28 fevereiro 2011

"ACABATIVA"

Fazer acontecer* 




Em meu penúltimo artigo de 2010 dei início ao que pretendo seja uma série sobre a "Acabativa", neologismo que indica "a capacidade de fazer acontecer". 


Uma leitora, a Paula Cristina, me escreveu: "...vamos colocar pessoas como eu dando conselhos aos outros, ou melhor, repassando. Mas na hora 'H', fica difícil aplicar o que aprendi durante anos, e entro em pânico. 


Será que é possível colocar as idéias em prática sem a ajuda de toda esta gente com textos maravilhosos? Quem sabe você formula um lindo texto e destrincha esta questão?"


Vou tentar. Paula, muitas vezes esses “conselhos” que recebemos tratam do “o que fazer” e nos vemos paralisados diante do “como fazer”. Isso acontece com todo mundo...


O melhor é desenvolver um método para fazer acontecer.


“Método” vem do grego méthodos, que quer dizer “caminho para chegar a um fim”.

Ao tomar banho, por exemplo, você prende o cabelo da mesma forma, ensaboa primeiro uma parte do corpo, depois outra, e ao se enxugar segue uma rotina. É o seu método.



É por meio de métodos (ou processos) que os objetivos estratégicos pessoais e das empresas são atingidos. Por exemplo, para perder peso os métodos podem ser: tomar remédios, fazer dietas ou praticar exercícios físicos.


Para dar suporte a esses métodos, precisamos dos conhecimentos do médico, da nutricionista e do professor de educação física. E da tecnologia de aparelhos de ginástica, do tênis à esteira computadorizada.


Se dividirmos as providências necessárias para agir e perder peso, acabaremos chegando a um método óbvio: primeiro, tem que estar clara a necessidade de que TEMOS de perder peso. 


Se não estivermos convencidos, se não entendermos a razão de perder peso e os benefícios, não vamos nem começar.


Portanto, a compreensão da inconveniência que precisa da ação vem em primeiro lugar.


No próximo passo, temos que descobrir O QUE fazer: perguntando a quem tem ou teve a mesma inconveniência, lendo a respeito, consultando especialistas que dirão o que deve ser feito e até mesmo COMO fazer.


Em seguida, precisamos do conhecimento e da tecnologia para agir. Que dieta fazer? Temos grana pra pagar uma academia? Se não temos, dá pra fazer o exercício em casa? Onde aprender os exercícios?


Depois, é preciso definir indicadores que mostrem que estamos no caminho certo: medir o peso todo dia? Fazer um exame de sangue periódico? Determinar a taxa de gordura e acompanhar? Experimentar roupas antigas pra saber se servem?


Quem já sentiu o prazer de subir numa balança e descobrir que está um quilo mais leve, sabe do que estou falando. A sensação de vitória deste indicador de sucesso — a balança — é que vai nos motivar a continuar seguindo o método.


Bem, não dá para escrever aqui um tratado, tem que ser aos poucos, mas acho que deu pra dar uma pista: para praticar a acabativa é conveniente desenvolver um método.


Que implica em convencer-se de que algo tem que ser feito. Buscar conhecimento sobre o que fazer. Desenvolver as tecnologias necessárias para executar. E definir como medir o resultado.

Parece óbvio, não é? E é óbvio.


Mas como é difícil fazer...



* Luciano Pires é jornalista, escritor e palestrante. 
La Château des Pyrénées por René Magritte em anatheimp.blogspot.com


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www.portalcafebrasil.com.br

22 fevereiro 2011

ESCREVER DIREITO

Um bom começo*







O mercado está se organizando para atender a crescentes demandas de ensino da disciplina Língua Portuguesa. Cada vez mais empresas abrem cursos para que seus profissionais aprendam aquilo que as escolas de diversos níveis não lhes deram, embora eles tenham saído dali com diplomas nisso e naquilo.

Quem deu o passo inicial para atender a tal demanda foi, na verdade, a imprensa. Vários jornais não dispensam manuais de redação e professores de Língua Portuguesa. É o caso da
Folha de S.Paulo, com Pasquale Cipro Neto; do Extra, com Sérgio Nogueira; de Zero Hora, com Cláudio Moreno.

