Esfaqueei o deputado
Eu assumo: fui eu que esfaqueei aquele deputado lá em Salvador. Isso mesmo, fui eu. E aviso: estou muito puta e posso esfaquear outros. E tem mais: duvido que me prendam. Sabe por quê? Porque não tenho pulsos para me algemarem. Nem rosto para ser fichada. Não podem me pegar porque não estou em nenhum lugar e estou em todos os lugares ao mesmo tempo. Eu sou a consciência indignada do cidadão brasileiro. Que não aguenta mais o que a classe política está fazendo com o povo desse País.
Fui eu que esfaqueei aquele deputado. Mas não se preocupe com ele, o homem tem as costas largas. Preocupe-se com a senhora que o golpeou: ela vai apodrecer na cadeia sem ter culpa. Sim, pois ela foi apenas um instrumento da minha ira sagrada, acumulada durante anos, décadas, séculos. Aquela mão, empunhando a peixeira, você não percebeu?, era a mão do povo brasileiro. Era a mesma mão persistente que todos os dias faz sinal para o ônibus lotado para ir ao trabalho, a mesma mão cansada que rastreia os classificados atrás de emprego. Era a mesma mão impotente que acaricia o filho faminto, a mesma mão sem futuro que pede uma ajudinha no sinal. E é a mesma mão que votou nos políticos que aí estão. Votou neles para que a representassem com decência.
E olha o que os calhordas fazem... É muita cara-de-pau! Num momento delicado desses, em que o governo precisa enxugar custos e toda a sociedade se concentra na tarefa de fazer o País crescer um pouco mais, nossos indignos e egocêntricos parlamentares se concedem um aumento de quase 100 por cento de salário, como se já não ganhassem muito. E como o salário de senadores, deputados e vereadores é proporcional, todos vão ganhar aumento. No final, essa brincadeirinha de bandidos de paletó vai custar à sociedade um custo extra anual de mais de um bilhão e meio de reais. Isso sim é uma facada de respeito!
Agora o bando dos federais quer ganhar vinte e quatro mil e quinhentos reais. Mais ajuda de custo para morar, comer, viajar e ir na esquina. Mais verba de gabinete e convocação extraordinária. Mais décimo-terceiro, décimo-quarto e décimo-quinto salários. São 100 mil reais por mês para cada um. É uma senhora fatia da pilhagem geral do País. Sem falar que, na prática, esses vidas-boas só trabalham três dias por semana. E têm impunidade parlamentar. E ainda acham pouco. E não vamos nem falar no mensalão e em tudo que rola nas malas e nas cuecas. São uns cínicos!
Passarão à História como a pior de todas as legislaturas e ainda continuam fazendo pose e falando bonito. Por que não assumem logo que o que querem mesmo é ficar milionários em dois mandatos e garantir uma aposentadoria rechonchuda em cima dos trouxas dos seus eleitores? Eu estou muito, muito puta. Como podem gozar assim da cara do povo? Não temem que as pessoas se revoltem e invadam seus lindos gabinetes, que os seqüestrem, que joguem uma bomba no Congresso? Não, eles não temem.
Porque estão tranqüilos em sua certeza de que o povo brasileiro é burro, medroso e acomodado. É por causa dessa certeza que num minutinho o bando vota para si mesmo um aumento de R$ 12 mil e depois fica semanas e semanas discutindo se dá ou não dá R$ 8 — oito reais! — de aumento no salário mínimo. É desrespeito demais. Sabe o que os nobres parlamentares deviam fazer com esses oito reais? Eu digo. Enrolem as notas bem enroladinhas, formem um canudo e enfiem de volta lá, lá no lugar de onde vem o cheiro que infesta o Congresso Nacional, a casa que deveria ser dos representantes do povo e que está ocupada por vossas excrescências.
E você, caro cidadão eleitor? Onde está o seu nobre deputado numa hora dessas? Ligue para ele, para ela, escreva, exija providências. Ou será que Sua Indecência é a favor do aumento? Se for, então é mais um dos que agora estão rindo da sua cara de otário. Sim, você é um grande otário. Uma tremenda otária. Porque é você quem vai pagar a conta desse roubo. Fui eu que esfaqueei o nobre deputado. Mas o golpe não foi dirigido a ele, não especificamente.
O golpe foi contra toda a classe política. Certamente há um ou outro que não tem o costume de cagar na cabeça de quem o elegeu mas, como todos fazem parte da classe, é sobre todos eles que avança a minha mão firme e indignada, empunhando a lâmina afiada da revolta. Os políticos foram eleitos para representar e defender o povo — mas na verdade o esfaqueiam todos os dias quando legislam em interesse próprio. Assim sendo, aquela senhora nada mais fez do que praticar um ato de legítima defesa. O aumento ainda não foi pago, mas o primeiro deputado já recebeu o troco. Nas costas. Quem será o próximo?
*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra, a 3.ª pedra do Sol
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28 dezembro 2006
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