O Cachimbo da Paz
no círculo restaurativo indígena
Foto: Romulo Baldez
Cachimbo
manufaturado pelo indianista Luiz Felipe Figueiredo, conhecido pelo nome
indígena Tsiipré, autor do livro “Uma
jornada no tempo – das visões ao cachimbo sagrado”, em que relata como chegou
a fazê-lo
Um
cachimbo, fisicamente, divide-se em fornilho (recipiente onde se coloca o fumo)
e tubo (por onde passa a fumaça para a boca). O simbolismo mostra-nos que o
fornilho representa o aspecto feminino de todas as coisas vivas e o tubo é o
símbolo do aspecto masculino de todas as formas de vida. A ação de colocar o
fornilho no tubo significa união, criação e fertilidade.
O
Cachimbo da Paz é o que temos de mais significativo e marcante quando relacionamos
indígenas e seus rituais de práticas referentes a cura de relacionamentos
feridos ou rompidos. Os ancestrais de povos originários contam que receber o
cachimbo em um círculo composto por parentes e outros convidados, permite às
vezes, descobrir-se a união de todos. É aí que lembramo-nos da harmonia que
pode ser alcançada através da união dos que nos cercam naquele momento.
Simbolicamente, é com o cachimbo que nos esforçamos para dividir o nosso
próprio espaço e a nossa experiência de vida.
O
“portador do cachimbo” — conhecido pela maioria como sendo o Pajé —, possui seu
encargo como sendo de muita honra e profunda vocação. Nos atuais círculos
restaurativos, identificamo-lo como sendo “um facilitador”. Na tribo, sempre
foi convocado para atuar em nascimentos, mortes, casamentos, ritos de passagem,
acordos contratuais, conselhos e diversas outras cerimônias.
Na
atualidade, olhamos a paz como sendo a ausência de guerra mas, a paz representa
muito além que isto, em nosso modo originário de pensar. A paz transita pela
forma de viver, criar, agir, saber, ouvir e falar. A paz surge do nosso
interior e é resultante do nosso equilíbrio em reconhecer as polaridades;
macho/fêmea; humildade/orgulho; ensino/aprendizagem e outros aspectos que
possam contribuir com a harmonia.
Sempre
que o “cachimbo da paz” é partilhado, os acordos feitos e as palavras ditas têm
base na proposta indígena de honra, verdade e compreensão mútua que surgem da
paz interior de cada um. A honra e a palavra se tornam tão sagradas que devem
ser mantidas a qualquer custo.
O último
censo do IBGE (2010), apontou um total 896.917 indígenas no país, o que nos
leva a concluir que, após oito anos, essa totalização beira um milhão de
indígenas. As terras já demarcadas e homologadas constituem perto de 13% do
território brasileiro. Estados, como Roraima, têm quase 50% de seu território
como sendo terra indígena. São Paulo possui 12.977 indígenas, um número
bastante expressivo e desconhecido pelos brasileiros. A diversidade cultural
existente entre os povos indígenas é muito grande, de forma que não devemos nos
referir à cultura indígena como se fosse uma única. São povos diversos, com
línguas, religiões e olhares diferentes para o universo. Um Guaraní de São
Paulo não tem a mesma cultura que um Macuxi de Roraima, assim como um Fulni-ô
de Pernambuco não tem o mesmo olhar para o mundo que um Yanomami da Amazônia ou
um Kaingangue do Rio Grande do Sul.
Os
sistemas de Justiça existentes nas estruturas sociais das etnias, quase sempre,
nos foram invisíveis e desconhecidos. Na verdade, temos muito que aprender em
se tratando de maneiras que os tornam eficientes no processo de resolução de
conflitos. Mesmo considerando que grande parte dos povos indígenas perderam
bastante da estrutura social original devido as influências e contatos com a
comunidade a nível nacional. Grande número de comunidades indígenas mantém seus
sistemas de aplicação de justiça como sempre foram, originalmente.
Na visão
desses povos, os aplicadores da justiça retributiva (tradicional) sempre foram
invasores que desconsideram as leis e mecanismos de aplicação das mesmas
desenvolvidas por eles ao longo de milhares de anos. A imposição do sistema
judicial retributivo não faz o menor sentido para os indígenas. As tentativas
de utilizar-se das regras criadas dentro da cultura e sistema político dos
não-indígenas, em povos que possuem meios de resolução de conflitos próprios,
constantemente, mostram-se desastrosas. A desconsideração habitual quanto a
existência de elaborados sistemas jurídicos próprios no seio das comunidades
indígenas brasileiras promove a negação da eficiência e funcionabilidade para
todos. É como se jogássemos por terra sofisticados mecanismos elaborados ao longo
da existência ética e étnica destes povos, como excelente forma de resolução de
conflitos e práticas da paz.