São abundantes os erros de ortografia em cartas, informativos, avisos, relatórios e, principalmente, em e-mails. Aliás, a Internet prima por oferecer abundantes exemplos de como se escreve mal. 


Basta ver os comentários aos artigos que ensejam a participação dos internautas. Se tais redações constituíssem prova de Língua Portuguesa no vestibular, a maioria dos comentaristas tiraria zero, pois esta é a nota atribuída a quem não trata do tema proposto.

Isto é, não seria necessário o examinador sequer perder seu tempo corrigindo os numerosos erros de ortografia e de sintaxe ali estampados. Descontemos também a arrogância, invariavelmente aliada à ignorância. Todos acham que sabem tudo. Já achavam isso na escola, quando não estudavam nada.


Nas empresas, os sinais de que algo precisa ser feito são frequentemente reiterados. Não apenas em e-mails, mas principalmente neles, não importa quem seja o destinatário (superior ou colega), os textos semelham misteriosas mensagens cifradas. 

Contados, descontados e perdoados os tropeços ortográficos, para os quais a tolerância zero não é admitida, o destinatário vê-se diante de um caos, a começar pela falta de clareza, pelo gerundismo, pelas frases soltas, prolixas, sem objetividade alguma.

Naturalmente, são perdoados também os cacófatos, as rudezas e a ausência de um mínimo de gentileza e de cortesia no trato com superiores ou colegas.


Em matéria intitulada A carreira nas alturas (revista Língua Portuguesa, ano 5, nº 63, janeiro/2011), Adriana Natali identifica o gerundismo como o quarto erro mais comum, depois da falta de clareza, da prolixidade e do uso excessivo do “que”, classificado como “queísmo”. 

O gerundismo tomou conta de falas e textos nas empresas. Eis alguns exemplos: “Vamos estar mandando isso na semana que vem”; “vou estar transferindo o senhor para o vendedor”; “ninguém sabe quando ele vai estar voltando”. Etc.


A concordância verbal (“segue (sic) os documentos solicitados”), a confusão entre “a” e “há” (“a” indicando o futuro; “há”, o passado), a má colocação dos pronomes e os problemas de pontuação completam o caos. 

Como as escolas falharam, as empresas tratam de consertar. De todo modo, desde há alguns anos, diversas faculdades e universidades vêm tornando indispensável a disciplina Língua Portuguesa em todos os cursos superiores que oferecem. São bons recomeços, mas ainda insuficientes.


*Deonísio da Silva é Pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá. Image by Anthony Russo

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19 fevereiro 2011

MUITO ALÉM DO HIP-HOP

Invisível nunca mais


No dia 16/02, a presidência nacional da CUFA-Central Única das Favelas foi transferida para a representação do Ceará. O rapper Preto Zezé recebeu uma estatueta de madeira simbólica -- o pássaro anu* -- das mãos do também rapper carioca MV Bill, no palco do Theatro José de Alencar. O anu passou de mão em mão pelos coordenadores da CUFA de todo o Brasil, que se perfilaram no corredor central do teatro

Em seu percurso Zezé cruzou a linha que segrega favela e asfalto
Criada há 13 anos, a CUFA-Central Única das Favelas reuniu um grupo de jovens de várias favelas do Rio de Janeiro, que buscavam espaço para expressar suas ideias, questionamentos e atitudes. Embora o hip-hop fosse sua principal forma de expressão, o movimento ampliou seus horizontes e lançou ações para as esferas políticas, sociais, esportivas e culturais do País. 

Em 2011, com sede em todas as capitais brasileiras, a CUFA pôs em prática dois de seus ideais básicos: democratizar e descentralizar o poder.

Em cerimônia no Theatro José de Alencar em Fortaleza/CE, os cariocas MV Bill e Nega Gizza, respectivamente presidente e vice-presidente nacional da CUFA, transmitiram seus postos na instituição para Preto Zezé e Karina Santiago, então coordenadores gerais das CUFAs Ceará e Mato Grosso.

