07 setembro 2015

RICOS SÃO UNIDOS


"Vivemos em uma sociedade sem modelo"


Para o sociólogo e professor da Universidade de Roma, Domenico De Masi, que veio ao Ceará para participar do evento Futura Trends, atualmente "vivemos uma depressão mundial, por não termos um modelo social em que nos basear".

De Masi, 77 anos, se sente no dever de criar um novo modelo de sociedade para o mundo. Afinal, para ele, sem uma filosofia social e política não há equilíbrio nem futuro. E é assim que ele enxerga a sociedade na qual vivemos, a pós-industrial.

Para criar esse novo modelo-base, De Masi estudou sociedades precedentes e o que existe atualmente. A ideia é extrair o que há de melhor em cada uma delas. O exemplo do Brasil está incluso nessa criação inédita. De bom, ele quer aproveitar a sensualidade, a mistura de raças, de religiões, a alegria, a solidariedade e a estética brasileira.

Sua conexão com o País, há mais de 20 anos, é fortalecida pelos muitos amigos que aqui fez. Mas antes mesmo de desejar vir ao Brasil, em sua casa havia brasilidade, por intermédio da esposa, Susi del Santo. A amada estudava português, ouvia música e lia livros do Brasil.

Mas não foi a mulher quem despertou seu interesse em vir ao Brasil. Ao ganhar destaque na mídia brasileira, De Masi começou a receber muitos convites para realizar palestras. Bastou a primeira visita para que o interesse surgisse. Desde então, ele sempre volta. Somente a Fortaleza veio quatro vezes.

O POVO - Em sua biografia, o senhor cita uma frase de Sartre: “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. O que o senhor fez em sua vida para se tornar o que é?
Domenico De Masi - É um romance. Nasci em uma pequena cidade (Rotello), no sul da Itália. Não era a cidade dos meus pais. Meu pai (Plinio), como era médico, foi trabalhar em outra cidade. Mas, quando eu tinha oito anos meu pai morreu e voltei para a cidade dele com minha Mãe (Maria), em Perugia, que também era a cidade dela. Graduei-me em direito. Depois fui para a França, em Paris, fazer especialização em sociologia do trabalho. Em Paris tive grandes mestres como: Lewis Strauss, Sartre, Roland Barthes, Touraine, Friedmann. Retornei à Itália e fiz duas carreiras: numa grande empresa metalmecânica, como administrador, e na universidade, como professor. Ensinei, sobretudo, em Nápoles e em Roma. Depois criei a escola de formação administrativa, que se chama S3 Studium, que é de administração da criatividade (1978). Também escrevi muitos livros e viajei muito pelo mundo. 

OP - O senhor vem muito ao Brasil, há mais de 20 anos. Já há características brasileiras no senhor? Adquiriu-as de tanto vir?
DDM - O Brasil proporciona alegria, solidariedade, sensualidade, estética. Mas já tinha isto. Não queria vir ao Brasil. Não me interessava tanto o Brasil. Interessa-me muito pela Inglaterra, França, China. Mas minha esposa (Susi del Santo) me chamava muito para vir. Era um sonho dela. Acredito que em uma vida precedente ela, provavelmente, deve ter vivido no Brasil. Ela lia e estudava a língua portuguesa, escutava música brasileira, lia a literatura brasileira. Minha casa tinha muito do Brasil.

OP - E quando foi a primeira vez que veio ao País?
DDM - Fiz uma entrevista, em uma viagem de um repórter ao mundo, para as Páginas Amarelas da revista Veja. Depois de publicada essa entrevista, comecei a receber muitos convites. Publiquei meu primeiro livro no Brasil pela editora José Olympio, A emoção e a regra (1999). Depois publiquei o segundo, que se chamava O futuro do trabalho (2001). Fui convidado a vir ao Brasil, no começo da década de 1990, por dois prefeitos: Lídice da Mata (que administrou Salvador de 1993 a 1996) e o prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro (também de 1993 a 1996). Então, vim pela primeira vez com minha esposa e com um amigo arquiteto. Desde então fui sempre convidado a voltar ao Brasil. Na segunda vez, vim sozinho. Nesta ocasião, conheci o Oscar Niemeyer. Vim para o enterro do Oscar (2012). Mas, então, todos os anos eu faço, na Itália, em Ravello um festival internacional de música sinfônica, música popular, literatura, orquestras de todas as partes do mundo. A cada ano foram aparecendo muitos brasileiros: Ivo Pitanguy (cirurgião plástico), Affonso Romano de Sant’Anna (escritor), Marina Colasanti (escritora e jornalista ítalo-brasileira), José Serra, Cristovam Buarque, Roberto D’Ávila (jornalista), Pérsio Arida (economista), Fernando Henrique Cardoso. 

