. Mas a despeito das auspiciosas iniciativas e também de promessas importantes em projetos de carbono, estamos muito longe daquele “esforço de guerra” requerido para enfrentar a degradação climática. 

Para avançar de maneira efetiva, outras iniciativas criativas e enérgicas são urgentes e necessárias. Suficientemente documentados pela ciência, as mudanças climáticas globais e os ameaçadores impactos regionais e locais do desmatamento metem o pé na porta fechada da inação política, colocando pressão crescente sobre tomadores de decisão. Se o conhecimento científico qualificado, ou o principio da precaução e o simples bom senso não lograram gerar reação adequada daqueles que detêm os meios financeiros e os recursos estratégicos, o choque das torneiras secas aqui, cidades inundadas acolá e outros desastres naturais há de produzir reação.

É necessário, desejável, viável e até lucrativo alterar o modus operandi da ocupação humana na Amazônia. Embora todas as cinco tarefas sejam requeridas para a regeneração e o restabelecimento funcional da regulação climática pela floresta, a novidade estaria em enfrentar o passivo de desmatamento com reflorestamento.

O esforço de guerra contra a ignorância é a melhor estratégia para harmonizar a sociedade em torno do objetivo comum de recuperar o tempo perdido, criando chances reais de evitarmos o pior dos desastres climáticos. Se, a despeito da montanha de evidências científicas, ainda não formos capazes de agir, ou se formos lentos demais, então é provável que tenhamos de lidar com um prejuízo incompreensível para quem sempre teve sombra e água fresca providos graciosamente pela grande floresta.

 A mítica floresta amazônica é imensamente maior do que a humanidade consegue ver nela. Vai muito além de um museu geográfico de espécies ameaçadas guardadas em unidades de conservação e representa muito mais do que um simples depósito de carbono, referenciado como massa morta nos tratados climáticos.

A floresta é um espetacular parque tecnológico da natureza, um complexo vivo que forma uma poderosa e versátil usina de serviços ambientais. Qualquer apelo que se faça pela valorização da floresta precisa recuperar esse valor intrínseco. É preciso despertar a capacidade de espantar-se diante do gigantismo da biologia tropical em todas as escalas, desde a manipulação dos ínfimos átomos e moléculas até a interferência nos oceanos e na atmosfera global.

O que vemos de ações humanas sobre a floresta amazônica revela enorme inconsciência, tanto dos que estão envolvidos na sua destruição, quanto dos que vagamente desejam sua proteção. Cada nova iniciativa em defesa da floresta tem trilhado os mesmos caminhos e pressionado as mesmas teclas.

Neste comportamento, insistimos no que Einstein definiu como a própria insanidade: “Fazer a mesma coisa sempre, de novo, esperando resultados diferentes.” O abundante conhecimento científico, assim como outras formas accessíveis de percepção e entendimento já nos permitem resolver problemas empregando uma nova abordagem – iluminada, integrativa, propositiva e construtiva.

Uma abordagem diferente, portanto, do pragmatismo reducionista e inconsequente que nos guiou até aqui. Análises sérias e abrangentes mostram numerosas oportunidades para a harmonização da presença e dos interesses da sociedade contemporânea com uma Amazônia viva e vigorosa, reconstituída em suas múltiplas capacidades.

Para chegarmos lá, é preciso compenetração e modéstia, dedicação e compromisso com a vida. Com os recursos tecnológicos disponíveis, podemos agregar inteligência à ocupação, otimizando um novo uso do solo que abra espaço para a reconstrução ecológica da floresta. Podemos também revelar muitos outros segredos ainda bem guardados da resiliente biologia tropical e, com isso, ir muito além de apenas compreender seus mecanismos.

Pioneira na percepção dessas possibilidades, a professora universitária, escritora e ativista Janine Benyus lançou em seu livro Biomimética, a inovação inspirada pela Natureza, uma revolução na ideia de conexão entre natureza e tecnologia. Apresentando a proposta de que os seres humanos deveriam copiar conscientemente o gênio da Natureza nas suas próprias criações, ela enuncia três princípios básicos para essa reaproximação dar certo:

1) a Natureza como modelo: estudar os sistemas da Natureza e então copiá-los ou inspirar-se nos seus designs e processos para resolver problemas humanos. Ex: uma célula solar inspirada por uma folha.

2)  a Natureza como medida: usar um padrão ou critério ecológico para julgar a “correção” de nossas inovações. Após 3,8 bilhões de anos de evolução, a Natureza aprendeu o que funciona, o que é apropriado e o que tem durabilidade.