“A CUFA é muito democrática e é um modelo do que eu gostaria que fosse mudado no País. A alternância de poder é sempre muito saudável”, defende o rapper MV Bill, premiado pela UNESCO em 2004 como uma das 10 pessoas mais militantes da década.

Após 13 anos com a mesma direção, os escritórios estaduais decidiram mudar. “Esses nomes (Preto Zezé e Karina Santiago) surgiram de forma muito natural. O Zezé é um dos caras mais inteligentes e articulados que conheço e essa decisão ajuda a quebrar essa coisa do eixo Rio-São Paulo. Uma das coisas mais interessantes da CUFA é fazer com que o protagonismo seja a nossa marca”, define Bill.

“Muito além do hip-hop”. É assim que Preto Zezé avalia o trabalho realizado pela CUFA no Ceará, criada oficialmente em 2005.

Ele avalia que o movimento deixou de ser pautado pelas políticas públicas para sugerir e motivar a criação de novos projetos e ações no governo local. “Nos últimos seis anos de governo, tivemos uma série de avanços. Agora precisamos ampliar os direitos já conquistados e aumentar o diálogo e a organização do povo. O legal é que ações pequenas da CUFA possam inspirar a política pública maior. É a nossa contribuição enquanto movimento social”, destaca Zezé.


Para Karina Santiago, representante da CUFA Mato Grosso, mudar e valorizar outros atores sociais é a proposta. “É muito simbólica essa questão do Zezé ser do Nordeste e eu do Centro-Oeste, locais que geralmente ficam fora do eixo. A instituição escolhendo esses dois nomes e essas duas regiões aponta esse processo de descentralização do poder. Acho que será uma boa dupla”, anseia Karina.

Os próximos projetos da CUFA visam a criação de um programa de televisão local e a estruturação da sede na Comunidade das Quadras, onde surgiu a CUFA Ceará. “Estamos estruturando algumas bases porque temos muitas ações nas comunidades. Queremos agora criar alguns núcleos com prédio, computador, internet para que esses jovens cuidem do nosso próprio investimento. Queremos ser coadjuvantes da nossa própria história”, decide Preto Zezé.

Quem é Zezé?
Francisco José Pereira de Lima, 34, o Preto Zezé, é produtor cultural, educador, membro do Conselho Nacional de Juventude, idealizador dos projetos Se Liga: o Som do Hip-Hop (pela Universitária FM 107.9, junto ao grupo Comunidade da Rima desde 1999) e Ronda Cultural. É ainda autor do documentário Selva de Pedra - a Fortaleza Noiada.

Preto Zezé: pelo fim da invisibilidade
Empossado esta semana como o novo presidente da CUFA-Central Única das Favelas, Francisco José Pereira de Lima, o cearense Preto Zezé, fala sobre família, infância, hip-hop e sua atuação na entidade.


Zezé acredita na quebra de barreiras entre
favela e sociedade para uma vida harmônica
Homem de nome comum e comportamento singular. Nascido e criado na Comunidade das Quadras, quarteirão de casas populares margeado pela avenida Senador Virgílio Távora e pelas ruas Beni de Carvalho, Vicente Leite e General Tertuliano Potiguara, no bairro Dionísio Torres, Francisco José Pereira de Lima, 34, teve uma trajetória surpreendente. Enquanto criança, precisou equilibrar o desenvolvimento na escola à proximidade com o crime e as drogas. Enquanto buscava afirmação entre os amigos, sonhava em ser surfista. Do mar, veio o palco.

Durante a adolescência, período que considera a primeira grande virada de sua vida, conheceu o movimento hip-hop. Com o tempo, percebeu que o hip-hop não era tudo e tornou-se um executivo social, como se define. Assim, em 2005, participa da implantação da Central Única das Favelas em Fortaleza. Passados seis anos, Zezé hoje não é mais uma voz local da instituição. Desde a última quarta-feira, 16, o Preto das Quadras de Fortaleza é presidente nacional da CUFA.

