Por seu lado, o FMI-Fundo Monetário Internacional acaba de fazer um prognóstico ainda mais grave, pois inclui períodos de crescimento negativo. Estes organismos vinham bombardeando os meios de comunicação (que por sua vez bombardeavam o planeta) com prognósticos otimistas, baseados na suposta fortaleza da economia norte-americana.
Sustentavam que não haveria recessão e que o pior poderia ser um crescimento baixo, rapidamente ultrapassado por uma nova expansão... Se agora admitem a recessão, é porque algo muito pior está no horizonte. Sob a aparência de várias crises convergentes, desenvolve-se perante os nossos olhos o final daquilo que deveríamos encarar como o primeiro capítulo do declínio do império norte-americano (aproximadamente 2001-2007) e o começo de um processo turbulento desencadeado pelo salto qualitativo de tendências negativas que se foram desenvolvendo ao longo de períodos de diferentes durações.
De qualquer forma, as más notícias financeiras, energéticas e militares não parecem aplacar os delírios messiânicos de Washington, antes pelo contrário. É como se Bush e seus falcões não fossem deixar a Casa Branca dentro de pouco tempo. Continuam a ameaçar governos que não se submetem aos seus caprichos, insinuam novas guerras e afirmam querer prolongar indefinidamente as ocupações do Iraque e do Afeganistão -- inclusive um ataque devastador contra o Irã é ainda possível.
De vez em quando, emerge nova onda de rumores bélicos a apontar o Irã, em geral com origem em declarações ou transpirados de altos funcionários do governo. Um ataque contra esse país teria consequências imediatas catastróficas para a economia mundial: o preço do petróleo dispararia para as nuvens, o sistema financeiro global passaria a uma situação caótica e a recessão imperial converter-se-ia em ultra recessão encabeçada por um dólar em queda livre.
Talvez alguns estrategistas do Pentágono e do círculo de falcões mais radicalizados estejam a imaginar uma grande fogueira mundial purificadora, da qual emergiria vitoriosa a nação escolhida por Deus: os Estado Unidos da América. Trata-se de uma loucura, mas faz parte da configuração psicológica de uma parte importante da elite dominante, atravessada por uma corrente letal que combina virtualismo, onipotência, desespero e fúria perante uma realidade a cada dia menos dócil.
Nos grandes centros de decisão econômica atualmente domina a incerteza, que acaba de se ver convertida em pânico. O fantasma do colapso começa a mostrar seu rosto. Enquanto isso, todas as autoridades econômicas norte-americanas injetam maciçamente liquidez no mercado, concedem subsídios fiscais e improvisam salvações custosas das instituições financeiras em bancarrota, tentando suavizar a recessão, sabendo que desse modo aceleram a inflação e queda do dólar. Porém, sua margem de manobras é muito pequena: a mistura de inflação e recessão torna completamente ineficazes seus instrumentos de intervenção.
A palavra "colapso" foi aparecendo com intensidade crescente desde fins do ano passado em entrevistas e artigos jornalísticos, muitas vezes combinadas com outras expressões não menos terríveis, em alguns casos adotando seu aspecto mais popular (derrocada, morte, queda catastrófica) e em outros sua forma rigorosa, ou seja, como sucessão irreversível de graves deteriorações sistêmicas, como decadência geral.
Paul Craig Roberts (que no passado foi membro da equipe diretora do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e editor do Wall Street Journal) publicou em 20 de março deste ano um texto intitulado O colapso da potência americana, em que descreve os traços decisivos do declínio integral dos Estados Unidos [1] .
A 27 de março, The Economist intitulava Esperando o Armagedom, um artigo acerca da maré irresistível de bancarrotas empresariais norte-americanas. A 14 de março, The Intelligencer ostentava o título Peritos internacionais prognosticam o colapso da economia norte-americana num artigo que recolhia as opiniões, dentre outros, de Bernard Connelly (do banco AIG) e de Martin Wolf, colunista do Financial Times.
A 3 de abril Peter Morici, numa nota aparecida em Counterpunch, assinalava que "é impossível negar que a economia (estado-unidense) entrou numa recessão cuja profundidade e duração são imprevisíveis"...[2] . À guisa de conclusão, em 14 de abril o Financial Times publicava um artigo de Richard Haass, presidente do Conselho de Relações Exteriores dos EUA, onde assinalava que "a era unipolar, período sem precedentes de domínio estado-unidense, terminou. Durou umas duas décadas, pouco mais de um instante em termos históricos" [3] .