OP - O senhor diz no seu livro que o futuro chegou e que o Brasil faz parte desse futuro. Mas a que modelo vamos chegar analisando a situação do País atualmente?
DDM -Nesse momento estamos em uma espécie de depressão mundial. A Itália está depressiva, o Brasil e a China também, a América está depressiva. Como é possível que tantos países que tiveram um forte incremento do Produto Interno Bruto vivam essa depressão mundial? O motivo está no início da história. Criou-se uma sociedade sem modelo anterior. O Sacro Império Romano, de Carlos Magno, tinha o evangelho; quando se criou o Estado Moderno Liberal, tinha o modelo de Montesquieu; a Rússia soviética tinha o de Marx. Havia um modelo inicial e depois a realização social e política dele. Nossa sociedade pós-industrial não tem. É uma grande confusão em que nós vivemos. Confusão cria depressão. Depressão cria senso de crise. Quando vivemos senso de crise, não projetamos nosso futuro. Por exemplo, agora, no Brasil, há sensação de crise e não se projeta o futuro. Qual é o futuro do Brasil? Não se sabe. 

OP - Quem deve criar um modelo de futuro?
DDM - O modelo é criado por intelectuais. Sou intelectual e também tenho o dever de procurar um modelo para o futuro. Busquei entender os modelos criados até hoje para a humanidade e temos 15: grego, clássico, cristão, protestante, muçulmano, iluminista, liberal, todos esses do passado. Temos os atuais: América Latina, China, Japão, muçulmano, do norte da Europa, do sul da Europa, o pós-industrial dos Estados Unidos e a América do Brasil. O modelo do Brasil é tão importante quanto os outros modelos, não o melhor.

OP - O Brasil é um estado laico, mas de cultura muito cristã. Desta forma, o Cristianismo não acaba se tornando um modelo para o País?
DDM - O Cristianismo do Brasil não é o mesmo da Itália, da Inglaterra. O brasileiro tem foco humanista. A religião aqui é menos sobrenatural e mais natural. Quando veio o Papa Francisco aqui, fez uma grande missa (Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em 2013), em Copacabana. Creio que foi a missa mais corporal que já existiu, porque as freiras dançavam. Talvez elas tenham feito até amor naquele dia, de repente, com algum padre. Essa é a religião brasileira, é uma religião muito corporal. Porque, como disse Chico Buarque, “ao sul do Equador não há pecado”.

OP - Quais são suas crenças?
DDM - Sou ateu. Creio que Deus é criação do homem. Penso que nós temos essa visão de placebo: somos mortais e criamos um mundo imortal; sofremos e precisamos criar um mundo feliz. Somos conflituosos e queremos criar harmonia. Minha filha é um pouco budista e ateia, a Mara. A Barbara é ateia. A Mara não batizou os filhos, mas eles quiseram. Há algumas semanas, perguntei ao meu neto maior, Eduardo: ‘Mas tu vai à missa aos domingos?’. Ele disse que não. Então eu perguntei: ‘Então porque você se batizou?’. Ele disse que naquele tempo parecia ser importante e agora não. Mas creio que não ser religioso é perigoso se você não tem a ciência. A segurança vem pela razão ou pela emoção. Não pode ter o vazio, a falta de modelo. Por exemplo, minha mãe não estudou, porque mulheres não estudavam, mas era de uma família muito culta. O pai era médico. Ela não tinha conhecimento científico forte, tinha forte fé. Como ela ficou viúva muito cedo, com dois filhos, se ela não tivesse tido a fé, não teria sobrevivido. É muito melhor haver aporte científico que religioso. Melhor ter aporte racional do que emotivo. Precisamos criar uma sociedade que inclua racionalidade e emotividade. No passado, não houve equilíbrio. Dominou emotividade, na época rural, ou racionalidade, na industrial.