No Twitter, você se denomina “Amante das coisas simples, otimista, pai do Malcom Jonas, rapper, escritor, documentarista, educador e coordenador da CUFA”. Como administra toda essa versatilidade?
Essa versatilidade dialoga uma coisa com a outra. Na medida em que eu faço uma música, eu quero ver um videoclipe, um documentário, escrever um livro sobre os bastidores dele, produzir um evento, cuidar do filho, viver com os amigos, viver as coisas mais simples do dia a dia. São os ingredientes de uma vida simples, porém não medíocre. Tem que ter metas, tem que ter vivência, tem que ter ideologia.

Como é o Preto Zezé pai?
Já fui melhor. O Malcom hoje tem 13 anos. Ele morou um tempo comigo, agora fica mais com a mãe. Ficamos distantes devido às viagens, mas estamos sempre nos conectando pelo Orkut. Quero passar a mensagem que ele não tem que ser um Zezézinho, ele tem que ser ele mesmo. Ainda bem que ele gosta de break e não de rap e hip-hop como eu, já tem opinião própria, quer torcer time diferente, usar um brinco. Ele é a minha bússola do que está acontecendo hoje na periferia da cidade, do que essa juventude está pensando.

Como foi a sua infância?
Somos quatro irmãos homens e uma irmã. O povo costuma me chamar lá nas Quadras de filho da dona Fátima e do seu Chico Macumbeiro. A vivência na periferia é muito injusta. Muitas vezes, você tem que escolher entre estudar e trabalhar. As notas que você tira não dão a mesma empolgação do que o dinheiro que você leva para casa. E é uma cultura estranha essa de assumir responsabilidade de adulto quando adolescente. Combato muito isso com o meu filho. Porque, na comunidade, quem não trabalha logo é vagabundo. Uma hora dessas, jovens de classe média estão no cinema, em casa na internet, no teatro, estão lendo, tendo acesso a outras culturas. E na periferia a gente é muito pressionado. Eu tive sorte porque, ao mesmo tempo em que fui obrigado a esse cotidiano, eu pude viver muita coisa: soltar raia, brincar de carimba, pescar peixe Beta, ir pro baile funk. Ainda tive muita vivência, e também muita sorte, porque da minha época, de mais ou menos uns 20, 30 adolescentes que nem eu, hoje sobram poucos adultos. E grande parte dos que sobreviveram estão presos, outra parte, infelizmente, não está mais com a gente. E olha que nem tinha tanta incidência de arma, de crack. Sou um sobrevivente.

Você costuma dizer que o rap o encontrou, salvou a sua vida. Como isso aconteceu?
Minha vida tem vários momentos da virada. A primeira foi a virada da rua pro rap. Uma tarde de domingo, chegou uns malucos lá em casa, uns caras da antiga pichação, com uns discos. Nossa referência era muito o surf, as roupas Ciclone, Redley. Eles botaram um disco de rap que chamava Cultura de Rua, que depois virou o nome de um dos movimentos que eu criei. E aquilo causou um choque, foi a virada. A música era sobre violência policial. Jamais passaria na minha cabeça, naquele contexto, que alguém pudesse fazer crítica à polícia, gravar um disco e fazer música com aquilo. Foi muito doido porque toda a minha referência era gangue, armas, meninas, marcas. O rap me ajudou a fazer essa leitura do entendimento de identidade, do negro, como se processa o racismo no Brasil, a invisibilidade da juventude. Aí, montamos o movimento. O MH2O (Movimento Hip-Hop Organizado do Brasil, fundado em 1989 em Fortaleza) foi o primeiro. Depois montei o MCR-Movimento Cultura de Rua. Começamos o programa na Rádio Universitária (Se Liga: o Som do Hip Hop), retomamos as atividades nos bairros. Depois começamos a ver que o hip-hop não era bastante. Foi a época da criação da CUFA. A gente era sempre o público-alvo, era parceiro, mas a nossa pauta nunca estava no centro. O perfil do Celso (Athayde), do Zezé e do (MV) Bill são muito parecidos: jovens que eram invisíveis e que hoje tomaram a frente da CUFA.