Uma degradação prolongada
Para entender o que está ocorrendo, bem como seus possíveis desenvolvimentos futuros, é necessário levar em conta fenômenos que modelaram o comportamento da sociedade norte-americana durante as últimas três décadas, gerando um processo mais amplo de decadência social. Em primeiro lugar, a deterioração da cultura produtiva, deslocada gradualmente por uma combinação de consumismo e práticas financeiras.
A precarização laboral incentivada a partir da presidência de Reagan procurava diminuir a pressão salarial, melhorando assim a rentabilidade capitalista e a competitividade internacional da indústria. Mas, a longo prazo, isto degradou a coesão laboral, o interesse dos assalariados para com as estruturas de produção, derivando para uma crescente ineficácia dos processos inovativos que passaram a ser cada vez mais difíceis e caros em comparação com os dos principais competidores globais (europeus, japoneses, etc).
Um dos seus resultados foi o déficit crônico e ascendente do comércio exterior (2 mil milhões de dólares em 1971, 28 mil milhões em 1981, 77 mil milhões em 1991, 430 mil milhões em 2001, 815 mil milhões em 2007).
Enquanto isso, foi-se expandindo a massa de negócios financeiros, absorvendo capitais que não encontravam espaços favoráveis no tecido industrial e outras atividades produtivas. As empresas e o Estado procuravam esses fundos, as primeiras para desenvolverem-se, concentrar-se, competir num mundo cada vez mais duro, e o segundo para financiar seus gastos militares e civis, que cumpriam um papel muito importante na sustentação da procura interna.
Recordemos, por exemplo, as despesas descomunais provocadas pela chamada "Iniciativa de Defesa Estratégica" (mais conhecida como "Guerra das Estrelas") lançada por Reagan em 1983 no momento em que o desemprego superava os 10% da População Economicamente Activa (o número mais elevado desde o fim da Segunda Guerra Mundial).
Um segundo fenômeno foi a concentração de rendimentos. Nos princípios dos anos 1980, os 1% mais ricos da população absorviam entre 7% e 8% do Rendimento Nacional. Vinte anos depois, o número havia duplicado e em 2007 rondava os 20%, o mais alto nível de concentração desde fins dos anos 1920. Por sua vez, os 10% mais ricos, que em meados dos anos 1950 absorviam um terço do Rendimento Nacional, passaram na atualidade a absorver 50% [4] .
Ao contrário do que ensina a "teoria econômica", a referida concentração não derivou em maiores poupanças e investimentos industriais e sim em mais consumo e mais negócios improdutivos que, com a ajuda do boom das tecnologias da informação e das comunicações, engendraram um universo semi-virtual por cima do mundo, quase mágico, onde fantasia e realidade misturam-se caoticamente. Por ali navegaram (e ainda navegam) milhões de norte-americanos, em especial nas classes superiores.
Entrelaçado com o anterior irrompeu um processo, a princípio quase imperceptível mas a seguir esmagador de desintegração social, em que um dos seus aspectos mais notáveis é o incremento da criminalidade e da subcultura da transgressão, que abrange os mais variados setores da população. Tal processo foi acompanhado pela criminalização de pobres, marginais e minorias étnicas. Actualmente, os cárceres norte-americanos são os mais populosos do planeta.
Em 1980 os EUA alojavam uns 500 mil presos, em 1990 cerca de 1.150.000, que em 1997 eram 1.700.000, aos quais havia que acrescentar 3.900.000 em liberdade vigiada ( probation etc.), mas em fins de 2006 os presos somavam uns 2.260.000 e os cidadãos em liberdade vigiada uns 5 milhões. No total, mais de 7.200.000 norte-americanos encontravam-se sob custódia judicial [5] .
Em abril de 2008, um artigo aparecido no New York Times assinalava que os EUA, com menos de 5% da população mundial, alojam 25% de todos os presos do planeta: um em cada 100 dos seus habitantes adultos encontram-se encarcerados. É o número mais alto no nível internacional [6] .
