Fina flor da moralidade pública quer redefinir terras indígenas, quilombolas e ambientais*
Fina flor da moralidade pública quer redefinir terras indígenas, quilombolas e ambientais*
O canário está ferido. Suas plumas estão tintas de sangue. Ele foi atingido nesta quarta-feira, 21 de março, pelos disparos feitos por trinta e oito deputados que aprovaram, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, um relatório destinado a mudar a atual Constituição Federal do Brasil.
A mudança proposta redefine as terras indígenas, quilombolas e ambientais, num retrocesso histórico que, se for confirmado por três quintos dos parlamentares, condena o canarinho à morte.
A imagem do canário é do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ele conta que nas minas de carvão do Reino Unido, os mineiros tinham o costume, até 1986, de levar com eles, para dentro dos socavões, um canário em uma gaiola.
O bichinho, muito mais sensível que os humanos aos gases tóxicos acumulados dentro dos túneis, começa a agonizar quando o ar fica envenenado. Sua morte é um sinal para os mineiros, um “aviso” de que devem evacuar as galerias. “Canary in the coal mine” — canário na mina de carvão — virou expressão que indica perigo iminente.
A mudança proposta redefine as terras indígenas, quilombolas e ambientais, num retrocesso histórico que, se for confirmado por três quintos dos parlamentares, condena o canarinho à morte.
A imagem do canário é do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ele conta que nas minas de carvão do Reino Unido, os mineiros tinham o costume, até 1986, de levar com eles, para dentro dos socavões, um canário em uma gaiola.
O bichinho, muito mais sensível que os humanos aos gases tóxicos acumulados dentro dos túneis, começa a agonizar quando o ar fica envenenado. Sua morte é um sinal para os mineiros, um “aviso” de que devem evacuar as galerias. “Canary in the coal mine” — canário na mina de carvão — virou expressão que indica perigo iminente.
Dessa forma, os mineiros usavam o canário como um “indicador ecológico” toda vez que iam cavar os “ossos da terra” — é assim que os Yanomami chamam os metais extraídos das jazidas.
Viveiros de Castro considera que os índios, bem à sua revelia, são os nossos canários sociológicos ou socioambientais. A agonia dos índios é um “aviso”, anunciando que a sociedade envolvente está podre, na iminência de falir, do ponto de vista ecológico e sociopolítico.
E acontece que, no Brasil, se essa emenda passar, o ar vai ficar irrespirável. Só que, ao contrário dos mineiros, nós não temos para onde nos picar. O nosso destino está amarrado ao das sociedades indígenas.
E acontece que, no Brasil, se essa emenda passar, o ar vai ficar irrespirável. Só que, ao contrário dos mineiros, nós não temos para onde nos picar. O nosso destino está amarrado ao das sociedades indígenas.
Nova Era
Aqui, durante cinco séculos, os índios tiveram suas terras pilhadas, saqueadas, usurpadas, sempre através da violência armada. Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte deu um basta nisso, quando aprovou a Constituição, selando um pacto novo com mais de 200 povos.
O Brasil falou, então, aos índios, que não era mais possível recuperar os 87% das terras que eles haviam perdido, mas daqui em diante o Estado garantia a demarcação dos 13% restantes que ainda ocupam. A partir de agora, ninguém mais pode roubar terra de índio.
O Brasil falou, então, aos índios, que não era mais possível recuperar os 87% das terras que eles haviam perdido, mas daqui em diante o Estado garantia a demarcação dos 13% restantes que ainda ocupam. A partir de agora, ninguém mais pode roubar terra de índio.
Esse foi o pacto assumido pela “carta cidadã” de 1988, que acatou o pressuposto da antecedência histórica, reconhecendo aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, posto que eles estavam aqui antes do que qualquer fazendeiro.
O quadro jurídico novo reconhece ainda organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como a relação integrativa com a terra, que é tão essencial para os índios como o ar para qualquer ser vivo.
Com esse espírito, a Constituição criou mecanismos de ações afirmativas para compensar os crimes históricos cometidos contra os índios, permitindo que o país inaugurasse uma “nova era constitucional”, para usar a expressão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, em seu relatório sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O Brasil chamou, como testemunhas desse novo pacto, o mundo inteiro, quando assinou, em 2002, a Convenção 169 da OIT-Organização Internacional do Trabalho, que estabelece, no plano internacional, a proteção das instituições, das pessoas, dos bens e do trabalho dos índios.
Depois, no dia 13 de setembro de 2007, numa Assembleia Geral da ONU-Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Brasil aprovou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e se comprometeu, na frente de todos os países do mundo, que iria respeitar esses direitos.
Depois, no dia 13 de setembro de 2007, numa Assembleia Geral da ONU-Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Brasil aprovou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e se comprometeu, na frente de todos os países do mundo, que iria respeitar esses direitos.
Agora, 38 deputados pretendem rasgar a Constituição e descumprir os acordos nacionais e internacionais do Brasil. Eles ressuscitaram a Proposta de Emenda Constitucional — a PEC 215/2000 — de autoria do deputado Almir Sá, do PPB (atual PP — vixe, vixe) de Roraima.
Esta PEC estabelece que quem decide se uma terra é indígena não é a forma tradicional de ocupação, mas o Congresso Nacional, que pode até mesmo rever as demarcações já feitas. As raposas votam que são elas que devem tomar conta do galinheiro.
