Candidato potencialUm movimento sutil — mas nem mais tão subterrâneo assim — está levando de roldão os corações e mentes dos habitantes das periferias brasileiras: o lançamento do rapper carioca MV Bill a uma postulação ao Senado Federal da República.
Tudo começou quando, no show que comemorou o aniversário (444 anos) da cidade do Rio de Janeiro, realizado na Cidade de Deus, o músico Caetano Veloso instigou a massa sugerindo que MV Bill assumisse ser o senador das favelas. A festa virou um delírio. E Bill ainda não respondeu.
A partir daí a CUFA-Central Única das Favelas, entidade que promove atividades nas áreas cultural, esportiva e educacional direcionadas a jovens em situação de risco (em todo o Brasil e em outros países) começou a receber mensagens de adesão à protoproposta. Apartidária, porém, a CUFA não quer saber de comprometimento político, tendo se transformado em uma entidade representativa justamente por causa deste seu saudável afastamento da desacreditada cena “chapa branca” nacional.
No entanto, indiscutivelmente Bill é uma expressiva liderança entre os despossuídos urbanos, que percorre de ponta a ponta o País para inaugurar escolas de basquete, e nessas lançou a Poesia Negra dos Intelectuais do Povo e o CD Falcão – O bagulho é doido, apoiando ainda os jogos promovidos pela LIBBRA-Liga Brasileira de Basquete de Rua.
Também divulgou em todo canto seus livros Cabeça de Porco e Falcão - Mulheres e o tráfico, no projeto que virou documentário e ganhou os cinemas, a partir do livro Falcão - Meninos do tráfico, inclusive nas prisões, virando referencial e mostrando o que é a invisibilidade.
O rapper aprovou também, em diversas Câmaras Municipais, o dia 4 de novembro como Dia da Favela (Lei n.° 4.383/2006). No campo da música, gravou o videoclipe O bagulho é doido, além de deixar sua colaboração em CDs ainda inéditos.
Ao dirigir-se à população dos lugares por onde passou, expôs projetos pioneiros capazes, à primeira vista, de consolidar alternativas para minimizar a violência e as tantas desigualdades, apontando uma oportunidade para que os adolescentes de hoje possam transformar suas vidas.
Tais projetos são os que a sociedade quer ver em prática, ao invés de permitir que a mídia — especialmente a TV e os jornais — falem por ela. Enquanto isso, as pessoas se trancam em casa atrás de blindagens, cercas elétricas, altos muros, câmeras de vigilância e uma aura de terror.
Segundo Bill, a valorização da educação e da saúde, além das oportunidades de trabalho digno, são o começo de novas saídas para a ordem econômica e social, agregando a ressignificação do indivíduo, da família e das comunidades. Todo mundo sabe qual é o bonde.
O rapper, que cresceu numa favela carioca, percebeu ao descobrir o hip hop que poderia jogar com este dado e as emoções para mudar algumas coisas da realidade onde vivia, usando a música — capaz de levar informação e conscientizar as pessoas — para fazer quem não tinha se ligado que qualquer um(a) pode agir para mudar o mundo ao seu redor.
Por fim, Bill esteve dia desses no Haiti, onde filmou a vida das pessoas nas cidades e trouxe contundentes impressões de como as coisas estão por lá, testemunhando a população local receber o apoio do Exército brasileiro e de outros países, numa ação da ONU.
Ao dividir o palco com Caetano Veloso, MV Bill foi surpreendido pelo baiano. “Quero fazer um pedido ao Bill e ao Brasil: que a gente comece a pensar em MV Bill como futuro senador da República”, disse Veloso, sem mais, ao microfone. Enquanto a platéia ia à loucura, a ideia começou a repercutir em toda parte onde houvessem pessoas pobres e pretas, pessoas brancas oprimidas, índios e até mesmo um grupo de ricos insatisfeitos com o status quo deprimente estrelado pelos nossos parlamentares de plantão.
Diversas questões cruciais aguardam soluções urgentes nas aglomerações urbanas de todo o País. No dia-a-dia, tudo é mais ou menos escasso — menos o perigo do dengue, do tráfico de drogas, do aliciamento de menores para a prostituição e da violência gratuita, que aumenta como fruto da criminalidade aquisitiva (voltada ao consumo do crack).
No Nordeste rural, a seca é ainda um temeroso flagelo e muitas decisões relativas ao meio ambiente ainda estão por ser tomadas, ao passo que o conjunto de ações do sistema avança e se apropria como pode do patrimônio natural. Já no âmbito da organização formal, em todos os estados o nível dos profissionais da educação e da saúde, bem como o de seus salários, são motivo de assombro e enfrentamentos com a administração pública. E agora, Josés?
