23 junho 2006

PALAVRAS QUE LUZEM

A origem da poesia


Falar da origem da poesia é o mesmo que falar da origem do homem: visto que sem poesia não poderia haver o homem. Claro que essa afirmação vai contra tudo o que estamos acostumados a ouvir e entender por poesia e por origem, e só poderia ser minimamente aceita se questionarmos antes duas posturas que estão no cerne da nossa maneira de pensar: 1) a compreensão evolutiva do espaço, do tempo e da história, e 2) a noção, tão insistentemente fundamentada pela funcionalidade do sistema de produção e consumo, de que a arte é uma forma de entretenimento, um meio de expressão, uma válvula de escape, enfim, uma fantasia sem importância feita para embelezar o mundo.

Essa visão da instrumentalidade da poesia, da linguagem e da história nos faz entrever o mundo como uma série de processos separados, onde arte nada tem a ver com a realidade, distante da História, da Física, da Biologia, da Economia e da Política. Na verdade, todas as coisas do homem surgem a partir de um mesmo princípio, que é o agir do homem enquanto agir-se. Na Grécia antiga, havia um termo para isso: poiesis, o princípio pelo qual se dava a criação.

Acontece que a instrumentalidade da linguagem acarreta uma instrumentalidade do homem, e este perde o que existe de essencial no fazer, que é o criar, tornando-se, assim, mero repetidor em função do sistema. E dentre todas as coisas que o homem age, a poesia é a mais importante. Pois a poesia não é uma coisa entre outras coisas. A poesia não é um mero jogo que utiliza a linguagem como matéria-prima a ser trabalhada; muito pelo contrário, é a poesia que tornou e torna a linguagem possível, sempre.

A poesia é a linguagem primogênita de um povo, disse Heidegger. A poesia é o primeiro e o mais fundamental testemunho do homem, atestação de sua presença e de seu pertencimento à Terra. É assim que ele se manifesta enquanto linguagem e, então, enquanto homem. Basta lembrar que os primeiros físicos do Ocidente eram, sobretudo, poetas. Na verdade, nem havia diferença entre ser poeta, físico, filósofo ou matemático, pois em todas essas coisas havia a dimensão do sagrado: homens espantados diante da complexidade da physis que se erguia com seus grandes milagres e tempestades. O mesmo espanto que, milhares de anos depois, acompanha o cientista de hoje diante da imprevisibilidade das partículas e da grandiosidade do cosmos.

“O sol é do tamanho de um pé humano”, disse Heráclito, numa afirmação que, antes de ser científica é poética e antes de ser poética é sagrada. Não é uma afirmação ingênua, como poderiam pensar alguns. Heráclito sabia da distância do sol, mas sabia também que o sol era sim, como ainda hoje é, a medida do homem. Esse sol adquiria uma dimensão poeticamente moldável como o horizonte de Manuel de Barros, onde se enfiam pregos, ou a florflamejante de Sousândrade. É a dimensão onde as coisas são e deixam de ser.

A nós, homens modernos, depois do cogito cartesiano, depois da metafísica kantiana, depois que o homem expulsou os deuses de seu convívio e se tornou seu próprio deus através da ciência em detrimento da poesia, isso tudo parece distante e absurdo. Não entendemos que o conhecimento científico é uma interpretação do mundo tão “fantástica” e falha quanto qualquer outra. A ciência explica que a Lua é um satélite. Mas esta não é a Lua, é uma das facetas da Lua. A Lua é isso e muito mais. A Lua é a Lua de Lin Sao, que pende madura na ponta de um galho, é a Lua de São Jorge, é Selene, é a Lua dos mitos, todas diferentes e a mesma.

Os próprios cientistas hoje se dão conta do absurdo que é a realidade. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Física, afirmou ser a realidade somente uma das realizações do possível. Assim, o absurdo da poesia não é nada mais que o absurdo do real. A poesia e a arte não surgiram num momento específico, mas surgem a cada instante — e com elas o homem, pois nisso consiste a cultura, a constante atualização do homem como homem. Pois o homem só pode ser sendo, homem, num constante processo de realização poética.

Nos percebemos humanos e mortais a cada ato, e é disso que vem a poesia. Por isso, ao contrário da visão linear do senso comum, a arte não é um jogo subjetivo de gênios excêntricos. Sua essência sagrada está na física moderna e clássica, está nas habitações, na matemática, em todos nós. A poesia é a linguagem primordial de todo espanto e está na essência de tudo que produzimos, enquanto ato criador não-alienado. A poesia é o que permite o real, ainda que hoje o real a oculte, entulhado na rotina dos sistemas.


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O poeta Márcio-André é também contista e músico, autor dos livros Movimento perpétuo e Chialteras e membro do grupo Arranjos para Assobio, que explora texturas poéticas e realidades experimentais
(http://arranjos.confrariadovento.com). Traduz a poesia de Arnold Flemming, Serge Pey, Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck e edita as revistas literárias Confraria e Improvável (www.improvavel.com)

Acesse www.marcioandre.com e http://marcioandre.confrariadovento.com

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