28 junho 2008

CRÔNICAS DA CIDADE

A bailarina da fé




Conheci Renata em 1992, quando ela passava férias em Fortaleza. Fiquei encantado com aquela sagitariana bonita, graciosa e de gênio forte e logo estávamos namorando. Ela era uma pessoa alegre e reluzente mas o que me encantou mesmo foi a firmeza de sua fé, fé em seus ideais, em sua arte, em seguir seu caminho verdadeiro. Uma fé inabalável na vida.

Renata seguiu seu caminho com muita coragem. Ainda adolescente, pegou suas sapatilhas e se mandou, deixando sua terra e sua família, foi sozinha pro Rio de Janeiro viver sua arte bailarina. Era muito nova mas já parecia intuir que, por mais difícil que seja o caminho, mais difícil será sempre a frustração de não haver tentado.

Ela tentou. Morava num quarto-e-sala pequenino no Catete, dividindo dificuldades, alegrias e esperanças com outra amiga bailarina, enquanto seguia seu aprendizado na academia de dança, sonhando com os palcos e a carreira de atriz. Durante meses nosso namoro se segurou entre cartas, telefonemas e as idas e vindas entre as duas cidades. Durante esse tempo tive o privilégio de conviver com seus sonhos e aprendi bastante com a força de sua fé.

Uma noite, quando já havíamos terminado o namoro e vivíamos aquele clima de volta-não-volta, ela me ligou chamando pra ir se divertir na Praia de Iracema. Renata curtia novamente suas férias em Fortaleza, com toda aquela energia de uma garota de 20 anos. Mas era uma segunda-feira, eu tinha muito trabalho no dia seguinte, e respondi que não podia, mas que no outro dia nos veríamos.

Não houve outro dia. De manhã cedo acordei com a notícia de que Renata estava morta, fôra assassinada por um desses dementes que andam armados por aí e que acham que podem resolver tudo na base da bala.

Já se foram 15 anos. Pra nós, a família e os amigos de Renata Maria Braga de Carvalho, sua ausência é uma sensação diária de estar amputado. Uma dor sem qualquer remédio possível, como se faltasse uma parte da alma. Mataram Renata e nos condenaram à pena perpétua dessa dor.

O assassino, porém, continua solto e faceiro por aí. Sua família, de Brasília, soube educá-lo com dinheiro, carro importado e um revólver, muito útil pra discussões no trânsito. Como ele, há muitos outros Wladimir Lopes Magalhães Porto aí pelas ruas, todos clientes da impunidade -- esta senhora discreta e eficiente, que tão bem serve aos que lhe fazem as honras no escurinho dos escritórios e gabinetes.

De todas as violências, a impunidade é a maior. Se queremos uma sociedade mais justa e mais pacífica, não podemos ser complacentes com essa senhora! É preciso não se conformar e protestar, denunciar, chamar a imprensa, o bispo, a corte internacional! Embora às vezes, eu admito, nos dê um desânimo danado, parece que estamos nadando, nadando e não saímos do lugar. E a impunidade ali, zombando dos nossos esforços...

Nesses momentos, então, eu me lembro da família de Renata e de todas as outras famílias vítimas da violência e da impunidade, todas elas lutando por justiça. E aí não posso desanimar, tenho que fazer a minha parte, uma pequena parte, é verdade, afinal sou apenas um escritor.

Mas se as palavras servem, infelizmente, pra deixar impunes os criminosos, servem também pra manter acesa a fé das pessoas num mundo melhor. A mesma fé que Renata tinha na vida.


*O escritor e roteirista cearense Ricardo Kelmer hoje mora em São Paulo


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