A exposição Mário Mendez - O mestre da caricatura, apresentada no Espaço Cultural Correios (Centro de Fortaleza/CE) pelo Núcleo ArtZ, comemora o Centenário de um dos maiores artistas cearenses, reconhecido entre os seus pares brasileiros pelo traço inconfundível e pela herança deixada a gerações de caricaturistas.
O artista, que colaborou para o sucesso de várias publicações, hoje é pouco lembrado no Ceará. Na exposição, seu traço elegante passeia entre encantadoras caricaturas de políticos, músicos, pintores e outras personagens de sua época, produzidas ao longo de sua carreira de quase 70 anos. A mostra traz ainda ilustrações, pinturas e fotos de sua autoria.
O evento tem curadoria do ilustrador e poeta Klévisson Viana, responsável pela vinda de Mendez à capital do Ceará em 1992 para ser homenageado no I Salão Nacional de Humor de Fortaleza. Mas quem foi Mário Mendez?
Nascido em Baturité em 1907, Mário de Oliveira Mendes, o Mendez, mudou-se para o Rio de Janeiro aos 17 anos. Sua carreira artística teve início com a publicação de sua primeira caricatura na Revista Musical, em 1.º de julho de 1927. A partir de então, passou a colaborar com diversos jornais e revistas, entre eles A Noite, Folha Carioca, Revista do Rádio, Radiolândia, Revista da Semana e O Cruzeiro, contribuindo para o seu sucesso.
Mendez destacou-se por seu traço preciso, facilmente reconhecível, que se tornou sua marca de humor irreverente, despertando a satisfação de alguns e causando incômodo a outros dos seus caricaturados. Certos personagens temiam tornar-se o seu próximo “alvo”. O cantor Orlando Silva, por exemplo, tentou impedir a publicação de sua caricatura, na qual figurava com cara de carneiro. Em vão: Mendez argumentou que “caricatura não humilha ninguém. Ao contrário, enaltece”.
Por outro lado, o artista agradava a figuras como Getúlio Vargas, Ângela Maria e Cândido Portinari. A caricatura de Getúlio criada por Mendez inclusive participou, garbosamente, da campanha eleitoral que conduziu o gaúcho à Presidência da República pela segunda vez (1951-54).
Ao final de sua trajetória profissional, o cearense dedicou-se também à pintura, admitindo ter sempre feito ensaios com os pincéis, no retrato, na paisagem ou na figura. "Minha pintura não está ligada a nenhuma escola. Faço o que sinto e o que gosto de fazer. O que faço é por intuição", afirmou. Sua produção foi interrompida apenas pela morte, em 1996, aos 90 anos.
Núcleo ArtZ:
Em sua notável iniciativa de resgate dos grandes nomes do desenho cearense, os produtores Weaver Lima e Franklin de Oliveira, do Núcleo ArtZ, com esta exposição sobre Mendez dão continuidade ao trabalho que realizou, em 2007, no CCBNB-Centro Cultural do BNB, exposição em homenagem ao Centenário do cartunista Luiz Sá.
CHEGUE JUNTO
Mendez – O Mestre da Caricatura, de 9 de outubro a 22 de novembro
Espaço Cultural Correios - Agência Central de Fortaleza/CE
Rua Senador Alencar, 38 - Centro
Produção: Núcleo ArtZ
http://nucleoartz.blogspot.com
*Na imagem, a autocaricatura do artista contempla um painel de personagens em seu traço característico
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Mário Mendez, um traço calado
Mendez nasceu em Baturité, Ceará, à zero hora do dia 25 de dezembro de 1907. Chegou ao mundo causando maior confusão, pois a única parteira da cidade assistia à Missa do Galo. O pai, apavorado, entrou às pressas na igreja e arrastou-a para casa. O dia festivo quase carimbou-lhe o nome de Natalino. Mas o pai -- José Mendes de Brito Arraes -- voltou atrás.
