Para quem não viu os desfiles de escolas de samba que comemoraram o Bicentenário da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, talvez fiquem em branco os erros históricos que repetiriam, mais uma vez, o espírito do “Samba do Crioulo Doido”. A vinda da Família Real presta-se a equívocos. O que menos conta é o que talvez mais valha para a própria história do Carnaval.
Ainda hoje, a porta-bandeira e o mestre-sala são um par fundamental em todas as escolas de samba: suas indumentárias luxuosas do princípio do século XIX pretendem, certamente, imitar o fausto que foi a chegada da Família Real portuguesa, com suas vestes desconhecidas até ali no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, capital da Colônia.
Não havia nada de carnavalesco na comitiva de D. João VI, mas o povo incorporou a chegada da comitiva no seu faz-de-conta. Numa certa medida, confirma-se Karl Marx, que dizia que a História se repete sempre como farsa.
No entanto, a Independência brasileira nasceu justamente da fuga dos Braganças de Portugal para o Brasil. Talvez pudesse ser este o tema do desfile e dos sambas-enredo que celebraram a chegada da Família Real. O historiador Evaldo Cabral de Mello, de Pernambuco, assinala que, não obstante tudo o que se diz do “moleirão” que teria sido D. João VI, foi ele o único rei que manteve a coroa na Europa continental, apesar das investidas de Napoleão.
Digamos que ele tivesse para onde fugir, e que, afinal, sua inteligência foi ter sabido qual a sua rota de fuga, é uma das leituras que os brasileiros fazemos. Assim também em relação à Independência, que se deu não através de um movimento de massas, mas pelo gesto de um príncipe luso. Ao que parece, a “piada de português” nasceu aí: para não concedermos que até a nossa independência veio como dádiva dos “patrícios”, inventamos que eles seriam “burros”.
À dominação portuguesa, opusemos-lhe o riso. Não deixa de ser uma resposta a qualquer opressão. Quanto ao mais, porém, as guerras napoleônicas, a fuga de D. João e a posterior derrota de Napoleão ter-se-iam encarregado de facilitar.
O que quase não se diz, a propósito, é que quando D. Pedro I proclamou a Independência do Brasil ele tinha atrás de si a boa-vontade de toda a Europa — como aconteceu em anos recentes com o fim da URSS, em que, como se pregava, o mundo seria redimido sem os socialismos do tipo bolchevique. Após o fim da era napoleônica, as antigas monarquias esperavam que o republicanismo da Revolução Francesa se extinguisse para sempre.
Ou seja, para voltar ao Brasil: ninguém mais confiável à Europa restaurada do que um príncipe a reger um país de dimensões “continentais”. A história de que D. João VI teria adivinhado que o Brasil seria independente e que teria, assim, recomendado a seu filho que precipitasse o inevitável, antes que um “aventureiro” o fizesse, numa certa medida era já a intuição de que a Europa preferiria que o Brasil fosse um império e não uma república.
Sugere-se, em cima disso, que o primeiro imperador brasileiro, apesar de seu liberalismo, talvez cedesse à tentação de enredar o Brasil nas contas de Portugal. Dom Pedro teria abdicado por não convencer de que uma eventual reunião de Portugal e Brasil não poria a perder a independência brasileira.
Seja ou não essa a verdade, uma coisa é certa: ao contrário dos republicanos latino-americanos que tinham em Napoleão o seu herói e o seu exemplo, Dom Pedro seria, por suas origens, o representante da antiga ordem — aquela que acabaria sendo restaurada após a derrota de Napoleão em Waterloo. Para a Inglaterra, a Áustria e a Rússia, as grandes vencedoras das guerras napoleônicas na Europa, D. Pedro I seria, em princípio, mais confiável aos seus interesses do que os republicanos como Washington e, principalmente, Simon Bolívar e José San Martín (Argentina).
Para dizer tudo, os tais sambas-enredo teriam de dizer da vinda de D. João VI que começava, então, uma outra História do Brasil: não só a dos grandes faustos das escolas-de-samba, com tudo o que isto significou para a cultura popular brasileira, mas para o que acabou como irremediável sob o ponto de vista econômico e político — a submissão do Brasil, logo na seqüência, aos interesses da Inglaterra.
Foi ela que avalizou o Grito do Ipiranga: a conta viria em seguida e não há, enfim, do que reclamar, posto que a História é irreversível...
Mas a chegada da Família Real portuguesa parece ter sido bem mais que um choque político ou mesmo econômico: a porta-bandeira e o mestre-sala figuram encarnar um aparato que se amplificaria para a cultura brasileira em muitos sentidos. Mais além, os acadêmicos gostam muito de falar da “carnavalização” do Brasil como um dado relevante do nosso processo cultural.
No entanto, talvez se devesse falar da “operatização” do Carnaval. Parece ser bem mais como espécies de óperas o que os carnavais de rua e suas escolas de samba prodigalizam nas avenidas. A partir da chegada da corte lusa ao Brasil, teríamos passado a “operatizar” nossos festejos como conseqüência do que foi o “maravilhoso” desfile da chegada do rei com sua comitiva de milhares de pessoas: eles se vestiam e se tratavam de uma maneira nunca vista pela embasbacada e pouco cultivada população do Brasil-Colônia.
Quanto a D. Pedro I, porém, fica difícil discuti-lo no papel de porta-estandarte das monarquias restauradas. Ao contrário do que esperavam dele os reinos europeus, Dom Pedro não aceitou a fantasia, o modelito, de rei absolutista: era autoritário, sem dúvida — mas destituiu manu militari seu irmão Miguel, que pretendeu impor uma monarquia absolutista em Portugal.
Enquanto Fernando VI, da Espanha, esfalfou-se em perseguição aos liberais que desejavam uma monarquia constitucional, o que provocou a fuga de intelectuais da Espanha, após a queda de Napoleão (o pintor Goya foi um dos que se exilaram na França), D. Pedro I — IV, em Portugal — deu um pinote para as monarquias absolutistas.
É provável que o quisessem como “cantor” de um samba-enredo escrito algures, nos salões das mais altas cortes européias. Não o fez. Não se amoldou à farsa que foi o absolutismo na Espanha, onde até a Inquisição “pediu passagem”, tendo se instalado no reino espanhol com tudo o que era de sua antiga usança: perseguições religiosas, intolerância, racismos etc. No Brasil e em Portugal não foi assim.
Tudo, de fato, parece mesmo ter começado com o desembarque da Família Imperial ao nosso País. O lado prosaico da coisa — as comilanças de D. João, a vida galante e algo degradada de D. Pedro, seus desregramentos, enfim — parece bem se compor com o Carnaval. Mas não se sugere também que, por causa disso, o Brasil passou a ser conhecido como “o País do Carnaval”. Afigura-se, neste caso, que a coisa está mesmo mais para ópera do que para desfiles de escolas-de-samba. Nas óperas, os finais podem até ser trágicos ou felizes, porém muito dificilmente terminam como farsa.
*Ênio Squeff é jornalista, crítico de música, ilustrador e artista plástico
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www.squeff.com
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