OP - O senhor diz também que o progresso da sociedade só pode ser medido pela qualidade de vida da população. Dessa perspectiva, como o senhor analisa o Brasil?
DDM - Tem o Brasil rico e o pobre. O Brasil rico é igual a todos do mundo. Ricos vivem do mesmo modo. Tinha um filósofo francês, Marc Augé, que falava que existiam os “não-lugares”. Ricos vivem em não-lugares. E eles são mais unidos, porque têm medo dos pobres, porque existe uma diferença enorme de número. Todos os anos a revista Forbes faz a lista dos mais ricos. Na última, os primeiros 85 ricos tinham a riqueza de 3,5 bilhões de pobres. Esses 85 têm medo dos pobres, então eles são muito unidos. Pobres são todos diversos. O fato positivo é que são todos diversos e há várias culturas. Entre o pobre do Brasil, da África, da China, há diferença enorme. Mas esse fato positivo é também negativo, porque não são unidos como os ricos. Então, eles se tornam sempre mais pobres. Os ricos conseguiram impor a filosofia deles ao mundo inteiro, a filosofia do neoliberalismo. Veja o que há no Brasil, um paradoxo. Um governo de esquerda, mas o ministro da Fazenda é neoliberal.

OP - Hoje, fala-se muito em uma crise política que afeta a economia. Há um lado positivo nesta crise?
DDM - Sim. Pela primeira vez os corruptos estão sendo presos. Isso é um momento maravilhoso para o Brasil. No nível externo, o Brasil é uma anomalia, é uma exceção mundial, porque é um governo de esquerda e quase o mundo todo é de direita. O mundo não pode tolerar isso. Nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, a economia foi organizada e se iniciou uma política de distribuição de renda. Depois que organizou, superou a inflação, veio Lula e distribuiu a riqueza. 18 milhões de subproletários viraram proletários, 12 milhões de proletários viraram pequena burguesia, oito milhões de pequena burguesia se tornaram média burguesia. Foram criadas universidades nas zonas pobres, além de providências sanitárias etc. Houve somente dois países onde aconteceu ascensão dos pobres, nos últimos 10 anos: China e Brasil. Mas a China não é uma democracia. A particularidade do Brasil é que a distribuição da riqueza aconteceu em uma democracia, então, isso é uma grande exceção no mundo. Em países neoliberais, aumenta-se sempre a distância entre ricos e pobres. Agora, todo mundo do neocapitalismo tenta combater essa democracia brasileira e tenta colocar de novo o neoliberalismo aqui. Sobretudo nesse movimento contra Dilma.

OP - E nisso se cria o pessimismo que se vê hoje no País?
DDM - Para os ricos seria uma coisa boa a distribuição da riqueza, porque não teriam necessidade de segurança pessoal. Mas isso levaria à ideia de que teriam que pagar mais imposto. Os ricos italianos pagam o dobro de impostos que aqui no Brasil, mas nenhum tem guarda pessoal. O rico italiano preferem dar dinheiro ao Estado, o Estado distribui aos pobres, se reduz a violência e, portanto, estão mais tranquilos. No Brasil, preferem pagar guarda pessoal. O País parou na espera de destruir Dilma. O único objetivo neste momento do capitalismo brasileiro não é de criar bom capitalismo, mas destruir Dilma.

OP - O senhor não acha que está marcado por um único tema no Brasil, o ócio criativo?
DDM - Tenho muitos livros publicados e não sei por que estou conhecido pelo ócio criativo. Creio que há forte correspondência com o modelo brasileiro. Ócio criativo não significa preguiça, fazer nada. Significa fazer três coisas juntas: trabalhar, aprender e se divertir. Isso que nós estamos fazendo agora. Você tem que escrever o artigo e o artigo te faz ganhar dinheiro, porque você é jornalista, e se o artigo for publicado aumenta minha notoriedade. Estamos criando riqueza. No Brasil, isso é mais frequente. Não existe, no mundo, uma cidade como o Rio de Janeiro. Os empregados, na hora do almoço, vão à praia. O brasileiro está mais acostumado a misturar vida e trabalho. Este é o motivo pelo qual o ócio criativo agrada tanto. Esse livro até saiu em uma editora que não era muito conhecida na época. Estava em São Paulo e chegou um jovem dizendo para mim: "Meu pai trabalha na editora José Olympio, pela qual você imprime seus livros. Mas eu quero criar uma editora minha, completamente nova. Você me dá um livro para publicar?" E ele criou a editora Sextante. Na primeira semana (ano 2000), saíram três edições do Ócio criativo. Por 56 semanas, ficou entre os dez primeiros na classificação da Veja.