Qual o papel da cultura hip-hop em Fortaleza? Há poder de mudança?
Trabalho muito pelo tipo de hip-hop que a CUFA faz, porque o entendemos como uma linguagem necessária para um setor da juventude. Por que o hip-hop? Porque é o único que traz esse discurso do negro, a maioria dos movimentos culturais musicais abandonou isso. As bandas antigas, como a Reflexo, falavam da África, depois tiraram o conteúdo africano, depois o próprio negro e botaram o pessoal pra rebolar a bunda e beber cerveja. E o rap acabou sendo a única coisa que nos sobrou, que ainda conseguimos decidir, escrever e produzir a nossa leitura de mundo. Até costumo dizer que o rap é a maior produção intelectual literária das favelas. O hip-hop pode ser uma janela. O cara vem pra cá porque gosta de rap e pode aprender o audiovisual, a construir um blog, ser produtor de um evento, participar de um projeto, mas nós não somos uma entidade hip-hopista. Ele é a nossa origem, mas é necessário que se dialogue com outras questões, como a segurança pública, a saúde, as correntes culturais e musicais da comunidade como o funk, o samba, brega.

Que dificuldades você enfrentou na sua trajetória?
Uma coisa que é difícil é a invisibilidade. O que é um jovem invisível? É aquele que só a Polícia vê. E aí, quando é que o resto da sociedade vê esse jovem? Quando ele comete um ato de violência. E aí, a invisibilidade recai sobre esse jovem, individual e coletivamente, e recai sobre o seu território. A Comunidade das Quadras, durante muito tempo, viveu nas páginas policiais. Você ia procurar emprego e o cara perguntava: “Onde você mora?”. A gente até mentia. “Na comunidade do Santa Cecília”. “Ah, do Santa Cecília? Mas aonde é?”. “Ali, perto do Colégio Santa Cecília”. “É na Quadra, né? Ah, então depois a gente te chama”. E nunca mais chamava. Cansei de chegar nos lugares e a pessoa dizer: “Não, nós estamos esperando o diretor da CUFA”. “Não, mas o diretor da CUFA é esse cara aí, o Preto Zezé”. Ou então você para numa blitz e o cara pergunta de quem é o carro, o carro nunca pode ser seu. É uma questão no Brasil que não avançou, de um lugar pré-estabelecido pra gente, mesmo que a gente tenha dinheiro. Mas as pessoas começaram a ver o Preto Zezé. Não é porque o cara é preto, negão, contra o branco. Daqui a pouco nem tem mais cor. Nossa lógica começa a transformar isso em carisma, em vez de ficar só na denúncia, na crítica, naquela coisa rancorosa, e começa a conquistar o espaço sem perder o nosso referencial.

De onde surgiu o apelido Preto Zezé?
Eu coloquei de propósito, pra constranger: 11 anos atrás, decidi que meu nome seria Preto Zezé. Às vezes, a galera ligava pra fazer entrevista e dizia: “Eu queria falar com o... como é o seu nome mesmo?”. “É Preto Zezé”. “Pedro?”. “Não, cara, Preto, preto da cor do gato preto”. E o cara: “Não, não era isso que eu quis dizer”. No Brasil, é engraçado, diferente dos EUA, porque aqui a relação das pessoas se dá muito pela cor da pele. Se você olhar na história, as piadas brasileiras, tudo o que é negativo, está relacionado às coisas negras. Essas construções parecem que não existem, pra quem não as vive, mas pra nós é muito forte. Por isso que muitas pessoas dizem que racistas são os próprios pretos. Lógico que são. A nossa construção história não tem nada que nos faça ter orgulho disso.