Militarização e decadência estatal
Outro fenômeno a ter em conta é a longa marcha ascendente do Complexo Industrial Militar, área de convergência entre o Estado, a indústria e a ciência que se foi expandindo desde meados dos anos 1930, atravessando governos democratas e republicanos, guerras reais ou imaginárias, períodos de calma global ou de alta tensão. Alguns autores, dentre eles Chalmers Johnson, consideram que os gastos militares foram o centro dinâmico da economia norte-americana desde a Segunda Guerra Mundial até às guerras euro-asiáticas da administração Bush-Cheney, passando pela Coréia, Vietnam, a "Guerra das Estrelas" e o Kosovo.
Segundo Johnson, que define a estratégia sobredeterminante seguida nas últimas sete décadas como "keynesianismo militar", o gasto bélico real do exercício fiscal de 2008 superaria os 1,1 milhões de milhões de dólares, o mais alto desde a Segunda Guerra Mundial [7] . Estes gastos foram crescendo ao longo do tempo, envolvendo milhares de empresas e milhões de pessoas.
De acordo com os cálculos de Rodrigue Tremblay em 2006, o Departamento da Defesa dos EUA empregou 2.143.000 pessoas, enquanto os empreiteiros privados do sistema de defesa empregavam 3.600.000 trabalhadores (no total, 5.743.000 postos de trabalho), aos quais há que acrescentar uns 25 milhões de veteranos de guerra. Em suma, nos Estados Unidos uns 30 milhões de pessoas (número equivalente a 20% da População Economicamente Activa) recebem de maneira direta ou indireta rendimentos provenientes da despesas públicas militares [8] .
O efeito multiplicador do setor sobre o conjunto da economia possibilitou, no passado, a prosperidade de um esquema que Scott MacDonald qualifica como "the guns and butter economy", ou seja, uma estrutura onde o consumo de massa e a indústria bélica expandem-se ao mesmo tempo [9] .
Mas este longo ciclo está chegando ao seu fim. A magnitude atingida pelos gastos bélicos converteram-nos num fator decisivo do déficit fiscal, causando inflação e a desvalorização internacional do dólar. Além disso, sua hipertrofia concedeu um enorme peso político a elites estatais (civis e militares) e empresariais, que foram embarcando num autismo sem contrapesos sociais.
O crescente refinamento tecnológico -- em paralelo com o encarecimento dos sistema de armas -- afastou cada vez mais a ciência militarizada das suas eventuais aplicações civis, afetando negativamente a competitividade industrial. Esta separação ascendente entre a ciência-militar (devoradora de fundos e talentos) e a indústria civil chegou a níveis catastróficos no período terminal da ex-União Soviética. Agora, a história parece repetir-se. A tudo isto acrescenta-se um acontecimento aparentemente inesperado.
As guerras do Iraque e do Afeganistão -- e de maneira indireta o fracasso da ofensiva israelense no Líbano -- mostram a ineficácia operativa da super-complexa (e super-cara) maquinaria bélica de última geração, posta em xeque por inimigos que operam de maneira descentralizada e com armas simples e baratas, o que disponibiliza uma grave crise de percepção (uma catástrofe psicológica) entre os dirigentes do Complexo Industrial Militar dos EUA e da NATO (na história das civilizações, esta não é a primeira vez que ocorre um fenômeno deste tipo).
Pois bem, a hipertrofia-crise da militarização está estreitamente associada (faz parte) à decadência do Estado, expressa pelo recuo da sua capacidade integradora (declínio da segurança social, predomínio da cultura elitista nos seus centros de decisão etc.), pela degradação da infraestrutura e por um déficit fiscal crônico e em aumento que redundou numa dívida pública gigantesca. Se nos ativermos às últimas quatro décadas, os superávits fiscais constituem uma raridade. A partir dos anos 1970, os déficits foram crescendo até chegarem, em princípios dos 1990, a níveis muito altos.
Entretanto, Clinton despediu-se em fins dessa década com alguns superávits que, observados do ponto de vista do longo prazo, surgem como fatos efêmeros. Mas desde a chegada de George W. Bush, o déficit regressou, atingindo números sem precedentes: 160 mil milhões de dólares em 2002, 380 mil milhões em 2003, 320 mil milhões em 2005...