OP - O que o senhor viveu, viu, realmente do Brasil?
DDM - Passei por Porto Alegre, Caxias, Blumenau, Curitiba, Foz do Iguaçu, Campinas, São Paulo, Petrópolis, Tiradentes, fui a Manaus, Jericoacoara. Na primeira vez que vim a Fortaleza com o O Povo, me fizeram ver duas coisas muito bonitas: Jericoacoara e um desfile de moda de Lino Villaventura.

OP - O senhor fez amizade com o ex-presidente do Grupo de Comunicação O Povo, Demócrito Dummar...
DDM - Ele foi muito a Ravello com a esposa (Wânia Dummar). Demócrito ia muito ao seminário que eu fazia em Ravello. Mas quando o conheci foi na primeira vez que vim a Fortaleza. O jornal O Povo me convidou para fazer duas palestras e eu conheci os filhos do Demócrito quando eram crianças. Criamos uma forte relação de amizade. Ele era muito gentil e escrevíamos muito um para o outro. 

OP - O senhor conheceu os dois lados do Brasil?
DDM - Sim. Conheci o Brasil pobre também. Escrevi um livro com Frei Betto, conheço Carlinhos Brown, conheci Dom Hélder Câmara. O que mais me chamou a atenção foi a vitalidade, a musicalidade e a relação quase paradoxal entre a pobreza e a alegria. A experiência que tive na favela de Carlinhos Brown (Candeal, na Bahia) foi muito bela. Lá não tem violência, não tem drogas, não tem analfabetismo, tem muita convivialidade. É um ambiente sereno, quase feliz. Mas Salvador se tornou uma das cidades mais feias do mundo. 

OP - O senhor viu alguma diferença em Fortaleza desta vez?
DDM - É uma cidade muito equilibrada, porém, tem um problema: é a capital do turismo sexual. Recordo-me que Demócrito fez uma palestra e um debate com os hoteleiros sobre o turismo sexual. Vocês têm esse monopólio mundial negativo. Alguns anos atrás não havia aviões que ligavam Milão ao Rio ou São Paulo, mas tinha direto para Fortaleza somente por causa do turismo sexual.

OP - O senhor viveria no Brasil?
DDM - Gostaria de viver na África, em Zaíra, mas a África tem uma distância excessiva da minha cultura. Viveria na China, mas a China é ditatorial. Viveria em Nova York, mas é muito consumista. Gostaria de viver na Bahia de Jorge Amado. Nós temos em casa um guia da Bahia escrito por Jorge Amado, um guia para os turistas. É maravilhoso. Agora, já não gostaria mais de viver na Bahia. Moraria no Rio de Janeiro, porque o Rio me concedeu o título de cidadão honorário, mas porque também o Rio é a cidade mais bela do mundo. Rio é a cidade de muitos amigos: Oscar Niemeyer, Roberto D’Ávila... Eu era muito, muito amigo de Oscar e dediquei um livro a Oscar e Roberto, A sociedade pós-industrial.

OP - Qual o seu próximo objetivo de vida?
DDM - Eu sou muito jovem, tenho muitos objetivos de vida. Meu primeiro objetivo é que estou escrevendo um livro. Agora vão sair dois livros meus aqui no Brasil. O último livro se chama Tag. É uma tentativa de explicar a sociedade atual, através de 26 palavras, uma para cada letra do alfabeto: B, beleza; C, criatividade; D, desorientamento; T, trabalho... são 26 capítulos. Esse livro vai sair pela editora Objetiva. Depois vai sair outro livro, nesse ano ainda, que se chama Brasil 2025. É uma pesquisa para saber como o Brasil vai evoluir daqui até 2025.
*publicado por Beatriz Cavalcante em www.opovo.com.br 
Imagem: Evilázio Bezerra



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