É comum no seu discurso você dizer que não quer ser mais convidado para discutir a pobreza, mas a distribuição de renda.
Se você olhar no mapa da ONU, nós, Fortaleza, somos a quarta cidade mais desigual do planeta. Se é desigual, é porque há concentração de riqueza. Então, nós não somos tão pobres assim. Onde está essa concentração? Se você fizer uma pesquisa sobre desenvolvimento humano, infra-estrutura, qualidade de vida, com certeza a Beira Mar e o Meireles se igualariam a países da Europa. Aí, você desce mais algumas ruas e chega no (bairro) Lagamar, no (bairro) Tancredo Neves e vai ver indicadores de países da África. E as pessoas acham que esses dois universos vão viver sem ter conflito. É tão grave essa coisa, e aí a pobreza para se manter tem que estar mais visível em alguns territórios, que no Lagamar, por exemplo, de 2007 a 2009, morreram lá mais de 30 jovens e não foi notícia nenhuma. Mas quando o jovem do Lagamar mata um jovem da classe média, vira uma grande tragédia. Aqueles 30 e tantos jovens eram estatísticas, não eram vidas. Vida é vida, independente da classe social a que ela pertença. O negócio é o seguinte, setores ricos concentradores de Fortaleza: vocês vão ter que fazer um acordo pra dividir essas alegrias todas ou vão ter que conviver com a tragédia, porque nós estamos no mesmo planeta, na mesma cidade. E é isso que proponho. Não vou discutir pobreza porque senão vai terminar botando projetinho lá nas Quadras e isso não vai resolver. É necessário que a cidade, como um todo, discuta a divisão das oportunidades.

As Quadras estão num bairro nobre da cidade, circundadas por uma escola particular, uma concessionária de carros e vários condomínios. Como funciona esta relação?
Quando decidi abrir a CUFA Fortaleza nas Quadras, foi pra dizer o seguinte: essa tese é correta? É. Você começa a fazer ações de visibilidade coletiva positiva, porque até então, as Quadras só eram lembradas como campo de bandido, de gangue. Então começamos esse processo de positividade da imagem da CUFA. Resultado: conseguimos tirar as Quadras das páginas policiais e colocar nos cadernos sociais, culturais, até de negócios. Nosso maior investimento é na emoção das pessoas. Então, a partir do momento que aquela comunidade se vê motivada, emocionada, valorizada, ela passa também a mudar o seu comportamento. A gente começou construindo essa ponte, porque o abismo também é no preconceito. Aí caiu o muro. E o legal é que caiu da quadra para o asfalto e do asfalto para a quadra. Começou a vir todo mundo para os shows organizados nas Quadras.

Quem mora na Comunidade das Quadras parece não querer sair dali. As casas viram duplex, triplex e o quarteirão cresce verticalmente. Houve tentativa de tirar as casas dali?
Acho que a Quadra avançou no sentido de estabelecer o seu espaço dentro da Aldeota, e a economia acompanhou. É uma comunidade que lutou muito. Era um monte de barraco de madeira. Hoje, tem saneamento básico, luz, água. Se você vir, nas Quadras hoje tem pouco carro velho. E muita gente evoluiu também. O Foca era um cara de gangue, hoje é corretor de seguros. Tem o James que era um cara que trabalhava com insulfilme, hoje já tem a própria empresa e emprega gente da comunidade. Então, as relações do asfalto com a quadra vão além da contratação de mão-de-obra, da compra de droga ou da eleição, mas passa a estabelecer um diálogo interessante ao redor de questões culturais, sociais, de debates sobre a cidade, da ampliação da inclusão.

Em quanto tempo você filmou o Selva de Pedra e como foi a experiência?
Primeiro, começamos a fazer o Falcão (Meninos do Tráfico, dirigido por MV Bill), com gravações aqui em Fortaleza. Depois percebemos o deslocamento de duas drogas do Sul do País: uma era a merla, que era muito forte em Brasília, e estava se deslocando pro Maranhão, e o crack, que era uma droga só de São Paulo. E fomos estudar esse processo. Só que eu não queria fazer como no Falcão, num lugar externo. Essa coisa vem de dentro da lata pra fora e assim partimos pra entrevistar os próprios usuários. Se tivesse outro nome, o crack se chamaria “segregação”, porque o cidadão segrega tudo, inclusive dele mesmo: não come, não toma banho, não tem prazer. E você tem um grande problema, porque o cara bate na mulher, quer vender tudo dentro de casa, violenta os mais pequenos. Só que o problema, na verdade, está por trás do crack. Sexualidade mal resolvida, relações de família malfeitas, frustrações afetivas e profissionais. E o mais complicado é que a mesma droga que mata e escraviza essas famílias, também sustenta, coloca feijão e arroz na panela. Então começamos a ver uma forma de humanizar esse contato que todo mundo tem medo. Pra gente ouvir o noiado. Por isso se chama Selva de Pedra - A Fortaleza Noiada. Porque a noia é da cidade, como um todo.

