Amar e punir*
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou e mandou para o Senado a Lei da Palmada, ou Lei Menino Bernardo (em homenagem a Bernardo, assassinado recentemente, aos 11 anos, no RS). A lei fará que pais e educadores não possam recorrer a castigos corporais, mesmo moderados, ainda que sejam na intenção de educar as crianças.
Há argumentos contra: a vontade de não deixar o Estado invadir o espaço privado da família e o receio de que educar se torne mais impossível do que já é.
Eu sou mais a favor da lei do que contra ela, porque a violência é contagiosa: reprimir a violência de pais e educadores talvez quebre o círculo vicioso pelo qual tendemos a reproduzir a violência da qual fomos vítimas.
Mesmo assim, cuidado: o que enlouquece as crianças não são as palmadas, mas as oscilações repentinas do humor dos adultos.
Harold Searles, numa obra (1959) que continua sendo uma referência, descreveu O Esforço para Tornar o Outro Louco. Ele revelou, por exemplo, as consequências enlouquecedoras de um comportamento dos pais feito de alternâncias rápidas e contínuas entre amor visceral e fúria punitiva.
Essa alternância não é obra de malucos. Ao contrário, ela é trivial, sobretudo quando os adultos amam muito seus rebentos (ou seus educandos) e, portanto, querem dar tudo (e mais um pouco) para eles: tempo, atenção, esperanças, bens materiais etc.
Repetidamente, o adulto que ama demais explode, porque não aguenta o sacrifício de sua própria vida, que as crianças não lhe pedem, mas que ele se impõe como se as crianças lhe pedissem. Cada explosão, por sua vez, produz culpa e uma nova onda de extrema paixão amorosa. E a coisa recomeça.
Essa alternância de beijos molhados e punições terrificantes mina a confiança da criança no mundo e é muito mais enlouquecedora do que, por exemplo, uma severidade constante, mesmo que ela se expresse em castigos físicos.
De novo, uma criança não enlouquece porque seus pais utilizam a palmatória; mas algumas crianças enlouquecem porque os pais passam de apertões e declarações de amor a gritos raivosos e tentativas de estrangulamento.
Conclusão: talvez a maior violência contra as crianças não seja a palmada, mas o amor excessivo dos adultos.
Falando em "maior violência contra as crianças", durante a discussão na Câmara, no dia 21, o deputado pastor Eurico disse que a Xuxa cometeu "a maior violência contra as crianças", referindo-se ao fato de que, em 1982, num filme vagamente erótico, Xuxa (então com 18) contracenou com um garoto de 12 anos (cá entre nós: o verdadeiro problema com o filme em questão é que ele não é exatamente uma obra-prima).
Enfim, para o pastor Eurico, a maior violência contra as crianças consiste em deixar um menino de 12 anos acariciar um seio.
Por coincidência, no dia seguinte à patacoada do pastor Eurico, o Ministério Público de São Paulo ratificou um Termo de Ajustamento de Conduta com a Igreja Universal do Reino de Deus para impedir que crianças e adolescentes sejam expostos publicamente, durante cultos ou eventos.
A promotora de Justiça responsável pelo TAC, Fabiola Moran Faloppa, entendeu que são humilhantes ou degradantes as situações em que, no púlpito ou na TV, o ministro religioso revela informações íntimas sobre as crianças (suas doenças, seus abusos sofridos etc.).
Concordo com a promotora. E acrescento um comentário.
Há várias razões para expor as crianças à religião. Entre elas, a ideia de que a autoridade divina possa ajudar pais e educadores —a ameaça do inferno substituindo castigos e palmadas. Pode ser.
Mas é também possível que, para as crianças, a religião seja mais perigosa do que a palmada ou o vago erotismo de um filme.
O Deus da Bíblia é muito parecido com a mãe ou o pai que enlouquecem seus filhos: ele nos ama a ponto de nos criar e nos entregar as chaves do mundo, mas pode se transformar num castigador absurdamente intransigente (palmadas eternidade adentro).
Em outras palavras, Deus passa do amor à punição com a mesma ferocidade de uma mãe ou de um pai ciclotímicos. Será que os ganhos sociais do ensino precoce da religião compensam seus efeitos enlouquecedores?
Seja como for, se quisermos punir menos as crianças, deveríamos começar por amá-las menos, adotando um novo provérbio: quem ama demais castiga demais.
*O psicanalista italiano radicado no Brasil Contardo Calligaris é Doutor em Psicologia Clínica e colunista da Folha de S. Paulo.
Imagem em www.ricardobanana.com
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