25 novembro 2007

FELICIDADE EXISTE?!?

Bergman e o espelho da angústia contemporânea


Foi em sua terra natal que Bergman ajustou os focos de suas lentes para produzir uma visão transcendental. Morreu no dia 30 de julho último aos 89 anos na ilha de Faaro, território sueco no Mar Báltico, documentado pelo cineasta em 1969 como um média-metragem. Cidadão de Upsala, nascido num dia histórico para a humanidade — o 18 de Brumário da Revolução Francesa, explicado pelo filósofo Karl Marx como um coup d'État —, Ernst Ingmar Bergman (1918-2007) era filho de um pastor luterano.

Do luteranismo amargou uma criação autoritária, baseada em conceitos relacionados ao pecado, confissão, castigo, perdão e indulgência. Em sua autobiografia Lanterna mágica, Bergman faz relatos impressionantes. Sempre que contava uma mentira recebia castigos constrangedores, como “desfilar vestido de menina ou ser trancafiado num armário”. É nesse período que vivencia sentimentos como vergonha ou humilhação, tão explorada em seus filmes.

A iniciação profissional do diretor deu-se através de um dos patriarcas do cinema sueco, Victor Sjöstrom (homenageado por ele em Morangos silvestres / Smultronstället, Suécia 1957), em que Sjöstrom interpreta o protagonista que perde a noção da memória face à iminência da morte. Mas também o levou à Universidade de Estocolmo. Em 1941, iniciou sua carreira no teatro com Morte de Kasper. Seu sucesso o levou a tornar-se revisor de roteiros de cinema, até que um dia trocou uma de suas revisões por um texto próprio, A tortura do desejo, entregue ao diretor Alf Sjöberg — o qual abriu-lhe as portas para a Sétima Arte.

Esta pode ser fundamental com respeito ao resto da cultura, porque cultura é a reunião das asserções de conhecimento e a arte, em particular a cinematográfica, adjudica tais asserções. Enquanto práxis, aparece como a tentativa de ratificar ou desbancar asserções de conhecimento feitas pela ciência, moralidade, ou religião. A arte pode fazer isso porque, “em si”, no sentido hegeliano do termo, com os recursos tecnológicos, estéticos e artísticos que lhe são comuns apresenta condições e possibilidades “para si” destes fundamentos, num estudo do homem através de “processos mentais” ou da atividade de representação — os quais, desse ponto de vista, tomam a sociedade como espelho reflexivo da cultura, que por sua vez torna o conhecimento possível.

Conhecer, então, é representar acuradamente o que está fora da mente. Assim, compreender a possibilidade e a natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente é capaz de construir tais representações.

Bergman leu Kierkegaard e Kierkegaard leu o último Hegel (o da Phänomenologie des Geistes, 1807), um Hegel que exalta o sacrifício da felicidade individual e geral que daí resulta, ou da angústia (como observou o filósofo Jean Wahl no conhecido texto Le malheur de la conscience dans la 'philosophie de l'Esprit' de Hegel / Paris: PUF-Presses Universitaires de France, 1951).

E, se todo o pensamento de Kierkegaard é desenvolvido a partir do seu íntimo (tal como também ocorre com Bergman), é porque decorre de uma escolha consciente do pensador “por si próprio”. Apesar disto, o filósofo experimenta os valores da tradição ou da “moda” filosófica de seu tempo, mas é, sobretudo em sua existência que Kierkegaard encontra elementos por ele considerados importantes para embasar a construção de seu pensamento. Com uma vida conturbada e grandes alternativas se descortinando, o resultado de sua filosofia é uma novidade muito mais de acordo com suas próprias experiências do que com outros sistemas anteriores a seu tempo.

Das influências que recebe, parte de um conceito amplamente utilizado por Sócrates — o de ironia. Kierkegaard considera Sócrates como “precursor e patrono da filosofia da existência” (conforme Pierre Mesnard, em Kierkegaard, Lisboa: Edições 70). Daí o “paradoxo de conseqüências não-intencionais” (para lembrarmos Max Weber), devido ao fato de que, se sua obra é obtusa, Bergman, de outra parte, está em dia com questões como a incomunicabilidade e a efemeridade, tão caras também a cineastas como Michelangelo Antonioni (de Blow-Up / Depois daquele beijo, Inglaterra/Itália, 1966) ou Federico Fellini (de Amarcord, Itália/França, 1973), que às vezes o aproximariam de um bom-humor imprevisível como em Sorrisos de uma noite de Verão (Sommarttens Leende, Suécia, 1955), que retrata uma comédia romântica, verdadeira ciranda de paixões inspirada na peça de Shakespeare (assim reconhecido pelo Festival de Cannes em 1955).