Encontramo-nos agora frente a um Estado imperial carregado de dívidas, cujo funcionamento já não depende só do sistema financeiro nacional como também (cada vez mais) do financiamento internacional. Teria sido extremamente difícil à Casa Branca lançar-se na sua aventura militar asiática sem a compra dos seus títulos por parte da China, Japão, Alemanha e outras fontes externas.
A dependência energética
A tudo isto é necessário acrescentar a dependência petrolífera. Por volta de 1960 os Estados Unidos importavam 16% do seu consumo, que atualmente chegam aos 65%. Durante muito tempo puderam importar a preços baixos, mas agora a situação mudou, a produção mundial de petróleo está a aproximar-se do seu nível máximo (dentro de muito pouco tempo começará a descer) o que, combinado com o enfraquecimento do dólar, está a levar o preço a níveis nunca antes atingidos.
E a substituição parcial de combustível de origem fóssil por biocombustíveis (no qual também estão empenhadas as outras grandes potências industriais) reduz a disponibilidade relativa global de terras agrícolas para a produção de alimentos, o que provoca a subida geral dos preços dos produtos da agricultura. Em consequência, o efeito inflacionário amplifica-se.
Os Estados Unidos emergiram como um grande país industrial porque, desde princípios do século XX foram também a primeira potência petrolífera internacional. Tal como a Inglaterra durante o século XIX em relação ao carvão, gozaram de uma vantagem energética que lhes permitiu desenvolver tecnologias apoiadas no referido privilégio e competir com êxito com o resto do mundo. Mas em meados dos anos 1950, importantes peritos norte-americanos, como o geólogo King Hubbert, anunciaram o fim próximo da era de abundância energética nacional. Tal como antecipou Hubbert (em 1956), a partir de princípios dos anos 1970 a produção petrolífera estado-unidense começaria a declinar. Assim aconteceu.
A incapacidade dos Estados Unidos para reconverter seu sistema energético (teve quase quatro décadas para fazê-lo) reduzindo ou travando sua dependência em relação ao petróleo pode ser atribuída em primeiro lugar à pressão das companhias de petróleo, que impuseram a opção da exploração intensiva de recursos externos, periféricos, que foram superestimados. Poderia afirmar-se, neste caso, que a dinâmica imperialista forjou uma armadilha energética da qual agora é vítima o próprio Império.
O Estado não desenvolveu estratégias de longo prazo tendentes à poupança de energia – o que provavelmente teria desacelerado (não evitado) a crise energética actual – não só por imposição do lobby petrolífero como também porque suas cúpulas políticas (democratas e republicanas) foram-se submergindo na cultura do curto prazo correspondente à era da hegemonia financeira, subordinando-se por completo aos interesses imediatos dos grupos econômicos dominantes.
Mas também deveríamos refletir acerca dos limites do sistema tecnológico ocidental moderno, que os estado-unidenses exacerbaram ao extremo. O mesmo reproduziu-se em torno de objectos técnicos decisivos da cultura individualista (o automóvel, por exemplo), que definem o estilo de vida dominante e de procedimentos produtivos baseados na exploração intensiva de recursos naturais não renováveis ou na destruição dos ciclos de reprodução dos recursos renováveis.
Graças a esta lógica destrutiva, o capitalismo industrial na Europa pôde, desde fins do século XVIII, tornar-se independente dos ritmos naturais, submetendo brutalmente a natureza e acelerando sua expansão.
Isto aparecia, perante os admiradores do progresso dos séculos XIX e XX, como a grande proeza da civilização burguesa. Uma visão mais ampla permite-nos agora dar-nos conta de que se tratava do desdobrar de uma das suas irracionalidades mais fundamentais -- que os Estados Unidos, o capitalismo com mais êxito da história, levou ao mais alto nível jamais alcançado.
Desequilíbrios, dívidas, queda do dólar
A perda de dinamismo do sistema produtivo foi compensada pela expansão do consumo privado (centrado nas classe altas), pelos gastos militares e pela proliferação de atividades parasitárias lideradas pelo sistema financeiro, o que engendrou crescentes desequilíbrios fiscais e do comércio exterior e uma acumulação incessantes de dívidas públicas e privadas, internas e externas.
