Uma crise sem nome
A mãe também já conseguiu livrar-se da barreira e tenta consolá-la, acariciando-a com a mão direita, enquanto sustém no braço esquerdo o filho pequeno, um menino a ponto de cair. Do outro lado da cerca, um rapaz suspende os arames, a expressão aflita. Teme ser retido, antes da sua travessia. O rosto possui os mesmos traços dos povos arcaicos, as civilizações que nos legaram a maior parte do saber.
O parágrafo acima não se trata de um exercício de descrição, daqueles que fazíamos na quarta série do primário, olhando imagens toscamente coloridas. Trata-se de uma das milhares de fotos que todos os dias aparecem nos jornais e na internet, algumas tão comoventes que mudam o sentimento das pessoas em relação ao drama vivido pelos que tentam fugir da guerra, perseguição e pobreza, no Oriente Médio e na África.
São migrantes, refugiados ou clandestinos? Perde-se tempo buscando a palavra certa para defini-los, evitam reconhecer que se trata de refugiados, pessoas buscando refazer suas vidas, longe da pátria insalubre. Países como a Inglaterra e a França, que colonizaram a África e o Oriente Médio, enriquecendo às suas custas, fecham as portas e tentam barrar a entrada dos indesejados. Esquecem quando ocuparam o mundo inteiro com seus exércitos, sem pedir licença nem atravessar cercas de arame.
As fileiras de homens, mulheres e crianças se deslocando a pé também lembram os retirantes nordestinos fugindo à seca. A dor, a desolação e a miséria são as mesmas. Os nordestinos caminhavam dentro de um território chamado pátria, falavam o mesmo idioma, mas nem por isso estavam imunes à rejeição, ao desprezo e ao preconceito.
Dos campos de concentração cearenses da década de 1930, às propostas de barreiras migratórias em alguns estados do Sul e Sudeste, os fugitivos da seca enfrentaram barreiras reais e simbólicas, tão intransponíveis quanto as cercas de arame farpado do leste europeu. E toda vez que eles mesmos buscaram soluções para a miséria, em aglomerados como os de Canudos e Caldeirões, foram reprimidos pela força, mortos e destroçados, como se representassem ameaça à ordem estabelecida pelos mais poderosos.
Essa relação se alterava bruscamente quando havia interesse em mão de obra barata, semiescrava ou escrava, como no ciclo da borracha amazônica, da construção civil em São Paulo, da edificação de Brasília e da ponte Rio - Niterói, na expansão de fazendas no Mato Grosso e Goiás. Nesses casos, fazia-se um trabalho de aliciamento dos sertanejos analfabetos e miseráveis através de folhetos de cordéis, violeiros repentistas e de pessoas treinadas para seduzir com promessas de enriquecimento fácil. A realidade se revelava bem distinta do sonho, o tráfico escravo da África para o Brasil, em navios negreiros, mudava-se em tráfico do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte, em barcos a vapor e caminhões pau-de-arara.
Quando nosso tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Nós ainda morávamos na fazenda dos Inhamuns. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que os adultos nunca me contavam.
Ofereceram ao tio o que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca, enquanto a mãe acendia o fogo e preparava uma refeição quente. Antes, o tio não comia nenhum alimento à base de leite. O sofrimento rebaixara seu orgulho. O Sul não existe – ele falou enquanto mastigava –, é pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.
Disse que tinha chegado ao Mato Grosso, trabalhava numa fazenda. Os grileiros o tornaram escravo. Tomaram suas roupas e até o fumo do cigarro controlavam. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Teve malária e pensou não escapar com vida. Quando sentiu que ia morrer, fugiu por dentro da mata.
Fluxo ou crise migratória? Chega um tempo em que a única chance de sobrevivência é partir. Não tem que ver com nomadismo, expansão de território, busca de um guru espiritual. Foge-se das causas da miséria. E esse trânsito muda a feição do mundo. Foi sempre assim, desde o começo da história. E não adianta criar barreiras, interdições, porque nada contém essa força em deslocamento. O Brasil mudou graças a ela e a Europa certamente mudará.
Para melhor, tenho certeza.
*Ronaldo
Correia de Brito é escritor, médico e dramaturgo.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br
Imagens: Darko Vojinovic/AP e em www.imagereflex.com
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