20 janeiro 2016

NOSTAALGESIAS


O Dicionário das Tristezas Obscuras*


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1. Adronitis 


Frustrar-se com a quantidade de tempo necessário para se conhecer bem alguém.


2. Aimonimia
  

O medo de que aprender o nome de algo – um pássaro, uma constelação, uma pessoa bonita – vai estragar tudo, transformando uma descoberta do acaso em uma casca conceitual vazia.
3. Ambedo

Um tipo de transe melancólico no qual você se torna completamente absorto(a) por pequenos detalhes sensoriais – pingos de chuva escorrendo pela janela, árvores altas dobrando-se lentamente com o vento, espirais de creme se formando no café – o que, por fim, leva a uma avassaladora constatação da fragilidade da vida.



4. Anchorage
O desejo de segurar o tempo enquanto ele passa, como tentar se segurar em uma pedra no meio de um rio com muita correnteza.

5. Anecdoche

Uma conversa em que todo mundo está falando mas ninguém está ouvindo.

6. Anemoia

Nostalgia de um tempo no qual você nunca viveu.

7. Anthrodynia

Um estado de exaustão ao perceber o quão horríveis as pessoas podem ser umas com as outras.

8. Chrysalism

A tranquilidade confortável de se estar dentro de casa durante uma tempestade.

9. Ecstatic Shock

A onda de energia que surge ao olhar de relance para alguém de quem você gosta.

10. Ellipsism

Uma tristeza por não ser capaz de saber como a história vai terminar.

11. Énouement

A sensação agridoce de ter chegado no futuro, ter visto como tudo aconteceu, mas não ser capaz de contar isso para o seu ‘eu’ do passado.

12. Exulansis

A tendência de desistir de tentar falar sobre uma determinada experiência, porque as pessoas são incapazes de se relacionar com ela.

13. Gnossienne

O momento em que você percebe que alguém que você conhece há anos tem uma vida interna, privada e misteriosa.

14. Jouska

Uma conversa hipotética que você repete compulsivamente na sua cabeça. 

15. Kairosclerosis

O momento em que você percebe que está feliz -- e tenta conscientemente aproveitar essa sensação -- o que obriga seu intelecto a identificar e colocar essa sensação em um contexto, onde aquela felicidade lentamente se dissolve até se tornar pouco mais do que um retrogosto.  

por Ben Giles


























16. Kenopsia

A atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar que normalmente está cheio de gente, mas que agora está abandonado e quieto.

17. Lachesism

O desejo imaginário de ser atingido por um desastre – sobreviver a uma queda de avião, ou perder tudo em um incêndio.

18. Lalalalia

Dar-se conta, enquanto fala sozinho(a), de que outra pessoa pode estar escutando, o que o(a) leva a rapidamente transformar as palavras em algum cantarolar sem sentido.

19. Lapyear

A idade em que você se torna mais velho(a) do que seus pais eram quando você nasceu.

20. Lethobenthos

O hábito de esquecer o quão importante uma pessoa é para você, até o momento em que você a encontra pessoalmente.

21. Liberosis

O desejo de se importar menos com as coisas.

22. Mimeomia

Frustração ao perceber o quão facilmente você se encaixa em um estereótipo.

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23. Monachopsis
O sentimento sutil mas persistente de estar fora de lugar.

24. Moriturism

Perceber, como um solavanco durante um momento de insônia, que você vai morrer.

25. Nementia

O esforço que vem logo após um momento de distração, para lembrar porque é mesmo que você está se sentindo irritado(a), ou ansioso(a), ou animado(a).

26. Nodus Tollens

Dar-se conta de que o roteiro da sua vida já não faz o menor sentido.

27. Occhiolism

Dar-se conta da pequenez da sua perspectiva. Com a qual você não tem como chegar a qualquer conclusão significativa sobre o mundo, o passado, ou as complexidades da cultura.

28. Onism

A frustração de estar preso em apenas um corpo, que habita apenas um lugar por vez.

29. Opia

A intensidade ambígua de olhar alguém nos olhos, e sentir-se simultaneamente invasivo e vulnerável.

30. Reverse Shibboleth

A prática de atender o telefone com um “alô?” genérico, como se você já não soubesse quem está ligando.