3) a Natureza como mentor: um novo modo de ver e valorizar a Natureza, do qual surge uma era baseada não naquilo que podemos “extrair” do mundo natural, mas no que podemos aprender dele.

Respondendo a Einstein: “Não podemos resolver problemas empregando o mesmo tipo de pensamento que usamos ao criá-los.” O pragmatismo gerador de problemas não deve ser a saída para resolver esses mesmos problemas. 


Além desses três, a revolução da Biomimética reconhece uma série de outros princípios que guiam o funcionamento da natureza e que apresentam potencial para, se absorvidos pela civilização global, resolver grande parte dos problemas atuais.

Nesta proposta, uma lista curta desses princípios específicos listados por Janine Benyus constata que a natureza é propelida pela luz solar; utiliza somente a energia de que necessita; ajusta forma à função; recicla todas as coisas; recompensa a cooperação; aposta na diversidade; demanda conhecimento local; limita os excessos internamente; e aproveita o poder dos limites.
*Antonio Donato Nobre é pesquisador do Centro de Ciência
do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Conteúdo publicado em www.ccst.inpe.br e www.concurseirosocial.net 




07 setembro 2015

RICOS SÃO UNIDOS


"Vivemos em uma sociedade sem modelo"


Para o sociólogo e professor da Universidade de Roma, Domenico De Masi, que veio ao Ceará para participar do evento Futura Trends, atualmente "vivemos uma depressão mundial, por não termos um modelo social em que nos basear".

De Masi, 77 anos, se sente no dever de criar um novo modelo de sociedade para o mundo. Afinal, para ele, sem uma filosofia social e política não há equilíbrio nem futuro. E é assim que ele enxerga a sociedade na qual vivemos, a pós-industrial.

Para criar esse novo modelo-base, De Masi estudou sociedades precedentes e o que existe atualmente. A ideia é extrair o que há de melhor em cada uma delas. O exemplo do Brasil está incluso nessa criação inédita. De bom, ele quer aproveitar a sensualidade, a mistura de raças, de religiões, a alegria, a solidariedade e a estética brasileira.

Sua conexão com o País, há mais de 20 anos, é fortalecida pelos muitos amigos que aqui fez. Mas antes mesmo de desejar vir ao Brasil, em sua casa havia brasilidade, por intermédio da esposa, Susi del Santo. A amada estudava português, ouvia música e lia livros do Brasil.

Mas não foi a mulher quem despertou seu interesse em vir ao Brasil. Ao ganhar destaque na mídia brasileira, De Masi começou a receber muitos convites para realizar palestras. Bastou a primeira visita para que o interesse surgisse. Desde então, ele sempre volta. Somente a Fortaleza veio quatro vezes.

O POVO - Em sua biografia, o senhor cita uma frase de Sartre: “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. O que o senhor fez em sua vida para se tornar o que é?
Domenico De Masi - É um romance. Nasci em uma pequena cidade (Rotello), no sul da Itália. Não era a cidade dos meus pais. Meu pai (Plinio), como era médico, foi trabalhar em outra cidade. Mas, quando eu tinha oito anos meu pai morreu e voltei para a cidade dele com minha Mãe (Maria), em Perugia, que também era a cidade dela. Graduei-me em direito. Depois fui para a França, em Paris, fazer especialização em sociologia do trabalho. Em Paris tive grandes mestres como: Lewis Strauss, Sartre, Roland Barthes, Touraine, Friedmann. Retornei à Itália e fiz duas carreiras: numa grande empresa metalmecânica, como administrador, e na universidade, como professor. Ensinei, sobretudo, em Nápoles e em Roma. Depois criei a escola de formação administrativa, que se chama S3 Studium, que é de administração da criatividade (1978). Também escrevi muitos livros e viajei muito pelo mundo. 

OP - O senhor vem muito ao Brasil, há mais de 20 anos. Já há características brasileiras no senhor? Adquiriu-as de tanto vir?
DDM - O Brasil proporciona alegria, solidariedade, sensualidade, estética. Mas já tinha isto. Não queria vir ao Brasil. Não me interessava tanto o Brasil. Interessa-me muito pela Inglaterra, França, China. Mas minha esposa (Susi del Santo) me chamava muito para vir. Era um sonho dela. Acredito que em uma vida precedente ela, provavelmente, deve ter vivido no Brasil. Ela lia e estudava a língua portuguesa, escutava música brasileira, lia a literatura brasileira. Minha casa tinha muito do Brasil.

