14 novembro 2009

TRAÇOS, ESBOÇOS

Imagens das Segundas



Acendo mais um cigarro dentro da noite veloz, como quem conversa com um velho amigo e lhe faz confidências que não mais faria a ninguém. Faz pouco, fui beber um gole de café e a xícara escapou-me das mãos e espatifou-se dentro da pia.

Por incrível que pareça, quase na mesma hora lembrei-me de um verso de Carlos Drummond de Andrade, poeta que venho relendo com uma certa frequência: "Os cacos da vida, colados / Formam uma estranha xícara / Sem uso / Ela nos espia do aparador".

Creio que a minha vida anda assim, um tanto quanto parecida com esta xícara de café que acabei de quebrar por puro descuido.

Escrevo numa segunda-feira, seis horas da noite e as segundas-feiras para mim são um arremedo de dia, uma infeliz brincadeira de mau-gosto do tempo. Eu sei que elas jamais podem deixar de existir e que sempre seriam segundas-feiras, mesmo que lhes mudássemos o nome.

"As segundas-feiras estão atravancadas de pormenores inúteis / a vida parece um romance malfeito", como bem o disse o poeta Mário Quintana.

Não faz muito, um bom amigo telefonou para saber como está meu pai e me fala, em tom carinhoso, que todos estão muito preocupados comigo, se estou comendo direito, dormindo direito. Respondo que não há motivo para preocupações e que a vida segue seu curso.

Ando meio triste, devo confessar, contudo não estou tão desesperado ainda. Simplesmente continuo, prossigo vivendo do jeito que dá e que posso. Claro que deixei, por esses dias, de ser aquele sujeito brincalhão, sempre fazendo brincadeiras, com a gargalhada prestes a ser desatada a qualquer piada.

Mas também não ando chorando pelos cantos, exibindo com ar funéreo as minhas penas. Há dias melhores, há dias piores no carrossel do meu existir. Por vezes, penso que estou vivendo um pesadelo do qual despertarei em qualquer próxima manhã radiante de sol, perfumada de flores e de pássaros.

Giovanni Papini costumava dizer que a vida não é sonho, mas a urdidura dos sonhos pode iluminar e embelezar a trama da vida. E eu concordo completamente com ele.

Somos tão frágeis, tão fracos, tão egoístas que só conseguimos pensar em torno do nosso mundinho como se as outras pessoas também não tivessem lá a sua cota de sofrimentos e pesares.

Não sou o único a seguir o meu solitário Calvário. Pego da caneta e escrevo o que ainda consigo escrever. Ah, como eu gostaria que fossem palavras bonitas, frases irretocáveis. No entanto, só me saem estes garranchos espinhosos e urtigas.


*O cronista Airton Monte, que é nas horas vagas psiquiatra, redige impressões do viver para o Jornal da Praia desde a década de 1980

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http://opovo.uol.com.br/opovo/colunas/airtonmonte

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