31. Rückkehrunruhe

O sentimento de voltar para casa depois de uma viagem imersiva, e perceber que toda a experiência tida já está desaparecendo rapidamente da sua consciência.

32. Sonder

Dar-se conta de que cada pessoa tem uma vida tão vívida e complexa quanto a sua – populada por ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucura.

33. Scabulous

Sentir orgulho de uma cicatriz. Como um autógrafo dado a você pelo mundo.

34. The Bends

A frustração de perceber que você não está aproveitando uma experiência tanto quanto deveria.

35. Trumspringa

A tentação de sair da sua meta de carreira e se tornar pastor(a) de ovelhas nas montanhas.

36. Vemödalen

Frustração ao fotografar algo incrível quando milhares de outras fotos idênticas já existem.

37. Vemödalen

Medo de que tudo já tenha sido feito.

38. Waldosia

Olhar para todos os rostos em uma multidão, procurando uma pessoa específica que não teria motivo algum para estar ali.

39. Zenosyne

A sensação de que o tempo está passando cada vez mais rápido.


*Criado por John Koenig, O Dicionário das Tristezas Obscuras é 
uma coleção de palavras inventadas que servem para oficializar 
emoções que as pessoas sentem mas não conseguem explicar. 
Aqui você viu algumas delas. Para ver todas e também os vídeos 
que Koenig fez com elas, visite o site do projeto. Colagens: Ben Giles


(Nota do Editor): 


John Koenig is a fictional character
from 
the television series Space: 1999
He was played by Martin Landau. 
He is American, apparently in 
his early forties. (Da Wikipedia)




18 janeiro 2016

APRENDIZADOS CENTRAIS


Floradas para pensar janeiros*

 

Uma vez, convivendo com os Tapeba, tronco indígena cearense, ouvi deles a história da Meninazinha, que seria um Espírito a habitar a mata dali, na região de Caucaia.

Quando a Meninazinha aparecia a quem ia buscar caça, a pessoa "se ariava" na mata, como diz o povo – quer dizer, se alheava ou perdia-se do caminho.

"E quando é que a pessoa encontrava a Meninazinha?", eu perguntei ao velho índio. "Quando tirava da mata mais do que precisava para viver, sem cuidado e sem replantar", ele disse.
 

Há neste conto uma ideia de cuidado que vale para todo ato cotidiano; há uma ideia de que, quando tiramos da natureza e da vida se deve pensar em replantar, devolvendo ao mundo algo de nós mesmos, e, também, há uma crítica à ambição de buscar constantemente levar para si mais do que se precisa.

Atualmente, ceder ao fascínio do consumo em excesso e do materialismo redutor é, não raro, afastarmo-nos daquilo que, em essência, somos. E, como já colocava Pasolini, o cineasta, o consumo causa uma espécie de mutação na alma humana, sendo, mesmo, um substitutivo do amor.

As pessoas dizem comumente que, quando estão se sentindo vazias ou sozinhas, vão ver “as promoções” e dar uma ida aos shoppings.

Há certa beleza nas vitrines, sem dúvida, e poder-se-ia fazer isso vez em quando, mas isto revela um traço dessa compulsão para o "ter" que tem tomado a vida coletiva. 

Os antigos sertanejos diziam que, quando a gente lavra a terra, tirando mato, plantando, cuidando e colhendo, a gente sente melhor o movimento da vida. "É que, quando ficamos atentos ao ritmo das tarefas essenciais da vida, não precisamos dar comida de mentirinha à nossa alma", completavam.


O ano bom, que vem com as marés de janeiro, nos traz renovadamente essa pergunta pelos aprendizados centrais de nossa existência. E a educação dos coletivos de que fazemos parte – família, grupos de trabalho e religiosos, movimentos sociais, entre outros – são ambientes grupais que nos fazem perguntar o que estamos perdendo de vista e que seria essencial retomar, para novas criações.


Na verdade, para novas aprendizagens do amor, nos contextos concretos de nossa vida com os outros.
 