Esta PEC estabelece que quem decide se uma terra é indígena não é a forma tradicional de ocupação, mas o Congresso Nacional, que pode até mesmo rever as demarcações já feitas. As raposas votam que são elas que devem tomar conta do galinheiro.
O relatório aprovado do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR - vixe, vixe) retirou essa última parte sobre as terras já demarcadas, mas conservou o restante, que representa um golpe contra índios e quilombolas. Manteve várias outras propostas incorporadas à PEC 215, como a do deputado Carlos Souza (PSD-AM, vixe, vixe), que determina que as Assembleias Legislativas devem ser consultadas sobre demarcações — o que é competência da União — “a fim de se evitarem os significativos prejuízos que a demarcação de terras indígenas impõe às unidades federadas”. Ele não explica que prejuízos são esses e, afinal, quem são os prejudicados.
Agonia do canário
A sessão da CCJ, tumultuada, durou mais de quatro horas. Os índios, é claro, se fizeram presentes e protestaram, entre eles, Jaci Makuxi, comandante da luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tiveram o apoio do deputado Alessandro Molon (PT-RJ), para quem a PEC é um “gravísimo retrocesso, gritantemente inconstitucional, que atende à sanha do ruralistas por novas terras”.
O relatório foi aprovado com o voto de 38 deputados da CCJ. Entre eles, a fina flor da moralidade pública, da retidão e da honestidade, com uma larga folha de serviços prestados a si próprios: Paulo Maluf, Esperidião Amin, Alberto Lupion, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha e — que vergonha! — Roberto Freire, além dos cultivadores de cacau do Sul da Bahia, Félix Mendonça e Paulo Magalhães, inimigos declarados dos Pataxó e Tupinambá.
Agora, com o relatório aprovado, uma Comissão especial criada exclusivamente para isto vai elaborar a emenda que deve ser apresentada ao plenário. Resta saber se a parte sadia do Brasil vai assistir acocorada, de braços cruzados, à morte do canário, e vai morrer junto com ele, ou se vai se levantar contra essa vergonhosa legislação em causa própria.
O ministro Ayres Britto, que assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal, representa um fiapo de esperança. Quando ele foi relator no caso Raposa Serra do Sol, desmontou o alegado antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento e defendeu “a efetivação de um novo tipo de igualdade, qual seja, a igualdade civil-moral de minorias que têm experimentado historicamente e por preconceito desvantagem corporativa com outros segmentos sociais”.
Contra essa igualdade civil-moral é que votaram os 38 deputados, que parecem retomar o espírito das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, cuja sessão magna, no dia 4 de maio de 1900, foi aberta com um discurso do engenheiro Paulo de Frontin, empossado depois como prefeito do Rio de Janeiro.
Ele disse, com todas as letras, que o Brasil nada tinha de indígena: “Os selvícolas (…), não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
O cara, que presidia as solenidades, estava propondo eliminar os índios, como se estivesse dando um presente de aniversário ao País. Afinal, qual é o lugar dos índios na construção do Brasil?
Se for aquele planejado por Paulo de Frontin e pelos ruralistas, então quem está ameaçada é toda a sociedade brasileira, nós, nossos filhos e nossos netos, e já podemos ouvir os gritos soando nas galerias:
O relatório foi aprovado com o voto de 38 deputados da CCJ. Entre eles, a fina flor da moralidade pública, da retidão e da honestidade, com uma larga folha de serviços prestados a si próprios: Paulo Maluf, Esperidião Amin, Alberto Lupion, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha e — que vergonha! — Roberto Freire, além dos cultivadores de cacau do Sul da Bahia, Félix Mendonça e Paulo Magalhães, inimigos declarados dos Pataxó e Tupinambá.
Agora, com o relatório aprovado, uma Comissão especial criada exclusivamente para isto vai elaborar a emenda que deve ser apresentada ao plenário. Resta saber se a parte sadia do Brasil vai assistir acocorada, de braços cruzados, à morte do canário, e vai morrer junto com ele, ou se vai se levantar contra essa vergonhosa legislação em causa própria.
O ministro Ayres Britto, que assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal, representa um fiapo de esperança. Quando ele foi relator no caso Raposa Serra do Sol, desmontou o alegado antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento e defendeu “a efetivação de um novo tipo de igualdade, qual seja, a igualdade civil-moral de minorias que têm experimentado historicamente e por preconceito desvantagem corporativa com outros segmentos sociais”.
Contra essa igualdade civil-moral é que votaram os 38 deputados, que parecem retomar o espírito das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, cuja sessão magna, no dia 4 de maio de 1900, foi aberta com um discurso do engenheiro Paulo de Frontin, empossado depois como prefeito do Rio de Janeiro.
Ele disse, com todas as letras, que o Brasil nada tinha de indígena: “Os selvícolas (…), não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
O cara, que presidia as solenidades, estava propondo eliminar os índios, como se estivesse dando um presente de aniversário ao País. Afinal, qual é o lugar dos índios na construção do Brasil?
Se for aquele planejado por Paulo de Frontin e pelos ruralistas, então quem está ameaçada é toda a sociedade brasileira, nós, nossos filhos e nossos netos, e já podemos ouvir os gritos soando nas galerias:
— Canary in the coal mine!...
*o professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa
de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no
Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
Imagem em http://altmentalities.wordpress.com
de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no
Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
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