Bela manhã de domingo, como sói serem as manhãs de domingo em Fortaleza. Sentados na varanda, lado a lado, como se unidos por um fio invisível, minha mulher Sônia e eu lemos juntos o jornal recém-chegado, ainda fresquinho como um pão saído do forno da padaria.
Ela acordou tão cedo quanto eu, nossos relógios biológicos parecendo cronometrados para nos despertar na mesma hora matinal. Sua presença me faz um bem incomensurável à alma.
Enquanto dividimos irmanamente os cadernos do matutino, vamos conversando sobre os mais variados assuntos, inclusive a respeito de nós mesmos, de nossos problemas mútuos, de nossas preocupações em comum, da vida um tanto quanto aperreada que levamos, dos nossos esforços, da nossa luta cotidiana para manter o barco da família à tona das eventuais procelas.
Faz muito que caminhamos de mãos dadas seguindo a mesma estrada, percorrendo, entre quedas e levantes, o mesmo caminho desde que nos conhecemos ainda adolescentes.
Em tom de blague, costumo dizer que Dona Sônia é minha cruz que o destino me ofereceu. Todavia, uma cruz diferente, pois ao invés de ser carregada por mim, na verdade é ela quem me carrega nos ombros que parecem frágeis, mas que são muito mais fortes que os meus.
Reconheço que sou um fraco, que me deixo abater facilmente por qualquer percalço mais grave, enquanto ela resiste bravamente às intempéries que nos acometem como legítimos representantes do que eu chamo de "classe média aperreada".
Ela é a verdadeira comandante do navio. Eu não passo de um simples marujo, apesar de tentar manter minha pose de falso capitão de longo curso.
Minha mulher parece-se demasiado com minha mãe, pois demonstra nos momentos de aperreio a mesma fortaleza inquebrantável de minha genitora, que não desabava em lágrimas por qualquer besteira e enfrentava as dificuldades do existir com uma coragem de leoa.
Quando me encontro sozinho comigo mesmo na solidão das noites insones, uma indefectível pergunta logo me cutuca com vara curta o bestunto, cortando o fluxo dos pensamentos vadios que me povoam a mente inquieta: o que de mim seria se eu ficasse sem minha mulher?
Uma certeza me bate, avassaladora: certamente me transformaria num quase-nada, num inútil, insignificante zero à esquerda, um cachorro caído do caminhão de mudança. Da morte não tenho medo, porém me apavora o simples pensar que minha mulher possa morrer antes de mim.
Vergonha não tenho de confessar isso. E por que haveria de ter se estou falando a mais pura, a mais lídima das verdades? Pois além de amá-la com um amor intenso e permanente, eu dependo dela para tudo.
Sem ela, minha existência perderia a maior e a melhor porção do seu sentido, do seu significado. Ser-me-ia quase impossível continuar a viver sem ela.
Enquanto escrevo, quando em vez, sem que ela perceba, pouso nela meu olhar repleto de carinho e recebo de volta uma corrente intensa de força, de segurança.
Perto dela sinto-me envolto em uma aura de bendita proteção, a sensação feliz de que tenho alguém que estará sempre do meu lado, pronta para me ajudar, me socorrer nos momentos de urgente precisão.
Minhas fraquezas todas ela as conhece uma por uma -- e sabe de mim muito mais do que eu jamais saberei. Acredito até que é capaz de ler meus pensamentos, feito uma legítima "feiticeira do Bem".
Bendigo o dia em que nossos destinos se cruzaram e fomos naturalmente atraídos uma para o outro por obra e graça de algum deus do qual desconheço o nome.
Se é mesmo verdadeira a lenda de que há pessoas que já nascem destinadas a viverem juntas, nós dois somos a prova viva de que essa lenda, conosco, deixou de ser somente uma lenda para tornar-se um fenômeno real e incontestável. Ainda bem.
*Antônio Airton Machado Monte é médico-psiquiatra, escritor,
cronista e colunista do Jornal da Praia desde os anos 1980.
Caricatura do autor by Carlus Campos
cronista e colunista do Jornal da Praia desde os anos 1980.
Caricatura do autor by Carlus Campos
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