18 janeiro 2016

APRENDIZADOS CENTRAIS


Floradas para pensar janeiros*

 

Uma vez, convivendo com os Tapeba, tronco indígena cearense, ouvi deles a história da Meninazinha, que seria um Espírito a habitar a mata dali, na região de Caucaia.

Quando a Meninazinha aparecia a quem ia buscar caça, a pessoa "se ariava" na mata, como diz o povo – quer dizer, se alheava ou perdia-se do caminho.

"E quando é que a pessoa encontrava a Meninazinha?", eu perguntei ao velho índio. "Quando tirava da mata mais do que precisava para viver, sem cuidado e sem replantar", ele disse.
 

Há neste conto uma ideia de cuidado que vale para todo ato cotidiano; há uma ideia de que, quando tiramos da natureza e da vida se deve pensar em replantar, devolvendo ao mundo algo de nós mesmos, e, também, há uma crítica à ambição de buscar constantemente levar para si mais do que se precisa.

Atualmente, ceder ao fascínio do consumo em excesso e do materialismo redutor é, não raro, afastarmo-nos daquilo que, em essência, somos. E, como já colocava Pasolini, o cineasta, o consumo causa uma espécie de mutação na alma humana, sendo, mesmo, um substitutivo do amor.

As pessoas dizem comumente que, quando estão se sentindo vazias ou sozinhas, vão ver “as promoções” e dar uma ida aos shoppings.

Há certa beleza nas vitrines, sem dúvida, e poder-se-ia fazer isso vez em quando, mas isto revela um traço dessa compulsão para o "ter" que tem tomado a vida coletiva. 

Os antigos sertanejos diziam que, quando a gente lavra a terra, tirando mato, plantando, cuidando e colhendo, a gente sente melhor o movimento da vida. "É que, quando ficamos atentos ao ritmo das tarefas essenciais da vida, não precisamos dar comida de mentirinha à nossa alma", completavam.


O ano bom, que vem com as marés de janeiro, nos traz renovadamente essa pergunta pelos aprendizados centrais de nossa existência. E a educação dos coletivos de que fazemos parte – família, grupos de trabalho e religiosos, movimentos sociais, entre outros – são ambientes grupais que nos fazem perguntar o que estamos perdendo de vista e que seria essencial retomar, para novas criações.


Na verdade, para novas aprendizagens do amor, nos contextos concretos de nossa vida com os outros.
 

Hoje se põe em cena a ideia de ancestralidade como um movimento de busca às antigas gerações ou ao quê que do passado deve durar, sendo base para o novo hoje. É nesse sentido que falar de janeiro e ano bom, entre secas e floradas doces, é refletir um pouco sobre o tempo.

Kardec, em um estudo intitulado “Vida Futura”, em Obras Póstumas, nos traz ideias complexas sobre o assunto, que de leve apenas vamos tocar. Primeiro, ele mesmo pergunta: se a crença na imortalidade é um aspecto importante da vida moral e ética das criaturas, por que os que a pregaram foram tão maus?

Ele refuta: quem diria se não seriam piores sem isso? E passa a observar – e este é um dos objetivos do espiritismo – que as ideias sobre vida futura, além de vagas, sendo muito imperfeitas, dificultavam a compreensão do mundo espiritual e seu movimento de vida.

E é então que Kardec mostra que a construção do saber ou da fé raciocinada sobre o mundo espiritual leva-nos a compreender o laço entre presente, passado e futuro.
 

Quando tirarmos o mundo espiritual e a vida que lá perdura das “nuvens da abstração”, compreenderemos melhor “a reação do futuro sobre o presente” (veja que aqui não há erro de redação, ele diz “a reação do futuro sobre o presente”, o que quer apontar a influência da ideia de futuro como chave para pensar o presente).

Segundo o codificador da doutrina espírita, nessa perspectiva o futuro passa a ser pensado como uma necessidade, como algo que já começa agora, “inexorável como a véspera, o dia de hoje e o dia seguinte”. “Uma etapa da vida presente e da vida em geral” – completa Kardec, referindo-se à vida futura.
 

Observa Kardec que, por termos ideias muito vagas da vida no mundo espiritual e da vida futura, é que temos dito sobre isso apenas: “Será o que for”, nos fechando para a busca de novas dimensões de compreensão, necessárias para situarmos nosso ser ante as questões da felicidade e do sofrimento.

Atualmente, percebe-se que a sensação de um presente maciço, onde falta a elaboração de um projeto de futuro, tem desesperançado especialmente as juventudes, com a agravante de estarmos no seio de uma permanente ideia de crise na vida social.
 

Caminhar para ir ultrapassando esse vazio de projetos e compreensões do porvir, que implica adentrar em saberes sobre a transcendência, a vida futura, como diz com precisão Kardec, seria fundamental para atuar ante as transformações das coletividades, tarefas das gerações também.

Assim, a verdadeira solidariedade e fraternidade não seriam mais deveres circunstanciais, mas formas do ser-estar no Universo, repleto de mundos habitados, onde um Deus cósmico nos ama infinitamente, mas nos concede a liberdade para construir nossa evolução.

 *Ângela Linhares é cantora, compositora e dramaturga.
É também assessora pedagógica da Associação de
Corais Infantis "Um Canto Em Cada Canto". Participa
como dramaturga da Companhia Vidança e como
docente do Mestrado em Saúde Pública da Faculdade
de Medicina da UFC. É membro da Articulação Nacional
de Educação Popular em Saúde, do conselho consultivo
do Instituto Terramar e da Federação Espírita do Ceará.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br.