Profissão de fé*
Apesar dos pesares e de circunstanciais laivos de tristeza e amargor que, por vezes, deixo transparecer no que escrevo, talvez por não me levar sempre demasiado a sério, jamais fui de viver chorando a morte da bezerra ou aquilo que simplesmente poderia ter sido e que não foi.
Porque não faz parte da minha natureza cultivar o pessimismo profissional — mas também, por outro lado, não me considero aquele tipo de sujeito que pode ser classificado como um otimista delirante.
Humanamente, hei por bem confessar que não sou dotado de razão plausível para andar reclamando da maneira pela qual a vida vem me tratando ao longo do meu existir, embora haja sofrido algumas pernadas traiçoeiras do destino.
Outrossim, jamais fui seduzido pela ufanista ideia de me deixar ficar sentado, acomodadamente, sobre os poucos louros e os muitos fracassos por que passei, chocando ovo de jacaré só pra ver se nasce rouxinol.
Além do mais, ora pílulas, não se pode de forma alguma tentar negar que a realidade é a realidade tal e qual, sem subterfúgios, sem tirar nem por, e que se abate sobre todos nós de todas as maneiras possíveis e imagináveis e nem adianta coisa nenhuma tentar fugir dela usando qualquer anestésico, pois que senão é como tentar escafeder-se de si mesmo(a), mentindo descaradamente diante da nossa imagem refletida num espelho.
Só existe um modo de mudar a tal da realidade: unir a ação ao pensamento e ir à luta, com a solene disposição de matar um leão a cada dia.
Porque buscar inutilmente nos enganarmos? Não, a vida não é inimiga vocacional de seu ninguém, muito embora tenha lá algumas insondáveis predileções por alguns raros sortudos, que nascem com a bunda virada pra lua, como se diz no popular.
Eu, por exemplo, em matéria de PPB (Produto Pessoal Bruto), já me habituei ao inegável fato de que as minhas reservas cambiais nunca me foram por demais folgadas. Os ventos da monetária fortuna nunca se dignaram a enfunar generosamente as velas do meu boêmio barco.
Porém, de uma coisa tenho absoluta certeza (logo eu, homem de raras certezas): não posso me queixar da vida. Bem ou mal, com ou sem percalços, ainda consigo garantir a cervejinha sem álcool das crianças fazendo o que gosto.
De uma maneira ou de outra, sou o que sempre almejei ser: nem mais nem menos.
E à noite, antes de vencer a minha contumaz insônia, não resta em mim nem um tico de vergonha, ou de pejo, quando olho minhas sessentonas fuças ao espelho.
Posso até não dormir o sono dos justos, dos inocentes, dos sem-pecado, mas caio nos braços de Morfeu certo de que mal nenhum fiz a meus semelhantes, pelo menos de caso pensado.
O jovem idealista que um belo dia fui não se decepciona com o quase ancião que hoje sou. Não tenho medo do novo —afinal, o novo sempre vem, embora pelo simples fato de ser novo não significa compulsoriamente que seja bom.
E por isso mesmo, como sempre, estou aberto a novas experiências, principalmente porque o imprevisível jogo da vida é que nem o Cassino do Chacrinha, que só acaba quando termina.
*Escritor contumaz, médico-psiquiatra, colunista do Jornal da Praia desde os anos 1980, Antônio Airton Machado Monte é um dos mais legítimos cronistas da sua (nossa) época. Imagem por A. Britton (2002)
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