Aprisionado. Encurralado pelos próprios sentimentos, cobria a cabeça com o travesseiro. Mas eles sempre o encontravam. Ligava o som, a música bem alto, "vamo lá, cara, esquece essa mulher..." Os sentimentos, porém, gritavam mais alto ainda. Como fugir de algo dentro dele mesmo?
Na hora de comer tentava se concentrar nos detalhes, toda a atenção do mundo... Mas então lembrava-se dela tomando café, linda em sua beleza matinal, o café que ele mesmo levava para ela na cama. E as lágrimas caíam, misturando-se à comida. Inútil fugir, inútil.
Quando a solidão tornou-se insuportável, quando os pensamentos já eram sombras gigantescas, quando os sentimentos iam explodir o peito, ligou para o amigo. A primeira pessoa de quem lembrou, o amigo, 20 anos de amizade, 30 de porres homéricos. Alguém para falar, por favor. Por favor...
E ligou. E começou falando bobagens, inventou assuntos. O amigo trabalhando, o tom da voz meio distante. Então ele confessou: precisava conversar, podiam se encontrar à noite? O amigo respondeu "sim, claro, algum problema?" Ele disse "nada demais", apenas se sentia um pouco só, "eu... eu..." E não pôde prosseguir. Do peito de repente subiu um engasgo tão forte que a voz se calou. E começou a chorar, sem controle.
Foi pegá-lo em casa, o amigo. No percurso falaram de amenidades, ele meio envergonhado do choro ao telefone. Mas pelo menos não passaria a noite sozinho com seus demônios. Conversaria, dividiria a angústia, isso far-lhe-ia bem. É por isso que as mulheres gostavam de conversar, falar de sentimentos? Então era por isso. Chegaram e o amigo serviu uísque, salgadinhos e sentaram na varanda. "Um brinde à nossa velha amizade, quantos anos, 20, tudo isso? Tamo ficando velho. Velho, não, vivido." Tim-tim.
Amizade é bom, mas não pode esquecer do futebol: o time precisa de reforço no meio-campo. Nem das mulheres: "aquela cliente dá em cima de mim direto, qualquer dia eu perco a cabeça." Trabalho: "se eu conseguir o terreno, mando o banco pra putaquipariu". Ele escutava o amigo falar e se divertia. Sentia-se melhor, menos sufocado, os demônios indo embora com o vento que soprava na varanda.
O amigo serviu outra dose, relaxou na cadeira, estava cansado, andava trabalhando muito. Futebol de novo: o jogo de domingo, aquele pênalti não marcado, a partida tomaria outro rumo. "Sim, é verdade", ele concordava. Trabalho de novo: o chefe do setor andava de marcação com ele... Mulheres de novo: aquela atriz, "dizem que o cachê é dois mil por uma noite, é mole?" Ele ria do amigo, ria gostosamente, mas...
A razão de estar ali, falar de seus sentimentos, até o momento nada, os assuntos passando sempre ao largo. Tentou uma vez: "pô, eu ainda gosto dela, tô arrependido do que fiz..." mas logo o papo voltou para o trabalho. Tentou outra vez: "tu acha que eu devia ir atrás dela?" Olhou para o amigo e viu que ele bocejava. "Hein?, ah, acho sim, quer dizer, você devia esquecer essa mulher, tanta gata por aí, vai mais uma dose?"
Acabou desistindo. O amigo, arriado na cadeira, dormia e acordava. Três horas de papo e não falou do que realmente queria, tanta coisa para dizer, botar para fora. Bem, pelo menos se sentia melhor, a alma já não pesava tanto no peito. O amigo olhou o relógio, precisava dormir, amanhã tinha muito trabalho, "tu pode dormir no outro quarto, preparei tua cama, tem lençol, se precisar de algo..."
Ficou mais um pouco na varanda, sozinho, olhando as luzes da cidade. Respirou fundo, afastando a pena de si mesmo. Ele era apenas um cara sofrendo, só isso. Mas por que os homens não gostavam de falar das coisas do coração? Por que fugiam dos próprios sentimentos? Doía pensar, pois os pensamentos o levavam de volta a ela, que tanto queria esquecer, não, não queria esquecer, apenas a queria de volta, só isso, ou não?...
No quarto, já deitado, sorriu lembrando do amigo. Não podia culpá-lo. Ele fora generoso, a seu modo atrapalhado, travado, evitando falar de sentimentos. Sentimentos. Essa coisa tão feminina... Tão feminina? Como assim? Sofrer por amor era exclusivo das mulheres? Se era, então que elas lhe dessem licença, ele agora fazia parte do clubinho. Sem nenhuma vergonha.
Então desligou o abajur. Mas o abajur ligou novamente: era um último demônio, insistente, olhando para ele. Ele sorriu e puxou a tomada da parede. E se ajeitou sob o lençol. Amanhã seria um novo tempo.
*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra, 3.ª Pedra do Sol
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