Se quiser fumar, eu fumo
Se quiser beber, eu bebo
Não interessa a ninguém
Oito horas da noite. Lena põe o CD no aparelho de som e sobe o volume até o máximo. A música que toca, estridente, é um velho samba-choro de fossa, cantado por Núbia Lafayette. Na calçada as pessoas passam curiosas, olhando para dentro do bar. Mas Lena não as vê. Encostada à porta do bar, acende um cigarro, dá uma longa tragada e solta a fumaça para cima. Do outro lado da rua ela pode ver o movimento dentro da igreja, os pastores já no palco, os fiéis sentados nos bancos a aguardar. Na entrada, uma moça e um rapaz convidam os transeuntes a entrar e aceitar o Senhor Jesus. Lena sorri de vê-los constrangidos pela música que toca. Então ele surge.
Bem à entrada da igreja, de paletó, a bíblia na mão. O rapaz aponta para o outro lado da rua e ele se vira para olhar. É nesse momento que seus olhares se cruzam. E é como se 10 anos não houvessem se passado. Os olhares se mantêm fixos um no outro, intercalados pelos carros que passam pela rua. Lena se delicia ao constatar a imensa surpresa nos olhos dele. Pega o copo na mesa ao lado e toma um gole de campari. Quando olha novamente, ele já voltou para o interior da igreja.
Se o meu passado foi lama
Hoje quem me difama
Viveu na lama também
Hoje quem me difama
Viveu na lama também
"Olhai, irmãos, olhai em vossa volta e vereis a Babilônia a seduzir com seu hálito de bebida e suas promessas de luxúria!!!" A voz dele, amplificada, extrapola os limites da igreja, atravessa a rua e parece duelar com o bolero. Lena, imperturbável, toma mais um gole de seu campari. O garçom se aproxima e comenta algo sobre o volume da música mas ela não responde, permanece na mesma posição, o olhar distante. "Olhai, irmãs, e vereis as mensageiras de Satanás na porta dos bares, essas almas perdidas cuja especialidade é levar os homens junto com elas para o Inferno!!!"
Comendo da minha comida
Bebendo a mesma bebida
Respirando o mesmo ar
Bebendo a mesma bebida
Respirando o mesmo ar
Ele era um garoto quando ela o conheceu. A paixão foi instantânea, mútua... e avassaladora. Semanas depois seu marido descobriu, expulsou-a de casa e ela alugou para eles um pequeno quarto no Centro, cuja cama passou a ser o templo sagrado dos seus desejos insaciáveis. E, uma vez juntos, perderam-se ainda mais. Para sustentar os vícios — que não eram poucos — enganaram, roubaram e assaltaram. Foi por amor que várias vezes ela foi buscá-lo no hospital, tantas brigas que ele arrumava pelas ruas.
Foi por amor que várias vezes, louca de ciúmes, ela bateu nas mulheres que ele insistia em cortejar descaradamente em sua presença. E foi por amor, quando já não havia mais dinheiro, quando mendigavam comida na porta dos restaurantes, quando já não havia mais alternativas, que Lena decidiu alugar o corpo na praça da Central.
E hoje, por ciúme ou por despeito
Acha-se com o direito
De querer me humilhar
Foram 8 anos de praça. Oito anos suportando o bafo de cachaça dos operários e o suor fedido dos mendigos. Oito anos vendendo por meia hora aquilo que deveria ser dele, apenas dele, durante toda a vida. No fim da noite, ela levava o arrecadado para ele, que aguardava no bar com os amigos, bebendo e jogando. Uma noite, porém, não o encontrou lá.
Procurou-o pelas ruas, mas lá ele também não estava. Quando chegou em casa, já de manhã, encontrou-o em sua cama, com outra mulher. Ela não lembra exatamente do que fez mas, nos autos, consta que os policiais, alertados pelos vizinhos, a encontraram sentada no chão, ainda segurando a faca, tranqüila e cantarolando um bolero. Ao lado dos dois corpos ensanguentados.
Quem és tu? Quem foste tu?
