O filósofo e professor francês Michel Foucault (15/10/26 — 26/06/84, foto) legou-nos uma das mais belas profecias sobre o "cuidado de si", compondo uma ética política sobre a história da sexualidade — incluída a morte. A problemática da governamentalidade fôra retomada em seu Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1984): "Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante 10 anos".
Foucault veio a falecer em 25 de junho de 1984, quando seu estado de saúde não mais lhe permitia prepará-los. Salvo engano, nenhum sistema de pensamento obteve, em tão pouco tempo, repercussão tão ampla e evidente, do ponto de vista da mudança de racionalidade simbólica, a partir de temas como a crítica da razão governamental, a analítica do poder, sobre as relações "espaço-tempo" e "poder-saber", a "estética da existência" e o "experimento moral", e mesmo entre o "império do olhar" e a "arte de ver". É também impossível esquecer a tese segundo a qual "a visibilidade é uma armadilha", numa sociedade que "canceriza" a vista através do poder disciplinar.
O estudo dedicado ao "cuidado de si" teve como referência Alcebíades (451-404 a.C.) — general grego retratado em 1865 pelo pintor, desenhista e escritor brasileiro Pedro Américo (1843-1905). Nele, as questões dizem respeito ao "cuidado de si" com a política, com a pedagogia e com o conhecimento de si próprio. Sócrates recomendava a Alcebíades que aproveitasse a sua juventude para ocupar-se de si mesmo, pois "com 50 anos, seria tarde demais". Isso, numa relação que diz respeito talvez ao "enamoramento" (na acepção do sociólogo italiano Francesco Alberoni) e que não pode "ocupar-se de si" sem a ajuda do Outro.
Contudo, é no discurso dedicado à formação da "hermenêutica de si" (1981-1982) que Foucault pretendeu estudá-lo "não somente em suas formulações teóricas, mas analisá-lo em relação ao conjunto de práticas que tiveram uma grande importância na Antigüidade clássica ou tardia". Certamente porque, para ele, estes princípios de "ocupar-se de si", de "cuidar-se a si mesmo" estão associados.
O exercício da morte, tal como evocado pelo filósofo estóico Sêneca (Lucius Annaeus Seneca, nascido em Córdoba, Espanha, em 4 a.C.), consiste em viver a longa duração da vida como se esta fosse tão curta quanto um dia e viver cada dia como se a vida inteira coubesse nele: todas as manhãs, deve-se estar na infância da vida, mas deve-se viver toda a duração do dia como se a noite fosse o momento da morte. "Na hora de ir dormir", afirma Sêneca em sua Carta 12, "digamos com alegria e com um sorriso: 'eu vivi'."
Isto quer dizer que, através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis (ascese, a disciplina de contenção da luxúria) necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca-nos a questão da verdade — da verdade do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer — no cerne da constituição do sujeito moral.
E, finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é, ainda e sempre, definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo, embora tal soberania amplie-se numa experiência onde a relação consigo mesmo assume a forma, não somente de uma dominação, "mas de um gozo sem desejo e sem perturbação".
Neste lento desenvolvimento da arte de viver sob o signo do "cuidado de si", os dois primeiros séculos da época imperial podem ser considerados como o ápice de uma curva, uma espécie de Idade de Ouro na cultura de si — sendo subentendido, evidentemente, que esse fenômeno só concerne aos grupos sociais, bem limitados em número, que eram portadores de cultura e para os quais uma techne tou biou (uma "arte da vida") podia ter um sentido e uma realidade — ou seja, "aqueles que querem salvar-se devem viver cuidando-se sem cessar".
Ademais, é conhecida a amplitude tomada em Sêneca pelo tema da aplicação a si próprio: é para consagrar-se a esta que é preciso renunciar às outras ocupações. O indivíduo poderia, desse modo, tornar-se disponível para si próprio. Sêneca dispõe de todo um vocabulário para designar as diferentes formas que o cuidado de si deve tomar e a pressa com a qual se procura unir-se a si mesmo. "Apressa-te, pois, para o objetivo, dize adeus às esperanças vãs, acorre em tua própria ajuda se te lembras de ti mesmo, enquanto ainda é possível".
Portanto, é possível dizer que não há idade para se ocupar consigo. Dizia Epicuro (Epicuro de Samos, filósofo grego do período helenístico que propunha uma vida de contínuo prazer como chave para a felicidade): "Nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ocupar-se com a própria alma". De sorte que devem filosofar o jovem e o velho — este para que, ao envelhecer, seja jovem em bens pela gratidão ao que foi, e o outro para que, jovem, seja ao mesmo tempo ancião pela ausência de temor pelo futuro.
"Aprender a viver a vida inteira" era um aforismo citado por Sêneca que nos convida a transformar a existência numa espécie de exercício permanente. E mesmo que seja bom começar cedo, é importante jamais relaxar, mas há uma advertência: "É preciso tempo para isso". É um dos grandes problemas dessa cultura de si o fixar, no decorrer do dia ou da vida, a parte que convém consagrar-lhe. Recorre-se a muitas fórmulas diversas: podem-se reservar, à noite ou de manhã, alguns momentos de recolhimento para o exame daquilo que se fez, para a memorização de certos princípios úteis, para o exame do dia transcorrido.