Responsável pela projeção internacional definitiva do cineasta, o filme inspirou um musical de grande sucesso na Broadway e ainda Sonhos eróticos de uma noite de Verão, do iconoclasta Woody Allen, mas também a eroticidade angustiante dos filmes de Walter Hugo Khouri, como As amorosas (Brasil, 1968) e Corpo ardente (Brasil, 1966) para ficarmos nestes exemplos.

Além disso, para o que nos interessa, Kierkegaard era profundo conhecedor de obras clássicas. Entre as fontes que o influenciavam estavam as belas-artes, a filosofia clássica e moderna, a teologia etc. Pode-se perceber em sua obra um pensamento reflexivo bastante abrangente, fruto desta sua diversidade de fontes, abrangência cujo objetivo é confrontar as idéias, os fatos, as experiências à luz do cristianismo — que é, para ele, uma "consciência moderna".

Seu pensamento baseia-se em sua cultura incomum e nos complexos sentimentais profundos. Através “de si” e de seus problemas, quer encontrar uma explicação para a (sua) existência. Mas não bastava para Kierkegaard analisar o conteúdo da consciência para se encontrar aí uma filosofia da existência. Tem-se, também, que ter idéias e, entre estas, tem-se que estabelecer uma dialética. É através desta dialética que Kierkegaard percebe os estágios da existência: estético, moral e religioso.

É então que se pode perguntar: "Quem é feliz realmente?" e "Dos que buscam o prazer, o mais feliz não será aquele que não experimentou felicidade alguma?" Terá o homem que empenhar, pois, toda a força para manter a vida conjugal. A partir desta consciência de vida ética, começa a aparecer no pensamento de Kierkegaard sua traumática experiência amorosa e a dificuldade em entender e relacionar-se com o sexo feminino.

Para ele, a manutenção da vida conjugal — característica essencial da ética — será dificultada ao homem pela presença feminina que, para o filósofo, tem enorme dificuldade de se situar em uma relação definida. Kierkegaard vai ainda mais longe: para ele, a mulher situa-se naturalmente no estágio estético (onde, aliás, ela é objeto de desejo em última instância), mas a plena revelação da mulher só será possível no estágio religioso.

Como apelo à subjetividade profunda, o estágio religioso pratica uma devoção ao "Deus que não aparece" e comunica-se através do silêncio que provém desta relação: isto nos faz perceber que os dois primeiros estágios são mais populares do que o terceiro. Kierkegaard entendia que os estágios estético e ético não podiam existir sem o estágio religioso. Em outras palavras, o religioso estava presente tanto no estético quanto no ético.

O religioso é um estágio conseqüente, pois é a partir da desordem dos estágios inferiores que se tem a possibilidade de encontrar a realidade superior da vida religiosa. Nesta sua escolha pela vida religiosa solitária, Kierkegaard foi conduzido a uma crise com os oficiais da Igreja Luterana (igreja oficial da Dinamarca). O filósofo compreendeu que acontecia, em seu tempo, a descristianização do mundo. Sua luta solitária, contra pastores e bispos oficiais preocupados com suas carreiras eclesiásticas, aumentará o seu sofrimento e o fará alvo das chacotas populares, aumentando, a cada dia, sua solidão.

Tal solidão no sofrimento torna-se o centro da meditação de Kierkegaard — e, por extensão, de Bergman, que, no plano cinematográfico, desenvolve a partir da solidão e do sofrimento o sentido da subjetividade e da existência que vêm do seu interior.
No filme Cenas de um Casamento (Scener ur ett äktenskap, Suécia, 1973, com Liv Ullman, Erland Josephson e Bibi Andersson), Bergman realiza uma das mais contundentes análises feitas pelo cinema sobre os encontros e os desencontros do matrimônio. É um apaixonante e digno estudo sobre um casamento em desintegração e o relacionamento daí decorrente, fora do que até hoje existe e já foi produzido na e pela indústria hollywoodiana a respeito.



*Ubiracy de Souza Braga é sociólogo, cientista político e professor da Coordenação do Curso de Ciências Sociais da UECE-Universidade Estadual do Ceará


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