A casa paterna
O Benfica é o bairro. Dom Jerônimo, a rua. A residência atende pelo número 1054. Pois foi justamente lá onde nasci, no dia 16 de maio do benvindo Ano da Graça de 1949, vindo à luz no vetusto Solar dos Monte, no quarto da frente, na mesma cama em que fui feito.
Meu pai me conta que era de madrugada, chovia às escâncaras, trovões ensurdeciam os céus alencarinos, relâmpagos incendiavam o ar e no firmamento não havia sequer uma tímida e humilde estrela a me abençoar a vinda, feito o Menino Jesus estampado nas gravuras douradas dos livros antigos.
Muito embora o veloz autor dos meus dias saísse num pé e voltasse noutro com a tão esperada parteira, nem mais preciso foi. Eu já tinha adentrado os portais deste mundo por minha própria conta e risco e quase que morro estrangulado pelo traiçoeiro cordão umbilical a me apertar os gorgomilhos.
Salvaram-me os vastos conhecimentos de minha tia Stela Machado, acostumada a aparar menino. Por isso mesmo, por ser o primogênito, me deram o nome de Antônio — que era pra evitar que eu morresse afogado um dia. Sou o bendito fruto do primeiro amor ou do primeiro descuido, como costumava falar a senhora minha mãe com laivos de ironia.
Há na velha casa paterna a presença quase física das gerações antigas. Na sala de visitas, o retrato de vovó Valdenora parece-me até mais bonito do que o da Monalisa. O avô Moacir guarda e traz no rosto grave e magro a sisudez hierática dos patriarcas. No quintal, sinto saudades do pé de goiabeira onde eu brincava de Tarzan, o filho das selvas.
A casa paterna é do tempo em que no subúrbio ainda havia oitões, jardins, quintais e muitas plantas, um reinado do verde. Me sinto tão parte dela quanto os seus tijolos, seus alicerces, suas paredes. Por vezes, e não raras, chego mesmo a perder a noção de quem pertence a quem.
A janela do meu quarto de solteiro, a minha cúmplice de fugas antigas, silenciosas, nas madrugadas furtivas por onde eu escapava para as primeiras noites de esbórnia. A casa paterna é a moradia pessoal e intransferível de todos os ícones de minha mitologia existencial.
Não sei como é nem descrever o que sinto toda vez que lá estou. Só sei que ainda sou feliz por poder dizer, quando me perguntam onde vou aos sábados de manhã, que vou pra casa. Só isso, como quem regressa à Terra Prometida ou à Terra do Nunca, onde continuo sendo um eterno Peter Pan.
*Airton Monte é psiquiatra, escritor e colunista
31 julho 2009
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