OP - E quando foi a primeira vez que veio ao País?
DDM - Fiz uma entrevista, em uma viagem de um repórter ao mundo, para as Páginas Amarelas da revista Veja. Depois de publicada essa entrevista, comecei a receber muitos convites. Publiquei meu primeiro livro no Brasil pela editora José Olympio, A emoção e a regra (1999). Depois publiquei o segundo, que se chamava O futuro do trabalho (2001). Fui convidado a vir ao Brasil, no começo da década de 1990, por dois prefeitos: Lídice da Mata (que administrou Salvador de 1993 a 1996) e o prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro (também de 1993 a 1996). Então, vim pela primeira vez com minha esposa e com um amigo arquiteto. Desde então fui sempre convidado a voltar ao Brasil. Na segunda vez, vim sozinho. Nesta ocasião, conheci o Oscar Niemeyer. Vim para o enterro do Oscar (2012). Mas, então, todos os anos eu faço, na Itália, em Ravello um festival internacional de música sinfônica, música popular, literatura, orquestras de todas as partes do mundo. A cada ano foram aparecendo muitos brasileiros: Ivo Pitanguy (cirurgião plástico), Affonso Romano de Sant’Anna (escritor), Marina Colasanti (escritora e jornalista ítalo-brasileira), José Serra, Cristovam Buarque, Roberto D’Ávila (jornalista), Pérsio Arida (economista), Fernando Henrique Cardoso. 

OP - O senhor diz no seu livro que o futuro chegou e que o Brasil faz parte desse futuro. Mas a que modelo vamos chegar analisando a situação do País atualmente?
DDM -Nesse momento estamos em uma espécie de depressão mundial. A Itália está depressiva, o Brasil e a China também, a América está depressiva. Como é possível que tantos países que tiveram um forte incremento do Produto Interno Bruto vivam essa depressão mundial? O motivo está no início da história. Criou-se uma sociedade sem modelo anterior. O Sacro Império Romano, de Carlos Magno, tinha o evangelho; quando se criou o Estado Moderno Liberal, tinha o modelo de Montesquieu; a Rússia soviética tinha o de Marx. Havia um modelo inicial e depois a realização social e política dele. Nossa sociedade pós-industrial não tem. É uma grande confusão em que nós vivemos. Confusão cria depressão. Depressão cria senso de crise. Quando vivemos senso de crise, não projetamos nosso futuro. Por exemplo, agora, no Brasil, há sensação de crise e não se projeta o futuro. Qual é o futuro do Brasil? Não se sabe. 

OP - Quem deve criar um modelo de futuro?
DDM - O modelo é criado por intelectuais. Sou intelectual e também tenho o dever de procurar um modelo para o futuro. Busquei entender os modelos criados até hoje para a humanidade e temos 15: grego, clássico, cristão, protestante, muçulmano, iluminista, liberal, todos esses do passado. Temos os atuais: América Latina, China, Japão, muçulmano, do norte da Europa, do sul da Europa, o pós-industrial dos Estados Unidos e a América do Brasil. O modelo do Brasil é tão importante quanto os outros modelos, não o melhor.

OP - O Brasil é um estado laico, mas de cultura muito cristã. Desta forma, o Cristianismo não acaba se tornando um modelo para o País?
DDM - O Cristianismo do Brasil não é o mesmo da Itália, da Inglaterra. O brasileiro tem foco humanista. A religião aqui é menos sobrenatural e mais natural. Quando veio o Papa Francisco aqui, fez uma grande missa (Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em 2013), em Copacabana. Creio que foi a missa mais corporal que já existiu, porque as freiras dançavam. Talvez elas tenham feito até amor naquele dia, de repente, com algum padre. Essa é a religião brasileira, é uma religião muito corporal. Porque, como disse Chico Buarque, “ao sul do Equador não há pecado”.

OP - Quais são suas crenças?
DDM - Sou ateu. Creio que Deus é criação do homem. Penso que nós temos essa visão de placebo: somos mortais e criamos um mundo imortal; sofremos e precisamos criar um mundo feliz. Somos conflituosos e queremos criar harmonia. Minha filha é um pouco budista e ateia, a Mara. A Barbara é ateia. A Mara não batizou os filhos, mas eles quiseram. Há algumas semanas, perguntei ao meu neto maior, Eduardo: ‘Mas tu vai à missa aos domingos?’. Ele disse que não. Então eu perguntei: ‘Então porque você se batizou?’. Ele disse que naquele tempo parecia ser importante e agora não. Mas creio que não ser religioso é perigoso se você não tem a ciência. A segurança vem pela razão ou pela emoção. Não pode ter o vazio, a falta de modelo. Por exemplo, minha mãe não estudou, porque mulheres não estudavam, mas era de uma família muito culta. O pai era médico. Ela não tinha conhecimento científico forte, tinha forte fé. Como ela ficou viúva muito cedo, com dois filhos, se ela não tivesse tido a fé, não teria sobrevivido. É muito melhor haver aporte científico que religioso. Melhor ter aporte racional do que emotivo. Precisamos criar uma sociedade que inclua racionalidade e emotividade. No passado, não houve equilíbrio. Dominou emotividade, na época rural, ou racionalidade, na industrial.