As demandas do Brasil para o rapper, que mostrou saber enxergar as feridas causadas por séculos de atividade das elites e as trágicas consequências que resultaram na saga dos desprivilegiados de toda ordem, tiveram eco na CUFA Ceará. A entidade promoveu em Fortaleza (novembro de 2008) o seminário Selva de pedra – A Fortaleza noiada, discutindo com lideranças comunitárias, universitários e autoridades da área da Segurança Pública a assustadora ameaça do crack aos jovens. Um contundente documentário de 50 minutos sobre o tema vem aí, pelo final de abril, e a deixa é integrar a área de Saúde ao debate.
A sugestão da candidatura de MV Bill feita por Caetano chega assim, para muitos, como um clarão da mais genuína esperança, junto aos requisitos para a sugestão bombar em 2010:
1. Bill conhece a realidade do povo humilde do Brasil: nasceu e mora na favela Cidade de Deus, no Rio de Janeiro;
2. Sua militância e ações desenvolvidas falam só de coisas que ele realmente viveu, representando a aflição de milhões de brasileiros;
3. Seu trabalho é voltado para o enfrentamento da violência e da discriminação, sempre buscando a promoção da cidadania;
4. Como cantor, Bill é hoje, provavelmente, o rapper mais influente em todo o País;
5. Sua música aponta a realidade crua do cotidiano da periferia — de todas elas;
6. Bill escreveu livros importantes, mostrando o mundo do tráfico no Brasil;
7. Bill é militante ativista do movimento negro e social;
8. Pela sua atuação, Bill recebeu o Prêmio UNESCO - Categoria Juventude;
9. Pelo trabalho em defesa da vida, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos, concedido pelo Ministério da Justiça;
10. Seu trabalho ganhou repercussão mundial, dando a ele o Prêmio Cidadão do Mundo da ONU;
11. Bill tem maturidade e conhecimento como poucos para representar o real Brasil no Senado;
12. Bill será uma voz ativa na defesa dos interesses dos trabalhadores;
13. Bill atuará com consciência e justiça, pois tem origem nítida — e quem sabe de onde vem, e aonde quer chegar, não muda de lado;
14. MV Bill está certamente atento aos apelos do meio ambiente, da família, da comunidade e da nação para uma vida cidadã mais digna.
“Como ajudar? Simples, faça cada pessoa do seu convívio saber deste projeto, que não é do Bill, não é da CUFA, não é do Rio de Janeiro, mas é um projeto da massa, que começou há anos e chega agora a mais uma etapa. Bill deverá estar no alto da pirâmide, com uma corda para ser alçada para a massa subir e alcançar o topo. A pirâmide existe, a corda também, só que ao longo desses anos vem sendo utilizada para enforcar o nosso povo, a nossa gente. Bill não é a salvação de nada, se a massa é como se fosse o general, Bill é simplesmente o nosso soldado: soldado do morro. E segue a vida”, aponta Celso Athayde, secretário-geral da CUFA Brasil.
E na rede virtual da entidade, Rebeca Tárique complementa: “Sem sombra de dúvidas, a figura do Bill é a legitima representação do homem negro/favelado que luta à frente do combate à marginalidade (hoje um dos grandes problemas sociais que atinge maciçamente a camada da população que é negra — leia-se a nossa juventude). Ele faz a defesa da teoria: ‘Troque as armas pelo microfone, pois ele é o poder. Troque o tráfico pelos livros, pois a educação é o caminho’... Sobretudo, ele traz veementemente a dura realidade que muitas vezes nos deixa sem muitas opções de escolha — e aí, meu irmão, a bandidagem acaba sendo a ‘tábua de salvação’ (não é apologia), salvação esta que estrategicamente mata, extermina a nossa juventude. Mas aí, como justificar essa limpeza étnica? Simples assim: os pretinhos estão na bandidagem, estão no tráfico... O que podemos fazer? Eles se envolvem com o mundo cão, que roubam, que mentem, que matam... Não é nossa culpa, eles mesmos se matam... Fácil, né? Mas é assim que o nosso governo se porta em relação a esta problemática. O que me preocupa não é quando o artista Caetano — que, com Gil, cantou que ‘o Haiti não é aqui’ — lança a candidatura de Bill, mas sim as estruturas que estão por trás dele. Isso sim me preocupa, tenho realmente medo de sermos mais uma vez engolidos, cooptados por elas. Esse é o X da questão”, finaliza Tárique, que é diretora nacional de Juventude do Coletivo de Entidades Negras da Bahia.
(foto José Leomar)
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