Começa a circular entre os "saciólogos" uma campanha para lançar o saci-pererê como símbolo da Copa do Mundo de 2014, quando o evento acontecerá no Brasil. A idéia visa, com isso, divulgar para todo o planeta a imagem do mais expressivo mito nacional e, assim, provocar o interesse de povos do mundo inteiro sobre a cultura popular brasileira.
Tudo começou como tudo que é bom começa: conversa vai, conversa vem e o jornalista mineiro Mouzar Benedito comenta em uma reunião da Sociedade dos Observadores de Saci — a SOSACI —, que certamente os marqueteiros inventarão um mascote besta para a Copa, a exemplo do já esquecido "Cauê" dos Jogos Panamericanos.
A observação foi suficiente para dar o apito inicial da campanha. Não é preciso esperar quem vai em uma perna e volta na outra para saber que o saci é uma síntese do povo brasileiro, de domínio público, conhecido em todo o território nacional, brincalhão, gozador e que gosta de dar alguns sustos também.
O saci é um ser fantástico das matas que foi colocado no terreiro das crenças indígenas, amamentado pelas mães-pretas e coroado com o gorro da liberdade trazido pelos imigrantes. Mouzar diz com irreverência sacizística que até nas comemorações do Centenário da Imigração Japonesa tem aparecido Saci de olhinhos puxados, respondendo pelo nome de "Sashimi"...
O escritor santista José Roberto Torero gostou tanto da idéia do saci como mascote para a Copa de 2014 que fez logo um texto para o caderno de esportes da Folha de S. Paulo (10/6/2008) defendendo o danisco, por sua força de simbolizar o Brasil e de permanecer na memória dos torcedores, como algo originário da cultura brasileira. Torero convoca seus leitores a se unirem nessa cruzada de vivas ao saci.
Tomando o entusiasmo de Mouzar e de Torero, também para mim entro aos pulos e assobios nessa campanha de fortalecimento dos valores positivos da brasilidade. O saci é uma figura rica em variantes e, por isso, mesmo correndo o risco de ter sua imagem massificada como mascote, a consistência do seu composto simbólico dará sempre para combinar com os modos locais de interação com o seu significado.
Por estar lastreada em atributos extraordinários de estado puro e amalgamada por materiais sensíveis da miscigenação, a intensificação da popularização do Saci é um meio de informarmos para nós e para o mundo que nos reconhecemos em nosso imaginário. Como mascote, ele estará além dos tradicionais bonequinhos, normalmente destituídos de alma coletiva pelas referências lógicas comerciais.
Precisamos ver a Copa do Mundo como o grande evento desportivo que ela é, mas precisamos encará-la também como plataforma de canal invertido de transmissão cultural. Temos poucas chances de enviar para o mundo algo das nossas manifestações autênticas — e esta será uma delas. O mascote do saci servirá de êmulo no contrafluxo simbólico a tudo o que apenas recebemos no cenário de assimetria das relações culturais internacionais.
O saci tem a vantagem de ser um denominador comum para crianças e adultos. Chamá-lo a participar do jogo é um ganho para a memória nacional e uma elevação de ânimos da brasileirice. Fico imaginando-o com a bandeira brasileira no coração, no gorro, com a faixa verde-amarela de capitão, rodopiando em pequenas hastes dos camelôs à venda nas entradas dos estádios...
Mas fico imaginando mesmo é o desenho-animado do mascote Saci, em dribles mágicos com sua perna invisível. Sei que em um primeiro momento muita gente deve se perguntar que sentido faz um personagem que "só tem uma perna" ser o símbolo de uma Copa de Futebol, esporte fundamentado na habilidade humana de conduzir a bola com os pés até atingir o gol do adversário.
Engana-se quem pensar que o saci só tem uma perna. Quando ele era apenas uma lenda indígena, ele tinha duas patas. Depois foi que surgiu a história de que ele era um menino-escravo que preferiu perder uma perna a ficar preso aos grilhões das senzalas. Mas a perna arrancada na fuga do saci nunca foi encontrada, não há vestígios dela. Por isso, prefiro acreditar que ela ficou encantada: tão encantada que nem rastro deixa por onde passa.
Gostaria muito de saber explicar melhor o que chamo de perna invisível do saci, a perna invisível da cultura brasileira. Ela está nos passos de frevo, nos lances de capoeira e nos dribles dos grandes craques de futebol. O Dener dizia que um drible é mais importante do que um gol. De Garrincha a Ronaldinho Gaúcho, a perna encantada do saci pode ter sido a responsável por tantas jogadas desconcertantes na história do nosso futebol.
A gente praticamente não vê como ela ludibria os adversários em manifestações estéticas de grande emoção. É, sem dúvida, uma representação da alegria do futebol. Quando o Rivelino derrubava o adversário com uma rápida e invisível passagem de perna sobre a bola, ele estava fazendo as vezes de saci. Exemplos da atuação dessa incrível perna invisível estão aos montes na história de Pelé, Tostão, Sócrates, Romário, Denílson e nas pedaladas de Robinho.