O exame matinal e vesperal dos pitagóricos encontra-se, sem dúvida com conteúdos diferentes, nos estóicos. Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio* fazem referência a esses momentos que se devem consagrar ao "voltar-se para si mesmo". Pode-se também interromper, de tempos em tempos, as próprias atividades ordinárias e fazer um desses retiros que Musonius (Musonius Rufus, filosófo estóico romano que viveu no Primeiro Século), dentre outros, recomendava vivamente: eles permitem ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o conjunto da vida transcorrida e familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional.
É possível ainda, no meio ou no fim da própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos ficam aparentemente apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, ao trabalho filosófico (ou, como Spurima, belo jovem romano citado no Filocolo de Giovanni Boccaccio que desfigura a própria face para não ser conspurcado pelo mundo) na calma de uma existência agradável, "à posse de si próprio".
Esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação — tão medida quanto possível —, as necessidades. Existem ainda as meditações, as leituras, as anotações que se tomam sobre livros ou conversações ouvidas — e que mais tarde serão relidas —, a rememoração das verdades que já se sabem, mas das quais convém apropriar-se ainda melhor.
Marco Aurélio fornece, assim, um exemplo de "anacorese em si próprio": trata-se de um longo trabalho de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas. Tem-se aqui um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo, que não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos.
Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma. Tal iniciativa encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação. Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a um Outro, o qual adivinha-se que possui aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito. E é também um dever que se realiza quando se proporciona ajuda a um Outro — ou quando se recebem, com gratidão, as lições que ele nos pode dar.
Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do Outro inserir-se em relações preexistentes, às quais dá uma nova coloração e um calor maior. O cuidado de si — ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos — aparece então como uma intensificação das relações sociais. Neste particular, Sêneca dedica um consolo à sua mãe no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores.
O "cuidado de si" aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de "serviço da alma" que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o Outro e de um sistema de obrigações recíprocas.
*Ubiracy de Souza Braga é sociólogo, cientista político e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
*Marco Aurélio Antonino (121-180) pertenceu a uma família de aristocratas e muito cedo perdeu os pais. Foi então adotado pelo tio, Aurélio Antonino, que mais tarde tornou-se imperador, nomeando-o seu sucessor. Aos 11 anos, conheceu o estoicismo e adotou hábitos de vida austera. Após sua formação, passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adotivo, ocupando o cargo de cônsul por três vezes. Em 161, Aurélio Antonino morre e Marco Aurélio torna-se imperador.
O governo de Marco Aurélio, que se estendeu por quase 20 anos (até sua morte), foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as conseqüentes dificuldades internas. Ele conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exercício do poder. Nos poucos momentos livres que lhe permitiam os encargos de governo, recolhia-se à reflexão filosófica e escrevia seus pensamentos em língua grega. Com isso, tornou-se o terceiro e último expoente do estoicismo romano.
O conteúdo de suas Meditações (como ficaram conhecidos seus pensamentos), é a filosofia estóica, mas um estoicismo distante das doutrinas de Zenão (Zenão de Eléia — 495 a.C.-430 a.C. — nasceu em Eléia, Itália. Discípulo de Parmênides, defendeu de modo apaixonado a filosofia do mestre. Seu método consistia na elaboração de paradoxos. Deste modo, não pretendia refutar diretamente as teses que combatia, mas sim mostrar os absurdos nelas expressos e, portanto, sua falsidade. Acredita-se que Zenão tenha criado cerca de 40 destes paradoxos — todos contra a multiplicidade, a divisibilidade e o movimento, que nada mais são que ilusões, segundo a escola eleática. Aristóteles o considera o criador da dialética).
As especulações físicas e lógicas cedem lugar ao caráter prático dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurélio, como também nas máximas de Epicteto, a questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver bem. Este tema é tratado com grande esforço e interesse por Marco Aurélio, homem religioso e pouco interessado na investigação científica. Em seus pensamentos, são bem visíveis as tendências ecléticas. Ele não hesita em acolher posições de sabedoria, que vêm até mesmo de Epicuro.
Uma das características que mais impressiona o leitor de suas Meditações é a insistência com a qual é tematizada e afirmada a "caducidade" das coisas: "Quão rapidamente, num segundo, desvanecem todas as coisas, os corpos no espaço, e a memória desses no tempo! E o que são todas as coisas sensíveis e, especialmente, as que nos seduzem com a voluptuosidade ou nos amedrontam com a dor ou são exaltadas pelos homens! Quão vis são, desprezíveis, horríveis, corrompidas, mortas!".
Marco Aurélio também rompe com o antigo Pórtico — a palavra estóico vem do grego stoá, que significa pórtico — quando distingue no homem o corpo, que é carne, a alma, que é sopro ou pneuma (ar) e, superior à própria alma, o intelecto ou mente. Enquanto o antigo Pórtico identificava o princípio dirigente do homem com a parte mais elevada da alma, Marco Aurélio o põe fora da alma e identifica-o com o intelecto. Por essa razão, o estoicismo de Marco Aurélio freqüentemente apresenta discrepância em relação às suas origens gregas. Por certo, a verdadeira chave para a compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. E, embora sua colaboração tenha sido de grande importância, ele não chegou a ser um pensador original.
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(Cena de 300, filme inspirado na graphic novel épica do norte-americano Frank Miller que aborda romanceadamente a estóica resistência de Esparta às hostes do imperador persa Xerxes, aqui derramando-se sobre o abismo)
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