A dívida pública norte-americana passou de 390 mil milhões de dólares em 1970 para 930 mil milhões em 1980, para 3,2 milhões de milhões em 1990, para 5,6 milhões de milhões em 2000 até saltar para 9,5 milhões de milhões (!) em abril de 2008.
Por sua vez, a dívida total dos estado-unidenses (pública mais privada), na última data mencionada, rondava os 53 milhões de milhões de dólares (aproximadamente o equivalente ao Produto Bruto Mundial). Desse número, 20% (uns 10 milhões de milhões de dólares) são constituídos por dívida externa. Só durante o ano de 2007 a dívida total aumentou cerca de 4,3 milhões de milhões de dólares (o equivalente a 30% do Produto Interno Bruto norte-americano) [10] .
O processo foi coroado por uma sucessão de borbulhas especulativas que marcaram, desde os anos 1990, um sistema que consumia para além das suas possibilidades produtivas. A partir dos anos 1970-1980, é possível observar o crescimento paralelo de tendências perversas -- como os déficits comercial, fiscal e energético, os gastos militares, o número de presos e as dívidas públicas e privadas. Todas estas curvas ascendentes surgem atravessadas por algumas tendências descendentes. Exemplo: a diminuição da taxa de poupança pessoal e a queda do valor internacional do dólar (que se acelerou na década atual), expressão do declínio da supremacia imperial.
A articulação desses fenômenos permite-nos esboçar uma totalidade social decadente em que se incorporam (convergem) uma grande diversidade de fatos de diferentes magnitude (culturais, tecnológicos, sociais, políticos, militares etc.). Esta visão de longo prazo coloca a "era dos falcões" presidida por George W. Bush como uma espécie de "salto qualitativo" de um processo com várias décadas de desenvolvimento, e não como um facto excepcional ou um desvio negativo. Estaríamos diante da fase mais recente da degradação do capitalismo estatista-keynesiano iniciado nos anos 1970, pontapé inicial da crise geral do sistema.
A experiência histórica ensina que esses arranques rumo ao inferno (hell, em Inglês) cresçam em meio a euforias triunfalistas, aonde por trás de cada sinal de vitória oculta-se uma constatação de desastre. A louca corrida militar sobre a Eurásia estava (ainda está) no centro do discurso acerca do suposto combate vitorioso contra um inimigo (terrorista) global imaginário, que submergiu no pântano as forças armadas imperiais. As expansões desenfreadas da borbulha imobiliária e das dívidas eram ocultadas pelos número dos aumentos do Produto Interno Bruto e da sensação (midiática) de prosperidade.
Como os EUA constituem hoje o centro do mundo (do capitalismo global), seu declínio é ainda o do espaço essencial da interpenetração produtiva, comercial e financeira em escala planetária, que se foi acelerando nas últimas três décadas até formar uma trama muito densa da qual nenhuma economia capitalista desenvolvida ou subdesenvolvida pode escapar (sair dessa rede emaranhada significa romper com a lógica, com o funcionamento concreto do capitalismo integrado por classes dominantes locais altamente transnacionalizadas).
Durante a presente década, a expansão econômica na Europa, China e outros países subdesenvolvidos e o modesto (efêmero) fim do estancamento japonês costumavam ser mostrados como o restabelecimento de capitalismos maduros e a ascensão de jovens capitalismos periféricos, quando na realidade tratou-se de prosperidades estreitamente relacionadas com a expansão consumista-financeira norte-americana. Os Estados Unidos representam 25% do Produto Bruto Mundial e são o primeiro importador global.
Em 2007, compraram bens e serviços no valor de 2,3 milhões de milhões de dólares, são o principal cliente da China, Índia, Japão, Inglaterra e o primeiro mercado extra-europeu da Alemanha. Mas é sobretudo no plano financeiro, área hegemônica do sistema internacional, em que se destaca a sua primazia. Exemplo: a rede dos negócios com produtos financeiros derivados (mais de 600 milhões de milhões de dólares registados pelo Banco da Basiléia, ou seja, umas 12 vezes o Produto Mundial Bruto) articula-se a partir da estrutura financeira norte-americana.
