Ambulantes, pedintes e moradores de rua não esperam só por dinheiro dos motoristas parados no sinal vermelho. Sem pagar pra ver, eu vi. A cada livro oferecido em vez de esmola, um leitor descoberto. "Dinheiro não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?"
Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário do seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas da revista NovaEscola: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse e conferiria as reações.
Para começar, acomodei 45 obras variadas — do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier — em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar.
Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais. Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram.
Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema. No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vítor (os nomes foram trocados para preservar as pessoas), 20 anos, vendedor de balas.
Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:
- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.
Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vítor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro — "Esse do castelo, que deve ser de mistério" — para presentear a mulher que o esperava na calçada.
Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela (nome trocado), 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da Prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a R$ 1 uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da Avenida Tiradentes, no Centro. Fiz a pergunta de sempre.
E ela respondeu:
- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura? — provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico (nome fictício), 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro.
- Sabe ler?, perguntei.
- Não... — disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:
- Sim. Sei, sim.
- Em que ano você está?
- Na 4.ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.
Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela Avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.
Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura.
Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...
- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.
Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria (nome... já se sabe). Carregava a pequena Vitória (precisa repetir?), 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.
Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário do seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas da revista NovaEscola: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse e conferiria as reações.
Para começar, acomodei 45 obras variadas — do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier — em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar.
Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais. Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram.
Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema. No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vítor (os nomes foram trocados para preservar as pessoas), 20 anos, vendedor de balas.
Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:
- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.
Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vítor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro — "Esse do castelo, que deve ser de mistério" — para presentear a mulher que o esperava na calçada.
Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela (nome trocado), 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da Prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a R$ 1 uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da Avenida Tiradentes, no Centro. Fiz a pergunta de sempre.
E ela respondeu:
- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura? — provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico (nome fictício), 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro.
- Sabe ler?, perguntei.
- Não... — disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:
- Sim. Sei, sim.
- Em que ano você está?
- Na 4.ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.
Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela Avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.
Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura.
Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...
- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.
Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria (nome... já se sabe). Carregava a pequena Vitória (precisa repetir?), 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.
*editor da revista Nova Escola e mestrando em Educação, Rodrigo Ratier fez a leitura rodar
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rodrigo.ratier@abril.com.br
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