O feminismo não
é um humanismo*
Durante uma de suas “conversações infinitas”, Hans-Ulrich Obrist me pede para fazer uma pergunta urgente, que artistas e movimentos políticos deveriam responder em conjunto. Eu digo: “Como viver com os animais? Como viver com os mortos?”.
Outra pessoa pergunta: “E o humanismo? E o feminismo?” Senhoras, senhores e outros, de uma vez por todas, o feminismo não é um humanismo. O feminismo é um animalismo. Dito de outro modo, o animalismo é um feminismo dilatado e não antropocêntrico.
Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial, mas sim o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e reprodutora, e os animais. As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas.
Assim, o humanismo inventou um outro corpo que chamou humano: um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos desejos são os efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade, igualdade, fraternidade.
O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime de escravidão, e depois o regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos “homens modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o reverso da igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da fraternidade.
O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial repousam, portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de máquinas (re-)produtivas.
Se o animal foi um dia concebido e tratado como máquina, a máquina se torna pouco a pouco um tecnoanimal vivo entre os animais tecnovivos. A máquina e o animal (migrantes, corpos farmacopornográficos, filhos da ovelha Dolly, cérebros eletrodigitais) se constituem como novos sujeitos políticos do animalismo por vir. A máquina e o animal são nossos homônimos quânticos.
Já que toda a modernidade humanista soube apenas fazer proliferar tecnologias da morte, o animalismo deverá convidar a uma nova maneira de viver com os mortos. Com o planeta como cadáver e como fantasma. Transformar a necropolítica em necroestética. O animalismo torna-se portanto uma festa fúnebre. Uma celebração do luto. O animalismo é rito funerário, nascimento. Uma reunião solene de plantas e de flores em torno das vítimas da história do humanismo.
O animalismo é uma separação e um acolhimento. O indigenismo queer, a pansexualidade planetária que transcende as espécies e os sexos, e o tecnoxamanismo, sistema de comunicação interespécies, são dispositivos de luto.
O animalismo não é um naturalismo. É um sistema ritual total. Uma contratecnologia de produção da consciência. A conversão para uma forma de vida, sem qualquer soberania. Sem qualquer hierarquia. O animalismo institui seu próprio direito. Sua própria economia.
O animalismo não é um moralismo contratual. Ele recusa a estética do capitalismo e sua captura do desejo pelo consumo (de bens, ideias, informações, corpos). Ele não repousa nem sobre a troca nem sobre o interesse individual.
O animalismo não é a revanche de um clã contra outro clã. O animalismo não é um heterosexualismo, nem um homossexualismo, nem um transssexualismo. O animalismo não é nem moderno nem pós-moderno.
Posso afirmar, sem brincadeira alguma, que o animalismo não é um hollandismo. Não é um sarkozysmo ou bleumarinismo [N.T.: Referências a François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen].
O animalismo não é um patriotismo. Nem um matrionismo. O animalismo não é um nacionalismo. Nem um europeísmo. O animalismo não é nem um capitalismo, nem um comunismo. A economia do animalismo é um benefício total, do tipo não agonístico. Uma cooperação fotossintética. Um gozo molecular.
O animalismo é o vento que sopra. É o caminho através do qual o espírito da floresta de átomos ainda alcança os seres que voam. Os humanos, encarnações mascaradas da floresta, deverão se desmascarar do humano e se mascarar novamente do saber das abelhas.
A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido.
O que era o mais impossível e inimaginável, a escravidão ou o fim da escravidão? O tempo de animalismo é o do impossível e o do inimaginável. Este é o nosso tempo: o único que nos resta.
*Beatriz Preciado (Burgos/Espanha, 1970) é filósofa, autora de numerosos
ensaios e dos livros Manifiesto Contrasexual (Barcelona: Opera Prima, 2002) e,
mais recentemente, de Testo Yonqui: sexo, drogas y biopolítica (Madrid,
Espasa-Calpe, 2008). Atualmente, ensina Teoria de Gênero na Universidade
de Paris VIII, na École des Beaux Arts de Bourges (França) e no Programa de
Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona.
ensaios e dos livros Manifiesto Contrasexual (Barcelona: Opera Prima, 2002) e,
mais recentemente, de Testo Yonqui: sexo, drogas y biopolítica (Madrid,
Espasa-Calpe, 2008). Atualmente, ensina Teoria de Gênero na Universidade
de Paris VIII, na École des Beaux Arts de Bourges (França) e no Programa de
Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona.
(Traduzido do francês por Charles Feitosa. Revisão Técnica: Alessandro
Sales e Paulo Oneto. Publicado originalmente em www.opovo.com.br)
Sales e Paulo Oneto. Publicado originalmente em www.opovo.com.br)
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