08 setembro 2014

O MUNDO É UM CAMPO MINADO


A tormenta*


Apesar de nos ter sido emprestada há milhões de anos, tão limitados e incompetentes que somos, ainda não conseguimos tomar posse da vida.

O ser humano já é incompreensível até por definição, quando diverge daquilo que é, o ser propriamente dito, concebido pela natureza involuntária, talvez pela transa irresponsável de estrelas num orgasmo da Via Láctea, daquilo que o faz ser humano, em seu caráter integral, consciente e merecido, de quem é pelo que se faz ser.

Viver é tão único e tão solitário que é difícil mensurar o quanto perdemos, ou mesmo o que ganhamos nessa conjunção coletiva, sinuca de alteridades, na complexidade de nossa relação com o que está além da nossa individualidade, dos nossos desejos, do nosso ser gratuito, tão desconhecido de nós, mas, certamente, íntimo de todos e qualquer um.

O mundo é um campo minado, e não uma colina de flores do campo, e daí exige a perda da ingenuidade, a atenção redobrada, a sensibilidade e a noção exata do peso da nossa pisada.

No correr da História, e da histeria, rumamos culturalmente num saco de gatos universal, apoteótico, com destino certo ao espetáculo, ao grande teatro do absurdo, cuja nossa audiência útil amuralha o império de forças que têm como argumento, principalmente nos tempos modernos, os caríssimos anúncios e a publicidade chula, criados por agências de pseudointelectuais devoradores de long-necks e drinks coloridos. 

A máquina não para, movida sempre pela intensa e cruel brutalidade financeira, causa maior, quase sagrada, dos espíritos opressores da humanidade, insaciáveis porcos comedores de bacon, genocidas, fascistas e admirados postadores de selfies europeus, levantando taças de vinho cor-de-sangue brasileiro, ou abrindo os braços como manjadas estátuas, pontes e postes dignos de gerar a inveja nos tão medíocres quanto eles.

O fogo do poder e da ambição se alastra nos intestinos magnânimos desses porcos egoístas, corroendo-lhes as vísceras e deixando-lhes em cirróticas cinzas o lúmen de sua alma original. 

Resta-lhes, para disfarçar o carcoma, cobrir-se com roupas caras, banhar-se com perfumes franceses, andar em carros do ano, comprar toda bobagem ultramoderna, dar de presente garrafas de bebidas envelhecidas para parceiros (leia-se “interesseiros”) com quem dividem suas aparentes vitórias e conquistas. 

À noite, o fantasma da ansiedade e do medo não os deixa dormir, ou os acompanha na hemorroida doída ou no desdém indesejado do(a) companheiro(a) de leito.

Para suportar a dor desta vergonha inconfessável, adoçam a boca com álcool, entopem o sangue com drogas, consomem sapatos e acessórios no shopping mais próximo, mas nada, simplesmente nada, afasta deles o medo de perder tudo aquilo que eles bem sabem ser apenas uma farsa.

Porém, mesmo assim, somos nós quem os alimentamos, os incentivamos e permitimos que esses porcos dominem o mundo, subam as rampas, vistam-se em togas, nos representem, ganhem voz aos microfones, decidam a nossa vida, gastem o nosso dinheiro com armas, com projetos de fachada, náufragos e megalômanos, em negociações vergonhosas.

Permitimos que eles decidam os destinos das nossas crianças, que deixem nossos velhos ao relento, que esqueçam das populações mais pobres e sentenciadas pelo não-poder, que cultivem um celeiro de segregação, de injustiça, de desigualdade, de gente que nunca vai saber até onde poderia chegar se tivesse alguma oportunidade.

Diante de tão opressora e impassível realidade, sofre quem ainda se indigna com o sofrimento alheio, quem é sensível às possibilidades do ser e do mundo, quem muito gostaria de crer na possibilidade de algo diferente.

Escolher nos parece sempre tão difícil... mas, sinceramente, o que queremos mudar se nem mesmo aprendemos a colocar o lixo na lixeira?


*O escritor Raymundo Netto é designer, quadrinhista, 
produtor cultural e editor-adjunto da Fundação Demócrito Rocha

05 setembro 2014

SOU DA MINHA TRIBO


A Escolha*




Qualquer pessoa que tenha estudado as questões que envolvem moral e ética, em algum momento deparou-se com o conceito do Imperativo Categórico, criado pelo filósofo Immanuel Kant por volta de 1785. 

“Imperativo”, no contexto utilizado por Kant, pode ser entendido como “mandamento”. E “categórico” é o que não aceita dúvidas, o “indiscutível”. Imperativo Categórico então seria um Mandamento Indiscutível, que Kant explicou assim: "Aja apenas segundo a máxima que você gostaria de ver transformada em lei universal." 

Simplificando: você deve agir baseado em princípios que desejaria ver aplicados para todo o mundo. 

Você vai ao estádio assistir a um jogo de futebol, entra no embalo da torcida e decide fazer parte do coro que xinga o goleiro do time adversário, que é negro: 

- Macaco! 

Tá todo mundo xingando, pô! Você é só mais um(a), que mal há em zoar o adversário? Afinal de contas, estádio de futebol é o lugar onde a gente xinga todo mundo, não é? Pois é. 

Mas então você recorre ao Imperativo Categórico de Kant: “E se aquele goleiro fosse eu? Me sentiria bem ao ser chamado de macaco?” 

É claro que não! Então, apesar do calor da torcida, você decide não xingá-lo. Esse é o princípio que você gostaria que fosse seguido por todo mundo. 

Pois é. 

Mas ao decidir não xingar, você abre mão de parte do exercício de combater o adversário. Você se coloca fora da tribo. Ou melhor, do coletivo, pra ficar na moda. Afinal, o papel da torcida é motivar seu time a seguir adiante e desmotivar o adversário para que ele perca o jogo. A única forma de fazer isso é... torcendo! Gritando, vaiando, cantando, xingando! E quem acha que não é assim é porque nunca pisou num estádio. 

Ao ser coerente com seus valores morais e não xingar, você deixa de tomar parte num rito importante do torcedor, não faz mais parte da patota na plenitude. Se bobear é até criticado(a) e corre o risco de não ser aceito(a) pelo grupo. 

Tá certo, estou exagerando, mas no fundo esse é o conceito: xingo pois todos xingam e assim sou aceito pela tribo. 

Em minha palestra Tudo bem se me convém, falo desse que é o grande dilema da humanidade: agonizar com os prejuízos de fazer o que é certo, honrar a palavra dada, agir com compaixão... ou ser bem-sucedido ignorando esses valores? 

Bem, depende do que você considera ser "bem-sucedido", não é? Se dar bem com a desgraça do Outro é ser bem-sucedido? E se o Outro for você? 

Negociar ambições, riscos, ilusões e trocas consigo mesmo(a) tem sido nosso grande desafio ao longo dos tempos. 

Quem vive verdadeiramente seus valores agoniza diante de escolhas morais. Corre o risco de não ser aceito pela tribo. 

Já quem deixa esses valores apenas pairarem sobre sua vida, nem percebe que essas escolhas precisam ser feitas. E chama o goleiro de macaco. 

- Mas e se o goleiro se sentir ofendido? 

- Ah, tudo bem se me convém. 

Agora que você já sabe o que é o Imperativo Categórico de Kant, talvez consiga reconhecer as pessoas que não vivem de acordo com ele. 

E escolha não fazer parte dessa tribo. 



*O jornalista e palestrante Luciano Pires comanda um baita serviço de despocotização .

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