10 novembro 2012

DESPEDIDA

Mudanças*



Mais uma semana começa sem alarde, discreta, iniciando seu ciclo igual a todas as semanas de sempre. E minha vida também parecer recomeçar com ela, pois assim caminha, descaminha a humanidade em qualquer lugar desse mundo velho sem porteiras nem fronteiras. Certamente, se o inesperado não mostrar a sua cara, todos os dias decorrerão tão rotineiramente semelhantes feito irmãos gêmeos e o tédio será, sem dúvida, minha companhia mais frequente. Nada poderei fazer para mudar tal estado de coisas. 

Só me restará seguir, acompanhar obediente o marchar do resto do rebanho a batalhar, sem descanso, pela sobrevivência. Raros homens estão libertos desse cotidiano, esmagador destino. Dessas obrigações, desses compromissos dos quais é impossível escapar, fugir, desde que Adão e Eva foram expulsos injustamente do terrenal paraíso por um locador de maus bofes. E eu, que sonhava tanto, quando moço, em ser um sujeito completamente livre, preocupado apenas comigo mesmo e ninguém mais. Entretanto, a juventude nos dá esse direito de sermos tolos e ingênuos, preparando a alma para suportar, mais tarde, o terrível peso da realidade.

Claro que a vida, embora seus pesares, indubitavelmente vale a pena de ser vivida. Não profiro aqui nenhuma novidade. Tampouco besta não sou de pensar o contrário, porque se assim o fosse, de há muito já teria dado cabo da minha por desespero e desencanto totais. Por maiores e mais graves que sejam os problemas que nos afligem, nos atormentam, roubam descaradamente o nosso sono, existe sempre um jeito de resolvê-los, de encontrar uma solução, uma saída de uma maneira ou de outra, por bem ou por mal, quer nos custe mais ou menos. 

Ou então, na pior das hipóteses, de conseguir atenuá-los do melhor modo possível que esteja ao nosso alcance. Nada é definitivo. Tudo é circunstancial, deletério, provisório, assim acredito. Para quem já esteve perto da morte e viu, de vislumbre, a sua assustadora carantonha como eu, a vida passa a possuir um valor de imensidão desmesurada. Aprendi, com tal aterradora experiência, a procurar viver intensamente um dia de cada vez, preso a cada momento, a cada instante do tempo presente, do aqui e agora, despido de preocupações quanto ao futuro, pois sei que ele chegará impreterivelmente, pontual como um cobrador, ao meu encontro. Enquanto o amanhã não acontece, somente o hoje me importa, interessa, faz parte do meu show, seja ele alegre ou triste, me mostre uma cara simpática ou me exiba um sardônico sorriso.

Há gente que escolhe viver à moda peru de Natal, morrendo de véspera, cingido pelo abraço doentio da ansiedade. Já fui assim nas antigas quebradas do meu existir. Se as coisas não ocorriam como eu as havia planejado, costumava armar uma tosca tragédia de circo mamulengo. Mergulhava de cabeça numa cava depressão e a vida perdia, então, todo e qualquer sentido. Em verdade, comportava-me qual um adolescente mimado quando meus desejos e quereres eram contrariados, sem dar-me conta que me tornava um chato insuportável para todos aqueles que comigo conviviam dentro e fora de casa. Faltava-me senso de humor suficientemente capaz de me fazer rir das minhas próprias desgraças e desditas. E sem senso de humor, até uma prosaica topada num paralelepípedo assume ares de uma tremenda catástrofe. 

Pronunciava a palavra "azar" por qualquer dá-cá-aquela-palha, sem perceber que a má-sorte sempre atende a quem a chama, a invoca com imbecil assiduidade. Custei a aprender a viver, mas fui forçado a adquirir esse demasiado necessário aprendizado, que diferencia os homens dos meninos na hora da onça beber água. Disse, uma vez, o poeta Torquato Neto: “Levem um homem e um boi ao matadouro. O que berrar primeiro é o homem, mesmo que seja o boi”. A velhice e o sofrimento podem não nos tornar mais sábios, mas nos ensinam a compreender que as coisas são como são. Algumas podem ser por nós mudadas e outras, não. As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.

Hoje, a minha tolerância ficou mais elástica, inclusive para com a burrice alheia. Claro que não desenvolvi a infinita paciência de um monge trapista, porém deixei de correr continuamente o risco de morrer de raiva, de um ataque de apoplexia, enfurecido por qualquer besteira. Findei por descobrir a verdade mais simples de que não posso controlar tudo aquilo que acontece ao meu redor, a falar menos e escutar mais, tornar-me mais flexível em minhas opiniões, mantendo, entretanto, a rigidez dos meus princípios éticos. Até chego a levar, como não fazia dantes, desaforo pra casa, desde que não me sinta profundamente ofendido nem desrespeitado, porque aí o negócio muda de figura e minha reação é do tamanho ou maior que a ação. 

Meu sangue continua quente, contudo aprendi como esfriá-lo nos momentos em que se faz preciso tentar resolver os conflitos usando a calma de um pacifista. Manter a tranquilidade tornou-se uma arte que busco exercitar todos os dias e vi que minha vida melhorou bastante em qualidade. Sei que inda falta muito o que aprender na dura escola do existir, porém procuro ir me transformando em um aluno bem comportado — mas não tanto que termine por virar covarde e saia correndo, rabo entre as pernas, diante dos insultos e ameaças alheias.

*O médico-psiquiatra Antônio Airton Machado Monte, poeta do cotidiano que publicara textos 
no Jornal da Praia já nos anos 1980, deixou-nos em 10/09 passado. Deus o guarde, cronista





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