Com toda a visibilidade conquistada, existem pretensões políticas de candidatura?
Nem minha, nem de nenhuma parte. Muita gente está comentando, eu até agradeço. Me lançaram até como o Obama de Fortaleza, mas eu agradeço a confiança e a credibilidade. Não é a minha. Não serei candidato a nada, não sou nem filiado a partido que é pra ninguém dizer que eu já estava me preparando pras eleições. Mas assim, estamos também cumprindo missões. Então se um dia a CUFA decidir deslocar os seus quadros ou criar um partido, que acho ser o mais próximo, isso acontecerá. Mas não está em pauta, não é a nossa discussão hoje, pelo menos pelos próximos cinco anos. Pode ficar sossegado o povo da política que não vamos ser candidatos a nada.




EVENTOS DA CUFA
FESTIVAL SOMLIDÁRIO - shows de MV Bill, Transacionais, DJ Guga de Castro, DJ Doido, Comunidade da Rima, Andread Jo e Groovytown
Quando: 15/02 às 19h
Local: Ginásio Paulo Sarasate
Ingresso:
 Doação de alimentos não perecíveis, produtos de higiene pessoal, produtos de limpeza, lençóis, toalhas, colchões e água mineral para as vítimas das enchentes de Fortaleza.
Mais info: 3067-8024 / 3066-2329

POSSE DA NOVA PRESIDÊNCIA DA CUFA
Quando: 16/02 às 10h
Onde:
 Theatro José de Alencar (Praça José de Alencar, s/n - Centro)
Mais info: 3067-8024 
texto: Elisa Parente
edição e foto principal: Rede Dapraia
foto secundária: RafaelCavalcante

foto anum preto: Antonio CBC Lopes
fonte: jornal O Povo de 15/02/11 e 21/02/11


*Anum Preto
Pássaro muito popular no Nordeste do Brasil. O termo vem do tupi "anu" — vulto preto, indivíduo negro. Os anuns são muito úteis para a sociedade, porque são vorazes comedores de insetos, sobretudo os ortópteros, ou seja, baratas, gafanhotos, esperanças, grilos etc.


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18 fevereiro 2011

MILLÔR, ÚLTIMA INTELIGÊNCIA



Brasil de ágrafos

O jornalista Luciano Pires já afirmava que "qualquer coisa que Millôr se propõe a fazer, faz melhor que qualquer outro". E se declarava "fã de carteirinha dessa figura maravilhosa de ser humano pensante, homem, escritor, teatrólogo etc. etc. etc.!"

Feito o elogio, convidava-nos, ainda em 2005, a ler o que "esse deus das letras" escrevera, segundo ele, publicado pelo jornal La Insígnia, em 2 de setembro de 2005.



Foi uma visão porreta Sobre os livros — e aí nos lembramos da frase atribuída a Monteiro Lobato, de que um país se faz com homens e com livros. Faz-se ou não?




 Fato é que, como em tudo que fazia, Millôr sempre abusava da ironia, expunha feridas e tirava um grande sarro. Senão, leiamos:

SOBRE OS LIVROS

"Na deixa da virada do Milênio, anuncia-se um revolucionário conceito de tecnologia de informação, tecnologicamente chamado de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas -- ou, resumidamente, L.I.V.R.O. 

"O L.I.V.R.O. representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada e nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo! 

"Cada L.I.V.R.O. é formado por uma sequência de páginas numeradas, feitas de papel reciclável e capazes de conter milhares de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantém automaticamente em sua ordem correta.

"O uso intensivo do recurso TPA -- Tecnologia do Papel Opaco -- permite que os fabricantes usem as duas faces da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os seus custos pela metade! 