No plano político, a perna invisível do saci-pererê é uma ótima alternativa à mão invisível do mercado. Ela representa a popularização do auto-pronunciamento das forças das culturas regionais, diante do poder destrutivo da lógica instrumental da economia, da idolatria da técnica e da redução de Deus à condição de objeto no comércio da fé.
Essa história de mão invisível do mercado vem do tempo da Revolução Industrial, quando o pensador escocês Adam Smith (1723 – 1790) criou os fundamentos do liberalismo. Ele partiu do pressuposto de que o ser humano é antes de tudo um egoísta, para chegar à tese de que a soma das defesas das vantagens econômicas individuais levaria ao bem comum.
Na segunda metade do século passado, a lógica de Smith ganhou novos contornos, com o neoliberalismo reduzindo a noção do bem comum ao extremo usufruto dos poucos que conseguissem ser competitivos o suficiente ao ponto de eliminar os mais lentos e os mais fracos. Com isso, chegamos a uma situação insuportável nas relações humanas — e a uma condição insustentável no que se refere à preservação da natureza.
A escolha do saci como mascote para a Copa do Mundo no Brasil tem um ar de respeito à vida, ao meio ambiente e à diversidade cultural, por meio do que temos de mais humanamente distinto, que é o nosso imaginário. É como se o saci fizesse frente aos mascotes virtuais que têm sido induzidos aos cuidados infantis, como se fossem seres vivos de verdade, como se expressassem sentimentos e necessitassem de afeto para sobreviver.
De tanto propalar os benefícios da "saciologia" já fui questionado por leitores se não seria o caso de pensarmos em um herói menos mutilado e mais viril, menos marginal e mais vencedor, para utilizar como modelo brasileiro de busca da excelência nacional (como é o caso do Super-Homem, do Capitão América, do Homem de Ferro e de outros super-heróis das histórias em quadrinhos), criados como esforço de comunicação de supremacia.
O saci é um anti-herói. Está mais próximo do Osaín, mito iorubá que brotou da terra com a vegetação e teve seu corpo partido pela metade por um raio inimigo. A diferença é que, enquanto Osaín prepara as ervas e a água medicinal para as cerimônias de comunicação humana com os orixás, o saci aproveita os ventos contrários para sair redemoinhando a sempre surpreendente ligação da cultura com a natureza. Com o Saci de mascote na Copa de 2014, mais do que um duende libertário daremos ao mundo uma prova de grandeza e de soberania cultural.
Tudo começou como tudo que é bom começa: conversa vai, conversa vem e o jornalista mineiro Mouzar Benedito comenta em uma reunião da Sociedade dos Observadores de Saci — a SOSACI —, que certamente os marqueteiros inventarão um mascote besta para a Copa, a exemplo do já esquecido "Cauê" dos Jogos Panamericanos.
A observação foi suficiente para dar o apito inicial da campanha. Não é preciso esperar quem vai em uma perna e volta na outra para saber que o saci é uma síntese do povo brasileiro, de domínio público, conhecido em todo o território nacional, brincalhão, gozador e que gosta de dar alguns sustos também.
O saci é um ser fantástico das matas que foi colocado no terreiro das crenças indígenas, amamentado pelas mães-pretas e coroado com o gorro da liberdade trazido pelos imigrantes. Mouzar diz com irreverência sacizística que até nas comemorações do Centenário da Imigração Japonesa tem aparecido Saci de olhinhos puxados, respondendo pelo nome de "Sashimi"...
O escritor santista José Roberto Torero gostou tanto da idéia do saci como mascote para a Copa de 2014 que fez logo um texto para o caderno de esportes da Folha de S. Paulo (10/6/2008) defendendo o danisco, por sua força de simbolizar o Brasil e de permanecer na memória dos torcedores, como algo originário da cultura brasileira. Torero convoca seus leitores a se unirem nessa cruzada de vivas ao saci.
Tomando o entusiasmo de Mouzar e de Torero, também para mim entro aos pulos e assobios nessa campanha de fortalecimento dos valores positivos da brasilidade. O saci é uma figura rica em variantes e, por isso, mesmo correndo o risco de ter sua imagem massificada como mascote, a consistência do seu composto simbólico dará sempre para combinar com os modos locais de interação com o seu significado.
Por estar lastreada em atributos extraordinários de estado puro e amalgamada por materiais sensíveis da miscigenação, a intensificação da popularização do Saci é um meio de informarmos para nós e para o mundo que nos reconhecemos em nosso imaginário. Como mascote, ele estará além dos tradicionais bonequinhos, normalmente destituídos de alma coletiva pelas referências lógicas comerciais.
Precisamos ver a Copa do Mundo como o grande evento desportivo que ela é, mas precisamos encará-la também como plataforma de canal invertido de transmissão cultural. Temos poucas chances de enviar para o mundo algo das nossas manifestações autênticas — e esta será uma delas. O mascote do saci servirá de êmulo no contrafluxo simbólico a tudo o que apenas recebemos no cenário de assimetria das relações culturais internacionais.