OP - O senhor diz também que o progresso da sociedade só pode ser medido pela qualidade de vida da população. Dessa perspectiva, como o senhor analisa o Brasil?
DDM - Tem o Brasil rico e o pobre. O Brasil rico é igual a todos do mundo. Ricos vivem do mesmo modo. Tinha um filósofo francês, Marc Augé, que falava que existiam os “não-lugares”. Ricos vivem em não-lugares. E eles são mais unidos, porque têm medo dos pobres, porque existe uma diferença enorme de número. Todos os anos a revista Forbes faz a lista dos mais ricos. Na última, os primeiros 85 ricos tinham a riqueza de 3,5 bilhões de pobres. Esses 85 têm medo dos pobres, então eles são muito unidos. Pobres são todos diversos. O fato positivo é que são todos diversos e há várias culturas. Entre o pobre do Brasil, da África, da China, há diferença enorme. Mas esse fato positivo é também negativo, porque não são unidos como os ricos. Então, eles se tornam sempre mais pobres. Os ricos conseguiram impor a filosofia deles ao mundo inteiro, a filosofia do neoliberalismo. Veja o que há no Brasil, um paradoxo. Um governo de esquerda, mas o ministro da Fazenda é neoliberal.

OP - Hoje, fala-se muito em uma crise política que afeta a economia. Há um lado positivo nesta crise?
DDM - Sim. Pela primeira vez os corruptos estão sendo presos. Isso é um momento maravilhoso para o Brasil. No nível externo, o Brasil é uma anomalia, é uma exceção mundial, porque é um governo de esquerda e quase o mundo todo é de direita. O mundo não pode tolerar isso. Nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, a economia foi organizada e se iniciou uma política de distribuição de renda. Depois que organizou, superou a inflação, veio Lula e distribuiu a riqueza. 18 milhões de subproletários viraram proletários, 12 milhões de proletários viraram pequena burguesia, oito milhões de pequena burguesia se tornaram média burguesia. Foram criadas universidades nas zonas pobres, além de providências sanitárias etc. Houve somente dois países onde aconteceu ascensão dos pobres, nos últimos 10 anos: China e Brasil. Mas a China não é uma democracia. A particularidade do Brasil é que a distribuição da riqueza aconteceu em uma democracia, então, isso é uma grande exceção no mundo. Em países neoliberais, aumenta-se sempre a distância entre ricos e pobres. Agora, todo mundo do neocapitalismo tenta combater essa democracia brasileira e tenta colocar de novo o neoliberalismo aqui. Sobretudo nesse movimento contra Dilma.

OP - E nisso se cria o pessimismo que se vê hoje no País?
DDM - Para os ricos seria uma coisa boa a distribuição da riqueza, porque não teriam necessidade de segurança pessoal. Mas isso levaria à ideia de que teriam que pagar mais imposto. Os ricos italianos pagam o dobro de impostos que aqui no Brasil, mas nenhum tem guarda pessoal. O rico italiano preferem dar dinheiro ao Estado, o Estado distribui aos pobres, se reduz a violência e, portanto, estão mais tranquilos. No Brasil, preferem pagar guarda pessoal. O País parou na espera de destruir Dilma. O único objetivo neste momento do capitalismo brasileiro não é de criar bom capitalismo, mas destruir Dilma.

