Um tortuoso hábito de reflexões me pôs a pensar nos objetos que detestamos, mas que por alguma razão somos obrigados a possuir. Pois, de todos os pertences impostos, o mais antipático talvez seja o relógio.
Provavelmente a infância acaba no momento em que se aprende as horas. Na mais tenra idade, uma criança tem a liberdade de acordar pela manhã sabendo apenas isso: que é manhã.
Não precisa, como os adultos, saber que são 6h15min, que é preciso tomar o café durante três minutos, depois um banho de, no máximo, 10 minutos, para perder sabe-se lá quanto tempo rumo a um destino previamente agendado.
Argumentem que a culpa não é dos relógios, mas do sistema de obrigações que nos força a atividades cronometradas. Esse raciocínio com certeza é lógico, mas não me convence.
Para mim, o instante em que se posta um filho diante do grande relógio da sala, a lhe ensinar os mistérios do tempo, é decisivo. Instalar a noção abstrata (e absurda) de que cada espaço entre um risco e outro representa cinco minutos, força um amadurecimento repentino.
Algo interrompe todo o fluxo imaginário que permitia à criança associar aquele instrumento com um círculo contendo dois bracinhos, rascunho de boneco ou brinquedo secreto. A perda desse potencial imaginativo ocorre em paralelo com uma redução do próprio conceito de "dia".
Se antes esse período significava uma passagem suave entre as palavras "manhã", "tarde" e "noite", depois do aprendizado a criança resume o dia em números, de acordo com as horas. Viver regulado(a) por algarismos, e não mais por imagens, é a grande perda nesse processo.
O abandono da infância acontece com essa aceitação do tempo como algo calculável. No instante em que negamos as outras possibilidades -- tão mais belas e criativas -- para sentir a passagem de uma existência, viramos coisas previsíveis e funcionais, tão monótonas quanto um tic-tac.
Tive dificuldade em aprender as horas. Talvez já adivinhasse que esse tipo de iniciação me roubaria a inocência. Até os 11, 12 anos, tinha de usar relógio digital para evitar o vexame, se alguém me perguntasse o horário.
E mesmo assim, usava com má-vontade aquela pulseira -- sentia o seu caráter de algema: o tempo me carregava pela mão, me obrigava a seguir a trilha dele. Por isso é que, ainda hoje, a primeira providência que tomo quando chego em casa é me soltar do relógio de pulso, para sentir as batidas cardíacas liberadas.
Sim, admito que sou um pouco dramática. Reconhecer essa característica me faz flexível, e acabo seguindo as velhas convenções. Embora não concorde com a escravização que o tempo -- assim representado por um mero objeto -- ordena, obedeço a ela, chegando pontualmente a meus compromissos.
Já em casa, território que considero único, tenho três relógios, e cada qual indica um horário um pouco diferente do outro. Para confundi-los, gosto de atrasar a hora de um, adiantar a do outro... É o meu modo de mostrar (para eles e para mim mesma) que não sou totalmente submissa e que conheço também outros tipos de tempo.
* Tércia Montenegro é escritora, fotógrafa e professora da UFC-Universidade Federal do Ceará (image by Ossi -- "Generations in the course of time")
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