As grandes bolhas especulativas imperiais irradiam para o resto do mundo, de maneira direta ou gerando bolhas paralelas, como foi possível comprovar com a experiência recente da especulação imobiliária nos Estados Unidos -- e seus clones diretos em Espanha, Inglaterra, Irlanda e Austrália, ou indiretos como a superbolha bursátil chinesa.
Se observarmos o comportamento econômico das grandes potências, comprovaremos em cada caso como suas esferas de negócios superam sempre os limites dos respectivos mercados nacionais -- e inclusive regionais --, cuja dimensão real torna-se insuficiente do ponto de vista do volume e da articulação internacional das suas atividades. A União Européia está solidamente atada aos Estados Unidos em nível comercial, industrial e principalmente financeiro.
O Japão acrescenta a isso a sua histórica dependência das compras norte-americanas, e por sua vez a China desenvolveu sua economia no último quarto de século na base das suas exportações industriais para os Estados Unidos e para países como Japão, Coréia do Sul e outros, fortemente dependentes do Império.
Enfim, o renascimento russo gira em torno das suas exportações energéticas (destinadas principalmente à Europa), enquanto sua elite econômica foi-se estruturando desde o fim da URSS multiplicando suas operações à escala transnacional, em especial seus vínculos financeiros com a Europa ocidental e os EUA.
Não se trata de simples laços diretos com o Império e sim da reprodução ampliada e acelerada de uma complexa rede global de negócios, mercados interdependentes, associações financeiras, inovações tecnológicas etc., que integra o conjunto de burguesias dominantes do planeta.
O mundo financeiro hipertrofiado é o seu espaço de circulação natural e seu motor geográfico são os Estados Unidos, cuja decadência não pode ser dissociada do fenômeno mais amplo da chamada globalização, ou seja, da financiarização da economia mundial.
Poderíamos visualizar o Império como sujeito central do processo, seu grande beneficiário e manipulador, e ao mesmo tempo como seu objeto, produto de uma corrente que o levou até o mais alto nível de riqueza e degradação. Graças à globalização, os Estados Unidos puderam sobre-consumir pagando ao resto do mundo com os seus dólares desvalorizados, impondo-lhe o seu entesouramento (sob a forma de reservas) e seus títulos públicos, que financiaram seus déficits fiscais.
Ainda, também, graças ao parasitismo norte-americano os europeus, chineses, japoneses etc. puderam colocar no mercado mundial uma porção significativa das suas exportações de mercadorias e de excedentes de capitais. Neste sentido, o parasitismo financeiro, produto da crise de superprodução crônica, é simultaneamente norte-americano e universal. A outra face do consumismo imperial é a reprodução de capitalismos centrais e periféricos, que necessitam transpor seus mercados locais para fazer crescer seus lucros.
Isto é evidente nos casos da Europa ocidental e Japão, mas também é evidente no caso da China, que exporta graças a seus baixos salários (comprimindo seu mercado interno). O que está agora a afundar não é a nave principal da frota (se assim fosse, numerosas embarcações poderiam salvar-se). Só há uma nave e é o seu setor decisivo que está a fazer água.
Horizontes turbulentos e ilusões conservadoras
Devemos pôr no seu contexto histórico as atuais intervenções dos Estados dos países centrais destinadas a contrapor-se à crise. Nos últimos meses, proliferaram ilusões conservadoras mencionadas como possível desconexão de várias economias industriais e subdesenvolvidas em relação à recessão imperial, mas os factos vão derrubando tais esperanças.
Junto a elas, surgiu a fantasia do renascimento do intervencionismo keynesiano: segundo a referida hipótese o neoliberalismo (entendido como simples desestatização da economia) seria um fenômeno reversível -- e novamente, como há um século, o Estado salvaria o capitalismo.
Na realidade, nas últimas quatro décadas produziu-se nos países centrais um fenômeno duplo: por um lado a degradação geral dos Estados que, mantendo seu tamanho em relação a cada economia nacional, ficaram submetidos aos grupos financeiros, perdendo legitimidade social. E por outro foram progressivamente ultrapassados pelo sistema econômico mundial, não só por sua trama financeira como também por operações industriais e comerciais que burlavam os controles (cada vez mais frouxos) das instituições nacionais e regionais.