OP - O senhor não acha que está marcado por um único tema no Brasil, o ócio criativo?
DDM - Tenho muitos livros publicados e não sei por que estou conhecido pelo ócio criativo. Creio que há forte correspondência com o modelo brasileiro. Ócio criativo não significa preguiça, fazer nada. Significa fazer três coisas juntas: trabalhar, aprender e se divertir. Isso que nós estamos fazendo agora. Você tem que escrever o artigo e o artigo te faz ganhar dinheiro, porque você é jornalista, e se o artigo for publicado aumenta minha notoriedade. Estamos criando riqueza. No Brasil, isso é mais frequente. Não existe, no mundo, uma cidade como o Rio de Janeiro. Os empregados, na hora do almoço, vão à praia. O brasileiro está mais acostumado a misturar vida e trabalho. Este é o motivo pelo qual o ócio criativo agrada tanto. Esse livro até saiu em uma editora que não era muito conhecida na época. Estava em São Paulo e chegou um jovem dizendo para mim: "Meu pai trabalha na editora José Olympio, pela qual você imprime seus livros. Mas eu quero criar uma editora minha, completamente nova. Você me dá um livro para publicar?" E ele criou a editora Sextante. Na primeira semana (ano 2000), saíram três edições do Ócio criativo. Por 56 semanas, ficou entre os dez primeiros na classificação da Veja.

OP - O que o senhor viveu, viu, realmente do Brasil?
DDM - Passei por Porto Alegre, Caxias, Blumenau, Curitiba, Foz do Iguaçu, Campinas, São Paulo, Petrópolis, Tiradentes, fui a Manaus, Jericoacoara. Na primeira vez que vim a Fortaleza com o O Povo, me fizeram ver duas coisas muito bonitas: Jericoacoara e um desfile de moda de Lino Villaventura.

OP - O senhor fez amizade com o ex-presidente do Grupo de Comunicação O Povo, Demócrito Dummar...
DDM - Ele foi muito a Ravello com a esposa (Wânia Dummar). Demócrito ia muito ao seminário que eu fazia em Ravello. Mas quando o conheci foi na primeira vez que vim a Fortaleza. O jornal O Povo me convidou para fazer duas palestras e eu conheci os filhos do Demócrito quando eram crianças. Criamos uma forte relação de amizade. Ele era muito gentil e escrevíamos muito um para o outro. 

OP - O senhor conheceu os dois lados do Brasil?
DDM - Sim. Conheci o Brasil pobre também. Escrevi um livro com Frei Betto, conheço Carlinhos Brown, conheci Dom Hélder Câmara. O que mais me chamou a atenção foi a vitalidade, a musicalidade e a relação quase paradoxal entre a pobreza e a alegria. A experiência que tive na favela de Carlinhos Brown (Candeal, na Bahia) foi muito bela. Lá não tem violência, não tem drogas, não tem analfabetismo, tem muita convivialidade. É um ambiente sereno, quase feliz. Mas Salvador se tornou uma das cidades mais feias do mundo. 

OP - O senhor viu alguma diferença em Fortaleza desta vez?
DDM - É uma cidade muito equilibrada, porém, tem um problema: é a capital do turismo sexual. Recordo-me que Demócrito fez uma palestra e um debate com os hoteleiros sobre o turismo sexual. Vocês têm esse monopólio mundial negativo. Alguns anos atrás não havia aviões que ligavam Milão ao Rio ou São Paulo, mas tinha direto para Fortaleza somente por causa do turismo sexual.

OP - O senhor viveria no Brasil?
DDM - Gostaria de viver na África, em Zaíra, mas a África tem uma distância excessiva da minha cultura. Viveria na China, mas a China é ditatorial. Viveria em Nova York, mas é muito consumista. Gostaria de viver na Bahia de Jorge Amado. Nós temos em casa um guia da Bahia escrito por Jorge Amado, um guia para os turistas. É maravilhoso. Agora, já não gostaria mais de viver na Bahia. Moraria no Rio de Janeiro, porque o Rio me concedeu o título de cidadão honorário, mas porque também o Rio é a cidade mais bela do mundo. Rio é a cidade de muitos amigos: Oscar Niemeyer, Roberto D’Ávila... Eu era muito, muito amigo de Oscar e dediquei um livro a Oscar e Roberto, A sociedade pós-industrial.

OP - Qual o seu próximo objetivo de vida?
DDM - Eu sou muito jovem, tenho muitos objetivos de vida. Meu primeiro objetivo é que estou escrevendo um livro. Agora vão sair dois livros meus aqui no Brasil. O último livro se chama Tag. É uma tentativa de explicar a sociedade atual, através de 26 palavras, uma para cada letra do alfabeto: B, beleza; C, criatividade; D, desorientamento; T, trabalho... são 26 capítulos. Esse livro vai sair pela editora Objetiva. Depois vai sair outro livro, nesse ano ainda, que se chama Brasil 2025. É uma pesquisa para saber como o Brasil vai evoluir daqui até 2025.
*publicado por Beatriz Cavalcante em www.opovo.com.br 
Imagem: Evilázio Bezerra