"Especialistas dividem-se quanto aos projetos de expansão da inserção de dados em cada unidade. E sabem que, para se fazer L.I.V.R.O.s com mais informações, basta se usar mais páginas.

"Isso, porém, os torna mais grossos e mais difíceis de serem transportados, fato que atrai críticas dos adeptos da portabilidade do sistema. 

"Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escameada opticamente, e as informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, em seu cérebro.

"Lembramos que, quanto maior e mais complexa a informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário.


"Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite o acesso instantâneo à próxima pagina. 

"Assim, o L.I.V.R.O. pode ser rapidamente retomado a qualquer momento, basta abri-lo. Ele nunca apresenta 'ERRO GERAL DE PROTEÇÃO', nem precisa ser reinicializado, embora se torne inutilizável caso caia no mar, por exemplo. 

"O comando 'broxe'* permite acessar qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. 

"E mais: a maioria dos modelos de 
L.I.V.R.O. à venda vem com o equipamento 'índice' instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados selecionados.


"Um acessório opcional, o marca-páginas, permite que você acesse o L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na ultima utilização, mesmo que ele esteja fechado.

"A compatibilidade dos marcadores de página é total, e permite que funcionem em qualquer modelo ou marca de L.I.V.R.O. sem necessidade de configuração. 


"Além disso, qualquer L.I.V.R.O. suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter selecionados vários trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima para o uso de marcadores coincide com o número de páginas.


"Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O., através de anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada — o L.A.P.I.S.. 


"Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. é apontado como o mais popular instrumento de entretenimento e cultura do futuro. 


"Por isso, milhares de programadores desse sistema continuam disponibilizando vários títulos e upgrades para utilização na plataforma L.I.V.R.O."

Pois é, Luciano Pires tem razão: Millôr é genial — e todo mundo sabe. Mas hoje, preocupa-nos.

Tudo porque, via twitter, a equipe do venerado desenhista, jornalista, dramaturgo e escritor, que já conta 86 anos, divulgou no dia 16/02 que Millôr, internado na clínica São Vicente, na Gávea, zona sul do Rio, estaria "melhorando lentamente".

Oras, nada foi dito sobre o seu estado de saúde. A pedido da família, não foi divulgada nem a data nem a razão da internação. Enquanto isso, diz-se que, em seu site no UOL, Millôr postou o seguinte texto:


"Há mais de cinco décadas escrevendo na imprensa, sempre me disseram, os que me disseram, que me admiravam, os que me admiravam, mas não me entendiam (quase todos). Admirado, no sentido de perplexo, procurei, centenas de vezes, descobrir quem eu era e o que fazia neste perfeito mundo profissional de vocês todos". 


A seguir, teria elencado frases intituladas como "(eis) algumas dessas tentativas de auto-entendimento — ou autotapeação." Bem, divirtamo-nos com sua verve e esperemos por sua saúde.



No blog da jornalista Lu Lacerda lê-se que o escritor, desenhista, dramaturgo e humorista Millôr Fernandes, "como sabido", está internado na Clínica São Vicente, na Gávea, Zona Sul do Rio, depois de um acidente vascular cerebral (AVC). "Millôr, inconsciente desde o começo de fevereiro, deixou a unidade intensiva nesta quinta-feira (17/02). Os três médicos que estão cuidando dele dizem que ele responde bem aos estímulos e supõem que seu estado neurológico seja bom. Quanto às eventuais postagens no Twitter, são de assistentes de Millôr."

Millôr, que participou da criação do combativo e brasileiríssimo Pasquim, é um dos principais tradutores de Shakespeare no País, além de cartunista, poeta, escritor, dramaturgo, jornalista  e uma das mais completas inteligências nacionais, também como pesquisador da semântica e das artes em diversos idiomas e suportes. 

Prova disso é que ele — sempre — recusou-se peremptoriamente a deixar-se dispor da intenção de que o fizessem participar da Academia Brasileira de Letras.

Porque seria? 


Pra saber, só mesmo perguntando ao Mestre!



*provável trocadilho com "browse", ação decorrente do
termo "browser" — "navegador", em Português do Brasil

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