Nos Estados Unidos, o referido processo avançou mais do que em nenhum outro país desenvolvido. Nunca foi abandonado o histórico keynesianismo militar, pelo contrário, o Complexo Militar-Industrial hipertrofiou-se articulando-se com um conjunto de negócios mafiosos, financeiros, energéticos etc., que se converteu no centro dominante do sistema de poder, apropriando-se grosseiramente do aparelho estatal até convertê-lo em uma estrutura decadente. Nos países centrais, o Estado intervencionista (de raiz keynesiana) não precisa regressar porque nunca se foi.
Ao longo das últimas décadas, obediente às necessidades das áreas mais avançadas do capitalismo, o mesmo foi modificando suas estratégias, apoiando a concentração de rendimentos e os desenvolvimentos parasitários, mudando sua ideologia, seu discurso (ontem integrador, social, produtivista-industrial, hoje elitista, neoliberal e virtualista-financeiro).
No mundo subdesenvolvido, onde o estatismo retrocedeu até ser em numerosos casos triturado pela onda depredadora imperialista, a desestatização foi sua forma concreta de submissão à dinâmica do capitalismo global.
Ali, o regresso ao Estado interventor-desenvolvimentista de outras épocas é uma viagem no tempo fisicamente impossível. As burguesias dominantes locais, seus negócios decisivos, estão completamente transnacionalizados ou então sob a tutela direta de firmas transnacionais. Agora em plena crise, ficam a descoberto os dois problemas sem solução à vista do Estado desenvolvido (imperialista): sua degeneração estrutural e sua insuficiência, sua impotência perante um mundo capitalista demasiado grande e complexo.
É o que assinala Richard Haas no artigo citado acima, ainda que sem dizer que não se trata de uma reconversão positiva sobredeterminante do capitalismo internacional aquilo que encurrala o Estado norte-americano e os outros Estados centrais e sim, antes, de um fenômeno mundial negativo que, de maneira rigorosa, deveríamos definir como decadência global (econômica-institucional-política-militar-tecnológica).
É por isso que o paralelo (agora na moda em certos círculos de peritos) entre a implosão soviética e a provável futura implosão dos Estados Unidos é totalmente insuficiente, porque existe, entre outras coisas, uma diferença de magnitude decisiva: o hipergigantismo do Império faz com que o seu afundamento tenha o poder de arrastamento sem precedentes na história humana.
E também porque os Estados Unidos não constituem "um mundo à parte" (marginalizado) e sim o centro da cultura universal (o capitalismo), a etapa mais recente de uma longa história mundial em torno do Ocidente.
A imensidade do desastre em curso, a extrema radicalidade das rupturas que pode chegar a engendrar, muito superiores às que causaram a crise iniciada em 1914 (que deu nascimento a um longo ciclo de tentativas de superação do capitalismo e também do fascismo, tentativa de recomposição bárbara do sistema burguês) gera reações espontâneas negadoras da realidade nas elites dominantes, nos espaços sociais conservadores e para além deles, mas a realidade da crise vai-se impondo.
Todo o edifício de idéias, de certezas de diferentes sinais, construído ao longo de mais de dois séculos de capitalismo industrial está começando a rachar.
Notas
(1) Paul Craig Roberts, The collapse of American power, Online Journal, 20-03-2008;
(2) Peter Morice, Bush Administration Dithers While Rome Burns. The Deepening recesion, Counterpunch, April 3, 2008;
(3) Richard Haass, What follows American dominion?, Financial Times, April 16, 2008;
(4) Center on Budget and Policy Priorities;
(5) U.S. Department of Justice - Bureau of Justice Statistics;
(6) Adam Liptak, American Exception. Inmate Count in U.S. Dwarfs Other Nations, The New York Times, April 23, 2008;
(7) Chalmers Johnson, Going bankrupt: The US's greatest threat, Asia Times, 24 Jan 2008;
(8) Rodrigue Tremblay, The Five Pillars of the U.S. Military-Industrial Complex, September 25, 2006, http://www.thenewamericanempire.com/tremblay=1038.htm
(9) Scott B. MacDonald, End of the guns and butter economy, Asia Times, October 31, 2007;(10), Grandfather Economic Report, http://mwhodges.home.att.net/.
http://resistir.info
TIRE DÚVIDAS