Seja como for, a mudança de nome deve ter marcado o menino, pois mais tarde alteraria o "s" do sobrenome por "z". Durante a infância, interessou-se pelo desenho e passava horas copiando caricaturas de J.Carlos, Kalixto e Storne. Cresceu com a arte nas veias e punha isso em prática vendendo bonecos e cartões pintados por ele mesmo. Era simples: montava uma barraca em frente à igreja da cidade para onde se havia mudado (Carutapera/MA).
Certa vez, já morando em Iguatu/CE, precisando de grana, pegou um serviço para pintar o nome de uma mercearia na parede. Preparou a tinta com anil e goma arábica. Ele conta: "Naquela região já não chovia há muito, mas dei azar; choveu durante a noite, levantei de madrugada, ainda escuro e fui olhar os letreiros. Que calamidade! A frente da mercearia estava em petição de miséria, já não se lia o letreiro. A frente da casa estava toda borrada de azul. Não esperei mais nada. Fui à casa de outra tia onde estava hospedado, enfiei algumas roupas numa valise e corri para a estação; comprei uma passagem e peguei o primeiro trem para Fortaleza".
Foi na capital cearense que teve o primeiro contato com a pintura. Mostrou alguns desenhos ao dono do atelier -- Manoel Queirós -- e foi pego como ajudante, sem ganhar nada. Assim seguiu, até que apareceu um tenente da Marinha querendo um cartaz para convocar voluntários. Mendez, que sonhava em viajar, ofereceu-se. Disse que tinha 18 anos (quando tinha 17) e, com essa idade, desembarcou no Rio de Janeiro.
Serviu na banda de música do regimento. Certa vez, fez a caricatura do regente da banda e mostrou-a ao tenente. Logo o desenho saiu na Revista Musical. Era o início de sua carreira de caricaturista. Três anos depois, foi convidado para fazer ilustrações de Carnaval para o jornal A Manhã. Foi um sucesso, e Mendez acabou efetivado.
Também colaborava com os jornais A Batalha, A Esquerda, Vanguarda e o Radical. Os caricaturistas da época eram Kalixto, Romano, Guevara, Raul Pederneiras, Justinus e Figueroa (que muito influenciou Mendez). Envolvendo-se com esses artistas, acabou conhecendo Luiz Sá, conterrâneo que fazia histórias em quadrinhos da série Reco-reco, Bolão e Azeitona para as revistas O Tico-Tico e O Malho.
Foi incentivado por Raul Pederneiras, que fazia Cenas da vida carioca para a Revista da Semana e publicava sátiras no Jornal do Brasil. Artistas conhecendo artistas dão sempre uma história boa. Certo dia, quando almoçava numa pensão, viu um cara numa mesa e achou-o caricaturável, tirou um papel do bolso e desenhou-o. A dona da pensão viu e disse a Mendez que aquele cara era (o colega) J.Carlos. Mendez quase teve um treco. Seu ídolo desde a infância estava ali perto! A dona da pensão não perdeu tempo e apresentou Mendez a J.Carlos. Mendez tremia. Só se aquietou quando recebeu elogios do mestre sobre o seu trabalho.
Caricaturistas são debochados e ousados. Quando Mendez casou-se, em 1933, a notícia foi publicada no jornal -- porém, no lugar da tradicional foto, havia uma caricatura dos noivos! Em 1935, Mendez organizou uma exposição de desenhos feitos durante uma viagem à Bahia, Pernambuco e Ceará. No mesmo ano, publicou o livro Tipos e costumes do negro no Brasil.
Um ano depois, seus desenhos saíram na revista O Cruzeiro, despertando o interesse de Belmonte: o "monstro sagrado" da charge trabalhava na Folha da Manhã em São Paulo e convidou Mendez para trabalhar com ele. Em 1938, voltou ao Rio para trabalhar no jornal A Noite, junto com os "feras" da charge: Álvarus, Carlos Thiré, chargista e quadrinhista (criador dos personagens Gavião de Riff, Bob Lloyd, Rafles e Os Três Legionários da Sorte) e Monteiro Filho (que idealizou o personagem Roberto Sorocaba).
