08 outubro 2010

ENTRANDO EM PÂNICO

Uma história dos Diabos*


Se o Diabo existisse, sua diabólica estratégia seria a de colocar as pessoas trabalhando em algo que não fosse a sua verdadeira vocação.

Epidauro foi uma cidade da Grécia Antiga, situada às margens do Mar Egeu, célebre pelo santuário dedicado a Esculápio, deus da Medicina. Em Epidauro estava situado o principal centro de saúde de toda a Grécia.

Contava-se que pessoas acometidas por várias enfermidades acorriam a Epidauro para se curarem. Lá, eram recebidas por sacerdotisas curandeiras e, assim que chegavam, depois de uma conversa preliminar e o reconhecimento do lugar, recebiam delas para beber uma poção com ervas medicinais, que as fazia dormir por dois ou três dias.

Quando acordavam, iniciavam um período de profunda reflexão e autocrítica, apoiadas por conversas com aquelas sacerdotisas, para identificarem o que estava errado em suas vidas.

Diferentemente da atualidade — em que problemas de saúde se resolvem com remédios e hospitais —, para os gregos a saúde física e mental estaria intrinsecamente relacionada aos hábitos de vida e, principalmente, ao grau de satisfação e amor que as pessoas nutriam por si e pelas demais.

Para terem saúde, que olhassem com mais carinho para si mesmas e, envolvidas com o seu próprio destino, colocassem em exercício constante os seus talentos, na luta para realizá-los plenamente no mundo.

Costumava-se dizer que as pessoas deveriam consultar seus Deimons, "gênios" interiores ou "luzes" profundas. Dizia-se que os chás medicinais de Epidauro colocavam as pessoas num estado de relaxamento que propiciava um encontro com as motivações profundas há muito esquecidas, armazenadas além dos ideais, ética e sonhos reprimidos pelas exigências do dia-a-dia.

O próprio Sócrates afirmou ser guiado por seu Deimon nos discursos que nos legou através de Platão. Mais tarde, sob a égide do Império Romano e do Catolicismo inicial, estas visões de mundo foram perseguidas como "seitas pagãs".

Depois da queda do Império Romano, em 476 dC, já sem a presença de um poder central autoritário e forte, estas crenças voltaram a existir. É justamente aí que começa a nossa história dos Diabos.

Mais ou menos no ano 1600, quando a Idade Média já começava a dar sinais de desfalecimento, o famoso astrônomo e matemático Johannes Kepler teve a sua idosa mãe curandeira presa e ameaçada de morte, justamente porque ela costumava receitar chás.

A acusação à senhora genitora do cientista foi baseada no fato de que os algozes da Inquisição encontraram na estante de Kepler um livro de infância, escrito por ele mesmo ainda menino, no qual afirmava, numa brincadeira, ter viajado à Lua, depois de tomar um chá feito por sua mãe.

Mesmo com as devidas explicações, a mãe de Kepler foi presa. Como o leitor deve saber, o termo "Inquisição" refere-se à eliminação das heresias e seitas pagãs. Assim, desde 1184 e até 1542, o condenado era responsabilizado pelas doenças e misérias sociais e entregue às autoridades do Estado para que fosse punido. As penas variavam do confisco de bens e perda da liberdade até a morte na fogueira.

O que estava acontecendo é que a instituição religiosa nascente não estava conseguindo fazer crescer o número dos seus adeptos, porque as pessoas insistiam em procurar os conselhos das idosas curandeiras que abundavam na Europa.

Depois de uma grande perseguição, estas senhoras foram chamadas de "bruxas" e condenadas à morte. Além disso, estas visões foram perseguidas com a acusação de que orientavam as pessoas na direção do Demônio (Deimon).

Quando o povo simples começou a perguntar-se qual seria a forma do tal Demônio, foi inventado pelas autoridades que o Demônio tinha a forma de uma famosa figura da Grécia antiga: o deus Pã.

Na Mitologia grega, "Pã era o deus dos bosques, dos rebanhos e dos pastores. Residia em cavernas e era representado com orelhas, chifres e pernas de bode. Amante da música, trazia consigo uma flauta. Era temido pelos que atravessavam florestas à noite, pois as trevas os predispunham a ter pavores súbitos, atribuídos a Pã; daí o nome pânico."

Com medo deste Pã, tornado assustador, sinistro e perigoso, as pessoas afastaram-se das curandeiras e dos seus conselhos. Aos poucos, foram se esquecendo também do mergulho em si mesmas e da necessidade de viverem por paixão pela vida.

Até mesmo o sentido da palavra paixão — pathos — viria, mais tarde, tornar-se sinônimo de doença: patologia. Desde então, tudo o que vinha das motivações interiores das pessoas foi associado ao pecado e à perdição. Mesmo o sorriso e a gargalhada foram banidos, durante séculos, dos contatos humanos.

As mulheres, que na Antiguidade eram símbolos de fertilidade e religiosidade, foram afastadas de suas funções sagradas pelos novos homens sacerdotes. E nós, facilmente manipulados pelos medos infiltrados em nossa consciência, iniciaríamos um período alienado que se estenderia até hoje, onde perdidos e desorbitados de nós mesmos, nos tornaríamos superficiais, vazios e assoberbados por pânicos e dogmas, além de um excesso de expectativas exteriores, alimentadas em nós por interesses "maiores".

Mais tarde, nos perderíamos num racionalismo abstrato, que nos deu esperteza bastante para colecionarmos justificativas e argumentos para não sermos o que somos. Assim, seríamos vítimas fáceis para a nascente época industrial, na qual nos tornamos discípulos dóceis e obedientes das máquinas e dos seus produtos.

Finalmente, nos tornamos serviçais resignados de um sistema econômico que nos manipula, submete, aliena e exaure sem dar tempo e oportunidades à maioria de nós para um verdadeiro e salutar encontro interior, verdadeira origem de um destino que nos realizaria de fato.

Lembro-me agora da inscrição no famoso templo grego de Delfos, sempre repetida pelo grande filósofo Sócrates: "Conhece a ti mesmo". No fim das contas, o demônio foi criado para nos afastarmos de nós mesmos.

*Dib Curi é editor do jornal Fórum Século XXI

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