13 abril 2011

ENQUANTO VIVEMOS


Nós e a Terra

O que nos diferencia dos outros seres da natureza não é a inteligência ou a capacidade de ter emoções, de sentir prazer, dor, medo, de nos comunicar ou criar ferramentas, pois isso várias espécies também fazem, em diferentes graus de eficiência. 

O que nos torna únicos é a consciência da nossa individualidade e, entre as consequências disso, está o sentimento de separação do mundo, dos outros, da natureza; pois, se somos nós, não podemos ser o Outro.

Ter consciência nos fez também ter subjetividade, um universo interior onde construímos e reconstruímos nossa visão de mundo, do Outro, e de nós próprios.

Assim, embora a realidade seja igual para todos, a maneira de perceber, de encarar e interpretar a realidade muda de pessoa para pessoa.

Isso nos obrigou a estabelecer parâmetros do que é aceitável ou não pela sociedade, pois, apesar de separados dos outros e das coisas, enquanto seres sociais estamos ligados uns aos outros — e somos tão dependentes quanto todos da natureza.

E natureza, aqui, não significa uma visão idealizada de um ser com propósito e intencionalidade, mas o resultado de milhares de anos de evolução sob determinadas condições de clima e calor, distanciamento do sol, inclinação do eixo da Terra etc. 

Revela-se então uma outra característica humana, que é a tendência de encontrar significado para as questões que não conseguimos compreender, como se fôssemos incapazes de viver num mundo que não faça sentido. Os gregos antigos, por exemplo, deram à natureza o status de deusa, à qual atribuíram o nome "Gaia".

A consciência também nos tornou livres para escolher o que achamos ser melhor para nós, para o mundo, e o livre arbítrio trouxe consigo culpas e responsabilidades, angústias existenciais sobre qual o melhor caminho a tomar.

Ao nos vermos livres da natureza, não mais tendo que obedecer aos instintos e compreendendo cientificamente os seus fenômenos, criamos a ilusão de sermos superiores às demais espécies e à própria natureza. 

Na tarefa de nos tornarmos humanos, tivemos (e ainda temos) que enfrentar a natureza, que age e influencia em nossas escolhas através dos instintos, tão ativos em nós quanto em todas as demais espécies, determinando quando temos de lutar ou fugir, comer e parar de comer, por exemplo — e ainda assim podemos escolher manter-nos em situação de estresse sem tentar fugir e comer sem fome. 

Este enfrentamento resultou no afastamento ainda maior entre nós e a natureza. Seguir os instintos passou a ser um atributo dos animais, algo pouco refinado, embrutecido, motivo de vergonha para os humanos.

Criamos a ilusão de sermos os "donos" da natureza e dividimos o planeta em territórios: loteamos cada espaço útil, explorando-o sem culpas, a ponto de já termos passado do limite de regeneração natural de diversos ecossistemas. As demais espécies foram destituídas de seus direitos, condicionadas à sua utilidade para nós: se não for útil, então não tem razão de existir.

Em nossa idealização do mundo, demo-nos o papel transcendental atribuído aos deuses, pois, se somos superiores à natureza, teríamos de encontrar um significado para nós fora dela.

Quando confrontados com as evidências dos nossos atos, alguns de nós preferimos buscar desculpas para continuar agindo da mesma forma. Para alguns, a ideia de que a natureza possa sofrer um colapso parece exagero, pois nada do que façamos irá destruí-la, embora possamos nos destruir facilmente. 

Para outros, a Ciência irá nos salvar descobrindo coisas, inventando novas tecnologias, que serão capazes de reciclar nossos restos e descobrir novas fontes de recursos. Outros ainda acham inútil lutar, pois o fim está próximo, conforme revelado em algum texto sagrado e, naturalmente, apenas os que acreditarem nisso serão salvos.

Nossa separação da natureza não aconteceu apenas do ponto de vista psicológico, ético, moral ou espiritual, mas também do ponto de vista físico: reconstruímos o meio ambiente para adaptá-lo às nossas necessidades.

Onde antes existiam ecossistemas, construímos cidades, às vezes confortáveis e bonitas, às vezes não, de concreto, aço e asfalto — e com muita rapidez esquecemo-nos de que, apesar de muito importantes, não são as cidades que produzem a água, o oxigênio e a biodiversidade da qual dependemos para produzir alimentos, medicamentos e obter recursos para viver a nossa vida cotidiana.

O meio ambiente deixou de ser tudo o que existe, para ser o que existe em torno de nós, como se fosse uma espécie de armazém de recursos inesgotáveis disponível somente para atender às nossas necessidades.

Necessidades que deixaram de ser apenas físicas, como comer, morar, vestir, mas também espirituais, como a de demonstrar afeto através da troca de presentes materiais, de obter reconhecimento social e se sentir pertencendo a uma sociedade através da exibição de objetos de consumo. 

O resultado foi uma sociedade que não só superexplora a natureza, mas que também superexplora os seus próprios membros, pois, para que uns possam acumular demais, outros precisam acumular de menos.

E por que tudo isso? Enquanto as demais espécies submetem-se aos seus destinos, nos angustiamos na busca de respostas, e quando estas não existem, criamos nós próprios utopias e visões de mundo que deem sentido a este mundo reinventado.

Qual é o propósito da nossa espécie? Para que estamos aqui? De onde viemos? Para onde vamos? Por que sofremos com terremotos, vulcões, tsunamis, secas, enchentes, furacões, fome, aids, epidemias etc.?

Cometemos algum pecado pelo qual estamos sendo punidos agora? Teremos tempo de evitar um colapso ambiental global? Continuaremos existindo enquanto espécie ou já estamos em declínio rumo à extinção?

Alguns se satisfazem com a idéia de deuses e diabos voluntariosos nos manipulando, outros se amparam na idéia de que somos filhos e filhas de seres de outros planetas, que nos visitaram no passado — e que alguns acreditam que ainda estão entre nós. 

Outros acreditam que surgimos do caos e do acaso; não importa, ninguém saberá a verdade final mesmo e, neste particular, qualquer ideia serve, desde que tenha significado e nos permita viver em paz conosco mesmos e com os outros, que nos anime a querermos ser pessoas melhores e lutar para termos um mundo melhor.

O fato concreto é que nenhum de nós escapará vivo(a) do Planeta que, ao contrário de nos pertencer, nós é que pertencemos a ele e o compartilhamos com todas as outras espécies.

Ou nos reinventamos, imaginando outro jeito de estar no Planeta, ou corremos o risco de desaparecer antes do tempo. Uma coisa é certa: o Planeta começou sem nós, e acabará sem nós.

A questão que importa não é quando acontecerá o fim, mas o que posso fazer, aqui e agora, enquanto tenho vida e saúde, para abreviar este fim e aproveitar este presente que todos os dias o Planeta nos proporciona — o de vivermos. E a vida é bem curta.


* Vilmar Sidnei Demamam Berna é escritor, jornalista, fundador de REBIA-Rede Brasileira de Informação Ambiental e
editor da Revista do Meio Ambiente e d
o Portal do Meio Ambiente (imagem: Gaia by Alex Grey)


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