Os Ingarikó,
povo que habita a região setentrional do Brasil, no norte da Terra Indígena
Raposa/Serra do Sol, ao pé do Monte Roraima, não têm um código escrito,
mas possuem normas que são transmitidas oralmente, de geração em geração. São
regras de aplicação de justiça em conformidade com as suas próprias
instituições. Quando regras da comunidade são quebradas, o sistema de
resolução de conflitos próprio é acionado.
Os Xukuru
do Ororubá, localizados entre os municípios de Pesqueira e Poção, no
estado de Pernambuco, chegaram a diminuir, significativamente suas demandas
conflituosas junto às autoridades policiais e judiciais através da execução dos
próprios meios de fazer justiça. Os Nambikwara foi a etnia que mais evidenciou
os processos contidos em práticas restaurativas. Foram eles que se
notabilizaram por estratégias que intermediavam a resolução de conflitos
gerados por disputas. A resistência às inúmeras investidas de evangelização fez
com que os Nambikwara mantivessem seus rituais de cura, de religiosidade e de
justiça de maneira muito próxima da ancestralidade.
Os povos
indígenas Maori, da Nova Zelândia, são um grande exemplo na história da justiça
restaurativa. De como um modelo tribal ganhou visibilidade e legitimidade
suficiente, a ponto de ser incorporado pela justiça tradicional neozelandesa. O
modelo de justiça restaurativa oriundo das tribos Maori foi o resultado da
insatisfação dos membros dessa tribo em ver os seus jovens institucionalizados
no sistema repressivo tradicional neozelandês.
No
Canadá, o modelo também é inspirado nas culturas indígenas. Os protagonistas
sentam em círculo e utilizam um objeto que é passado de mão em mão
representando a posse da palavra, no Brasil, utilizamos o cachimbo como sendo
este objeto. A reunião tem como objetivo a convergência da percepção para a
solução do conflito significando a realização de um círculo restaurativo. Nesse
país a Constituição de 1982 e a edição do artigo 718.2(e) do Código Penal
canadense fixaram os Princípios Básicos para a Utilização de Programas de
Justiça Restaurativa em matéria criminal, sofrendo influências das tradições
das populações autóctones, como são chamadas as nações indígenas e Inuit (os
esquimós), pelos franco-canadenses.
Nas
comunidades nativas de territórios colonizados, a presença de práticas
restaurativas, devia-se, principalmente, da necessidade de uma justiça distinta
da punição baseada essencialmente na privação de liberdade, bastante utilizada
pelas sociedades modernas. A própria estrutura das comunidades, onde cada
indivíduo exercia um papel significativo para o ordenamento social, favorecia
as práticas restaurativas, considerando que os indivíduos que houvessem
cometido alguma infração as leis da comunidade deveriam ser julgados com vistas
a permanecer exercendo sua atividade social, evitando-se, assim, a ruptura dos
seus vínculos comunitários.
O
ressurgimento dos modelos restaurativos na sociedade atual, deveu-se, em grande
parte, às reivindicações de povos indígenas que exigiram e os que continuam a
exigir da justiça estatal, respeito a seus processos de resolução de conflitos:
Justiça Restaurativa Indígena – uma iniciativa brasileira que veio para colaborar
com as diversas comunidades indígenas, no resgate ao sistema de justiça
próprio, oriundo dos seus ancestrais, totalmente amparada pela Constituição
Federal e pela Convenção OIT 169, entre outras legislações e
procedimentos.
A justiça
restaurativa instalada no poder judiciário brasileiro tem origem como sendo o
sistema jurídico próprio dos povos indígenas. A Justiça Restaurativa Indígena é
direito consuetudinário (habitual aos costumes de um povo). Por serem ágrafos (não
possuem linguagem escrita), os povos ancestrais vieram resistindo aos ataques à
sua cultura, mas mesmo assim muito se perdeu. Muitas pressões externas
contribuíram para que as comunidades fossem impedidas de buscar soluções
próprias para os seus próprios conflitos. Dessa forma, o Mato Grosso do Sul,
possuindo a segunda maior população indígena do país, saiu na vanguarda e
iniciou, oficialmente, o trabalho de resgate e implantação da JRI junto às
comunidades indígenas brasileiras, de forma que, em breve, teremos povos
indígenas praticando o seu próprio sistema de fazer justiça, com toda autonomia
a que têm direito. É rápido, gratuito, justo e executado pela própria
comunidade.
*Marco
Aurélio Luz é escritor, pesquisador, fundador do Instituto
de Práticas
Restaurativas de MS e coordenador da implantação
de Núcleos de Justiça
Restaurativa Indígena em todo o Brasil.