Não és nada
Se na vida fui errada
Tu foste errado também
Quinze anos depois, foi libertada. Quinze anos no inferno. Deixou o presídio e foi diretamente ao prédio onde antigamente morava. Depois de muito perguntar foi que soube onde ele estava. Rumou para lá. Era uma modesta igreja, que funcionava no salão do segundo andar de um prédio velho. Ela chegou, sentou-se no último banco para que ele não a reconhecesse e o escutou pregar. Ele falava de amor, fraternidade e perdão.
Era um sermão bonito, que tocava o coração. Mas o de Lena não tocou. Antes do final ela levantou-se, interrompendo o culto e, de dedo em riste na cara dele, gritou tudo que se acumulara em seu coração naqueles 15 anos. Quinze anos em que ele jamais fora visitá-la. Sequer lhe mandara um lençol limpo. Sequer lhe escrevera um mísero bilhete. Ele não conseguiu dizer nada, assustado e constrangido por ver exposto, diante dos fiéis e de sua esposa, todo o seu passado sombrio.
Quando ela fez uma pausa ele aproveitou e disse, em voz alta, para todos ouvirem, que ela estava possuída por Satanás. Nesse instante os seguranças avançaram e a seguraram, enquanto o outro pastor assumia o ritual de exorcismo. Ela gritou e se debateu, mas foi inútil. Minutos depois, vencida pelo cansaço, pelo desânimo e pela decepção, deixou-se cair no chão, chorando todas as lágrimas que em 15 anos não chorara, enquanto os fiéis louvavam a glória do Senhor Jesus.
Não compreendeste o sacrifício
Sorriste do meu suplício
Me trocando por alguém
Sorriste do meu suplício
Me trocando por alguém
Foram várias noites em claro, lutando contra sua própria alma dilacerada e dividida. Uma parte ainda o amava, muito, loucamente, mas a outra simplesmente não conseguia perdoá-lo. Durante 40 dias e 40 noites amor e ódio fizeram de sua alma campo de horrenda batalha, sequiosos por conquistá-la. O inferno do presídio era pouco, perto daquela eternidade inimaginável de torturas. Até que um dia ela, enfim, adormeceu sorrindo.
E dormiu o sono justo dos que finalmente compreendem aquele que talvez seja o maior dos mistérios do amor: que ele perdoa até mesmo o que não tem como ser perdoado. No outro dia ela foi ao culto, disposta a contar-lhe a boa-nova que soprava alegre em seu espírito, feito uma brisa de Verão. Mas quando chegou à porta do salão, foi enxotada pelos próprios fiéis que, ajudados pelos seguranças, levaram-na para fora e, no beco ao lado, a apedrejaram. Jogada ao chão, quase desfalecida, o sangue a cobrir-lhe a vista, ela ainda o viu aproxima-se, largar um punhado de areia sobre seu corpo e dizer: "Pra mim você já morreu".
Se eu errei, se pequei
Pouco importa
Pouco importa
A voz do garçom chega novamente, misturando-se às lembranças. Enquanto ele comenta algo sobre clientes indo embora, 10 anos se passam rapidamente em sua mente, 10 anos em que ela apenas trabalhou e trabalhou e trabalhou, inteiramente obcecada. E o resultado está aí, na forma desse pequeno bar, que ela inaugura exatamente essa noite. Nesse instante um casal entra, observa o interior do recinto, dá meia-volta e sai, com jeito de assustados. O garçom, perdendo a paciência, diz que ali ele não trabalha mais e vai embora.
Lena dá outra tragada no cigarro e entra. Caminha até o centro do bar, entre as mesas, e toca o caixão. É um caixão branco de madeira brilhosa, suspenso sobre o pedestal de ferro. Grudada pelo lado de dentro do vidro, por onde se veria o rosto do defunto, o que se vê é uma foto desbotada, onde, sentado numa mesa de bar, um homem jovem sorri.
Se aos teus olhos estou morta
Pra mim morreste também
Pra mim morreste também
*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra — a 3.ª pedra do Sol
A música “Lama” (letra usada no texto) é de autoria de Aylce Chaves e Paulo Marques, na interpretação de Núbia Lafayette
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