"Se essa rua fosse nossa"*
Se essa rua fosse nossa seria muito diferente. Longe de saudosismos, tenho saudades de um tempo em que as ruas eram nossas. Quero uma rua que seja nossa, mas não quero uma rua de condomínio fechado, enclausurada.
Quero uma rua livre, menos segregada, que permita a passagem e a convivência com todos. A rua pode e deve ser simples, com casinhas e grama entre as pedras que revestem seu calçamento.
A posse da rua advém das relações que estabelecemos com ela. Ruas com calçadas, com pessoas conversando, crianças brincando. A rua não pode e não deve ser pensada só para atender à necessidade de passagem de veículos. Rua sugere caminho, direção, paradas.
Também sugere endereço, nosso lugar no mundo, nosso espaço de referência que permite a fricção do individual e do coletivo, do público e do privado. A porta da casa é passagem, é entrada, é saída. As janelas favorecem olhar o mundo a partir da proteção oferecida pela casa.
Quero nossa rua de volta. Quero ter o direito e o prazer de encontrar vizinhos, conversar, atualizar minhas discussões, me intrometer nos disse me disse cotidianos, saber das festas, dos acontecimentos. Não quero só a rua, quero a vizinhança. Quero sentir a proximidade das pessoas, saber de seus afetos e dissabores.
Quero a praça como espaço vivido regulado pelas necessidades de seus usuários. Não quero a praça fria do shopping. Ela não me diz nada. É igual a todas as praças de shopping do mundo. Restaurantes de fast food, uma quantidade enorme de mesas e cadeiras, onde pessoas apressadas devoram sanduíches e se empanturram de batatas fritas e refrigerantes.
Quero uma pracinha simples com bancos dispostos simetricamente, árvores e marcas de vida coletiva construídas ao longo do tempo. Trechos pisados demarcando caminhos, parquinhos gastos revelando seu tempo e a passagem de infâncias pretéritas.
Quero uma parte da cidade que pode voltar. Não quero muito. Quero apenas ter o direito de exigir minha condição de parte integrante da cidade, ter prazer em fruí-la, desfrutá-la. Também quero reparti-la. Não a quero só para mim.
Uma cidade aberta, livre e segura é possível. Temos que retomar ruas e praças. Temos que ter a capacidade de nos apoderarmos de espaços e territorializá-los a partir de nossos desejos de conviver de forma harmônica, conforme os preceitos das regras sociais. Não quero muito. Aceito a cidade com seus conflitos, com suas contradições. Tenho plena consciência de seus limites, mas tenho, entretanto, consciência que chegamos ao limite.
Morar em condomínios fortificados, viver pelas ruas circulando em carros idênticos a tanques de guerra e fingir que nada está acontecendo, é pura alienação. Basta o “salve-se quem puder”. O coletivo existe. Nossas necessidades são as mesmas. Saiamos do imobilismo diante das telas da tevê e do computador.
Que venham pessoas povoar as ruas, ocupar as calçadas reanimando uma vida latente que aguarda as condições mais favoráveis para um acontecer social menos excludente.
*José Borzacchiello da Silva é geógrafo e professor da UFC-Universidade Federal do Ceará
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