Hoje se põe em cena a ideia de ancestralidade como um movimento de busca às antigas gerações ou ao quê que do passado deve durar, sendo base para o novo hoje. É nesse sentido que falar de janeiro e ano bom, entre secas e floradas doces, é refletir um pouco sobre o tempo.

Kardec, em um estudo intitulado “Vida Futura”, em Obras Póstumas, nos traz ideias complexas sobre o assunto, que de leve apenas vamos tocar. Primeiro, ele mesmo pergunta: se a crença na imortalidade é um aspecto importante da vida moral e ética das criaturas, por que os que a pregaram foram tão maus?

Ele refuta: quem diria se não seriam piores sem isso? E passa a observar – e este é um dos objetivos do espiritismo – que as ideias sobre vida futura, além de vagas, sendo muito imperfeitas, dificultavam a compreensão do mundo espiritual e seu movimento de vida.

E é então que Kardec mostra que a construção do saber ou da fé raciocinada sobre o mundo espiritual leva-nos a compreender o laço entre presente, passado e futuro.
 

Quando tirarmos o mundo espiritual e a vida que lá perdura das “nuvens da abstração”, compreenderemos melhor “a reação do futuro sobre o presente” (veja que aqui não há erro de redação, ele diz “a reação do futuro sobre o presente”, o que quer apontar a influência da ideia de futuro como chave para pensar o presente).

Segundo o codificador da doutrina espírita, nessa perspectiva o futuro passa a ser pensado como uma necessidade, como algo que já começa agora, “inexorável como a véspera, o dia de hoje e o dia seguinte”. “Uma etapa da vida presente e da vida em geral” – completa Kardec, referindo-se à vida futura.
 

Observa Kardec que, por termos ideias muito vagas da vida no mundo espiritual e da vida futura, é que temos dito sobre isso apenas: “Será o que for”, nos fechando para a busca de novas dimensões de compreensão, necessárias para situarmos nosso ser ante as questões da felicidade e do sofrimento.

Atualmente, percebe-se que a sensação de um presente maciço, onde falta a elaboração de um projeto de futuro, tem desesperançado especialmente as juventudes, com a agravante de estarmos no seio de uma permanente ideia de crise na vida social.
 

Caminhar para ir ultrapassando esse vazio de projetos e compreensões do porvir, que implica adentrar em saberes sobre a transcendência, a vida futura, como diz com precisão Kardec, seria fundamental para atuar ante as transformações das coletividades, tarefas das gerações também.

Assim, a verdadeira solidariedade e fraternidade não seriam mais deveres circunstanciais, mas formas do ser-estar no Universo, repleto de mundos habitados, onde um Deus cósmico nos ama infinitamente, mas nos concede a liberdade para construir nossa evolução.

 *Ângela Linhares é cantora, compositora e dramaturga.
É também assessora pedagógica da Associação de
Corais Infantis "Um Canto Em Cada Canto". Participa
como dramaturga da Companhia Vidança e como
docente do Mestrado em Saúde Pública da Faculdade
de Medicina da UFC. É membro da Articulação Nacional
de Educação Popular em Saúde, do conselho consultivo
do Instituto Terramar e da Federação Espírita do Ceará.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br.
 

15 janeiro 2016

SÉTIMO CONTINENTE


Era do Lixo*



Concentração de plástico e materiais descartados é vista flutuando no Oceano Pacífico
Plástico e materiais descartados podem ser vistos até do espaço flutuando no Oceano Pacífico

O ano de 2016 começou cheio de ideias. Algumas, bem curiosas. Cientistas voltados para o espaço estudam o plantio de batatas em Marte, por suas propriedades nutricionais para a sobrevivência humana quando chegarmos ao planeta vermelho.

Cientistas voltados para a Terra concluem que é chegada a hora de assumirmos uma nova época geológica. Sugerem o termo Antropoceno para identificar a era de pleno domínio dos seres humanos e que se tornou inquestionável a partir dos anos 1950.

O período é apropriado para entendermos o papel do homem e a grandiosidade dos seus atos. Os nascidos nos anos que se seguiram à catástrofe da Segunda Guerra Mundial, a maior de todos os tempos (até agora), ficaram conhecidos como "Geração Baby-Boomer".