Mendez foi ficando famoso. Caricaturava figuras importantes da política e das artes brasileiras. Ele conta que Dalva de Oliveira chorou de desgosto durante uma semana quando viu sua caricatura na revista Carioca. Orlando Silva também ficou aborrecido com ele por ter sido caricaturado com cabeça de carneiro.
Isso não abalou sua carreira, nem sua fama. Em 1941, quando Walt Disney esteve no Rio, vários artistas foram apresentados a ele: J.Carlos, Luiz Sá, Jorge Bastos e... Mendez. Além de desenhar, Mário Mendez era preocupado com arte. Ele comentou: "O humor na caricatura brota espontaneamente. Ele vem só e naturalmente. Não o tentamos nunca... É conseqüência fácil... Se nos acharem rebeldes, não o somos voluntariamente. Rebeldia é fugirmos de uma norma, e como em caricatura não há normas, é absurdo sairmos de uma coisa que não existe. Quantos políticos não devem sua popularidade aos caricaturistas? E no entanto, muitos não gostam de ser caricaturados... Felizmente, não são todos."
Para a campanha de eleição de Getúlio Vargas, o PTB-Partido Trabalhista Brasileiro usou uma caricatura feita por Mendez. Além de Getúlio, Dorival Caymmi e outras personalidades famosas passaram pela ponta de seu lápis in loco: a primeira-dama argentina Eva Perón, o presidente norte-americano Harry Truman, o multiartista Burle Marx, o maestro espanhol Xavier Cugat.
Em 1973 Mendez foi entrevistado por Ziraldo, Nássara e Augusto Rodrigues para o Museu da Imagem e do Som. Sobre a caricatura, disse: "As melhores caricaturas sempre foram aquelas das pessoas com quem a gente convive, das quais podemos captar traços da personalidade que só notamos mesmo com a convivência. Pois como já foi dito, a caricatura é o retrato da alma... Eu acho que uma caricatura acertada, às vezes, vale mais do que uma fotografia. Na foto, as pessoas vão mudando de ano para ano, enquanto a boa caricatura retrata a pessoa durante anos a fio!".
A certa época de sua vida, Mendez abandonou o desenho. Aposentou-se! Mas a veia artística impulsionou-o à música. Trocou o lápis pelo violão. A esposa, Emília, vendo sua capacidade musical, sugeriu que entrasse numa banda. Mendez pensou, pensou e desistiu, largou o violão e voltou ao desenho...
Artista nato e autodidata, Mendez não teve professor nem fez curso algum. Aprendeu tudo vendo, observando e comparando. A caricatura foi sua profissão, meio de expressão e vida. Ele dizia "A gente nasce caricaturista, vira desenhista e morre pintor. Como exemplos, lembro Columbano (Bordalo Pinheiro) de Portugal, (Honoré) Daumier e (Henri de) Toulouse-Lautrec da França, (José Clemente) Orozco do México... e (Emiliano) Di Cavalcanti, que também começou a carreira como caricaturista."
Ele continuou: "Tanto a pintura como a escultura vêm do desenho. Hoje, há uma concepção diferente em relação a essa idéia, devido ao abstracionismo. Mas a pintura figurativa vem sempre do desenho. A cor é inerente. É uma questão de sentimento. Minha pintura não está ligada a nenhuma escola. Faço o que sinto e o que gosto de fazer. O que faço é por intuição."
Mário Mendez esteve ligado à caricatura e ao humor até o fim da vida. Caricaturou Chico Caruso e em1996 foi homenageado no Salão de Humor de Piracicaba. Mas o tempo neste mundo é curto para mestres e gênios... e o criador voltou ao Criador. O traço de Mendez calou-se no mesmo mês em que nasceu, 90 anos depois -- dezembro de 1997. Sua arte está registrada em duas obras editadas pela Ediouro: Caricaturas e caricaturados e Como fazer caricaturas.
* O jornalista e quadrinhista Fernando Moretti publicou este texto em seu blog Humor Vítreo
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