O saci tem a vantagem de ser um denominador comum para crianças e adultos. Chamá-lo a participar do jogo é um ganho para a memória nacional e uma elevação de ânimos da brasileirice. Fico imaginando-o com a bandeira brasileira no coração, no gorro, com a faixa verde-amarela de capitão, rodopiando em pequenas hastes dos camelôs à venda nas entradas dos estádios...
Mas fico imaginando mesmo é o desenho-animado do mascote Saci, em dribles mágicos com sua perna invisível. Sei que em um primeiro momento muita gente deve se perguntar que sentido faz um personagem que "só tem uma perna" ser o símbolo de uma Copa de Futebol, esporte fundamentado na habilidade humana de conduzir a bola com os pés até atingir o gol do adversário.
Engana-se quem pensar que o saci só tem uma perna. Quando ele era apenas uma lenda indígena, ele tinha duas patas. Depois foi que surgiu a história de que ele era um menino-escravo que preferiu perder uma perna a ficar preso aos grilhões das senzalas. Mas a perna arrancada na fuga do saci nunca foi encontrada, não há vestígios dela. Por isso, prefiro acreditar que ela ficou encantada: tão encantada que nem rastro deixa por onde passa.
Gostaria muito de saber explicar melhor o que chamo de perna invisível do saci, a perna invisível da cultura brasileira. Ela está nos passos de frevo, nos lances de capoeira e nos dribles dos grandes craques de futebol. O Dener dizia que um drible é mais importante do que um gol. De Garrincha a Ronaldinho Gaúcho, a perna encantada do saci pode ter sido a responsável por tantas jogadas desconcertantes na história do nosso futebol.
A gente praticamente não vê como ela ludibria os adversários em manifestações estéticas de grande emoção. É, sem dúvida, uma representação da alegria do futebol. Quando o Rivelino derrubava o adversário com uma rápida e invisível passagem de perna sobre a bola, ele estava fazendo as vezes de saci. Exemplos da atuação dessa incrível perna invisível estão aos montes na história de Pelé, Tostão, Sócrates, Romário, Denílson e nas pedaladas de Robinho.
No plano político, a perna invisível do saci-pererê é uma ótima alternativa à mão invisível do mercado. Ela representa a popularização do auto-pronunciamento das forças das culturas regionais, diante do poder destrutivo da lógica instrumental da economia, da idolatria da técnica e da redução de Deus à condição de objeto no comércio da fé.
Essa história de mão invisível do mercado vem do tempo da Revolução Industrial, quando o pensador escocês Adam Smith (1723 – 1790) criou os fundamentos do liberalismo. Ele partiu do pressuposto de que o ser humano é antes de tudo um egoísta, para chegar à tese de que a soma das defesas das vantagens econômicas individuais levaria ao bem comum.
Na segunda metade do século passado, a lógica de Smith ganhou novos contornos, com o neoliberalismo reduzindo a noção do bem comum ao extremo usufruto dos poucos que conseguissem ser competitivos o suficiente ao ponto de eliminar os mais lentos e os mais fracos. Com isso, chegamos a uma situação insuportável nas relações humanas — e a uma condição insustentável no que se refere à preservação da natureza.
A escolha do saci como mascote para a Copa do Mundo no Brasil tem um ar de respeito à vida, ao meio ambiente e à diversidade cultural, por meio do que temos de mais humanamente distinto, que é o nosso imaginário. É como se o saci fizesse frente aos mascotes virtuais que têm sido induzidos aos cuidados infantis, como se fossem seres vivos de verdade, como se expressassem sentimentos e necessitassem de afeto para sobreviver.
De tanto propalar os benefícios da "saciologia" já fui questionado por leitores se não seria o caso de pensarmos em um herói menos mutilado e mais viril, menos marginal e mais vencedor, para utilizar como modelo brasileiro de busca da excelência nacional (como é o caso do Super-Homem, do Capitão América, do Homem de Ferro e de outros super-heróis das histórias em quadrinhos), criados como esforço de comunicação de supremacia.
O saci é um anti-herói. Está mais próximo do Osaín, mito iorubá que brotou da terra com a vegetação e teve seu corpo partido pela metade por um raio inimigo. A diferença é que, enquanto Osaín prepara as ervas e a água medicinal para as cerimônias de comunicação humana com os orixás, o saci aproveita os ventos contrários para sair redemoinhando a sempre surpreendente ligação da cultura com a natureza. Com o Saci de mascote na Copa de 2014, mais do que um duende libertário daremos ao mundo uma prova de grandeza e de soberania cultural.
*O cearense Flávio Paiva é jornalista e escritor
(Imagens: o Pererê do Ziraldo bate um bolão nos quadrinhos desde meados da década de 1960. Agora, em qual time ele joga... Já quem trouxe o saci à boca — e à lembrança — do povo foi o escritor Monteiro Lobato)
http://coisasdesaci.wordpress.com/2006/09/14/22-de-agosto-dia-do-folclore
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