10 novembro 2014

PEQUENAS DIFERENÇAS


O mal-estar e o
ódio à democracia*




Em tempos de discursos tão inflamados e carregados de ódio, de manifestações propondo o impeachment da Presidente e a intervenção militar, de xingamentos à chefe da nação (lembram-se das cerimônias de abertura e encerramento da Copa? À época, fiquei imaginando se algum alemão xingaria sua primeira-ministra daquela forma, ou um inglês sua rainha), entre tantas outras cenas penso ser difícil não tentarmos buscar explicações para a origem e o significado desses "afetos". 

Muitos entrelaçamentos são possíveis: da nossa história colonial à recente democratização, passando pelo ódio à democracia. Como a castração impera, traço aqui um olhar a partir do volume “Mal-estar da civilização” de Freud, entrelaçando-o a um outro, igualmente fabuloso, “Ódio à democracia”, do filósofo Rancière.

Aprendemos com o velho Sigmund que por sermos seres de linguagem toda completude é impossível e que a ordem civilizatória aponta para um sacrifício pulsional de cada um de nós, para que a civilização possa desenvolver-se. Como as tendências destrutivas e antissociais demarcam a condição humana, o sofrimento (o mal-estar) é inevitável.

A ideia de que o País ficou "dividido" após as eleições e que precisa ser "unificado" é de uma ingenuidade tocante. Primeiro, porque as diferenças sempre existiram: seja dos ricos do sul e sudeste e dos pobres do norte e nordeste. Dos brancos e dos negros, dos homens e das mulheres. Dos cristãos e dos judeus. Dos espanhóis em relação aos portugueses, dos italianos do norte e os do sul. Dos torcedores do Ceará e os do Fortaleza. 

Segundo, porque a ideia de unificação é a mesma do nazismo. As diferenças, sejam elas quais forem, são necessárias e demarcam uma das razões de ser da democracia.

Os discursos de ódio aos nordestinos explicitados nas redes sociais apontam, na verdade, para um ódio à democracia, que se apresenta como ódio ao povo e seus costumes, à sociedade que busca igualdade, ao respeito às diferenças, ao direito das minorias. 

Sabemos que a individualidade é uma coisa boa para as elites, mas torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso, não é mesmo? Não consigo ver nas recentes manifestações ocorridas na capital paulista a defesa de interesses da civilização, e sim a defesa de interesses muito particulares.

A teoria da civilização de Freud considera a vida em sociedade como um compromisso imposto. As próprias instituições que funcionam para proteger a sobrevivência da humanidade também geram seu mal-estar. A agressividade é uma fonte de prazer a que os seres humanos relutam em renunciar após a terem experimentado. "Não se sentem bem sem ela", dizia ele. 

A agressividade serve como complemento ao amor: os laços libidinais que unem os membros de um grupo no afeto e na cooperação serão fortalecidos, se o grupo tiver pessoas de fora a quem possa odiar.

É o narcisismo das pequenas diferenças. Os homens parecem encontrar um gosto especial em odiar e perseguir, ou pelo menos ridicularizar, seus vizinhos mais próximos.


*Sabrina Matos é psicóloga, psicanalista e
professora da UNIFOR-Universidade de Fortaleza.



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