Não só porque houve uma explosão populacional no pós-guerra, mas também porque essa foi a guerra da bomba atômica, a guerra dos estrondos que redefiniram os destinos do mundo.

Em algum momento, tenhamos ou não nos mudado para saborear batatas em Marte, as camadas geológicas do planeta Terra exibirão vestígios do Antropoceno, a era de nossa passagem por aqui: concreto, plástico, carbono, metano etc.

Além da imaginação

Enquanto isso, um criativo arquiteto belga concebeu uma cidade submarina a ser totalmente construída com o lixo que os humanos atiram ao mar. Seria uma forma maravilhosa de reciclagem para a atualidade e, por ser tão maravilhosa, ele naturalmente visualizou a Baía da Guanabara como cenário perfeito para sua obra futurista.


A beleza do Rio de Janeiro é tão forte no imaginário das pessoas, sejam elas daqui ou de qualquer outro lugar, que todos querem salvá-la. Mesmo que seja apenas no plano das ideias.

É certo que o Rio está sob os holofotes globais por causa da proximidade da Olimpíada deste ano (que muitos insistem em mencionar no plural, talvez porque ela vá valer por muitas Olimpíadas). Mas também é certo que o lixo marítimo não é exclusividade da cidade.

Ele predomina soberano em toda a costa brasileira e em oceanos afora. No Pacífico, por exemplo, há ilhas de lixo que já podem ser vistas do espaço.

Segundo os cientistas franceses que desde maio de 2012 investigam o Sétimo Continente (a quantidade de plástico no Oceano Pacífico que já assumiu a dimensão de um continente), "estima-se que 300 milhões de toneladas de plástico são produzidas anualmente em todo o mundo. Cerca de 10% desse montante acabam nos oceanos".

Para quem quiser saber mais, vale a pena uma visita ao site do Sétimo Continente: (www.septiemecontinent.com). 

Utopia
Este texto acabou saindo carregado de ironia, mas não de todo desesperançado. No domingo, 10 de janeiro, os organizadores da prova de Redação da segunda fase da Fuvest propuseram o tema "Utopia" para os candidatos.


O tema enseja a reflexão sobre a sociedade perfeita, aquela que se sonha construir e usufruir, mas também remete à questão de sua viabilidade. Nós, seres humanos, somos capazes de criar uma sociedade ideal? Escrever sobre a utopia é um desafio, tamanha a riqueza de ideias que possam surgir sobre a busca de um ambiente mais favorável e digno à vida humana.

É possível investir no desenvolvimento e manter a floresta em pé? É possível trocar o combustível fóssil pela energia que vem do sol e dos ventos? É possível ter água limpa e condições básicas de higiene para uma população que vive à beira de praias impróprias para o banho e córregos fétidos contaminados por esgotos?

É possível ter filhos saudáveis que, no futuro, não sejam chamados de "Geração Zika-Boomer"? É possível reinventar o planeta?

Precisamos, com urgência, repensar o que estamos fazendo por aqui. Durante um bom tempo as batatas de Marte não serão acessíveis à maioria dos humanos.

Uma cópia perfeita do Rio de Janeiro em solo vermelho soa improvável. Talvez, então, a saída seja fazermos da Era do Homem uma era de ideias boas e viáveis.

Não essa Era do Lixo que agora vivemos.

* Lucila Cano  é colunista especializada em temas relacionados
ao 3º Setor.
Graduada em Comunicação Social pela FAAP (SP), é 
consultora editorial e assina a coluna Responsabilidade
Social e Ética 
em alguns periódicos, dando seguimento ao
trabalho
do jornalista e escritor Engel Paschoal. 
Conteúdo publicado em http://educacao.uol.com.br





EVIDÊNCIAS E MITOS


Saber tradicional contra 
a mudança climática*


Adolfo é um exemplo dos benefícios da agroecologia camponesa em El Salvador.
(Foto: Jason Taylor/Amigos da Terra Internacional)

Milhões de agricultores africanos não precisam se adaptar à mudança climática, já que o fizeram graças à agroecologia, baseada em práticas e saberes tradicionais, que também permitem garantir a segurança alimentar.Como muitas comunidades na África, as das Terras Altas de Gamo, na Etiópia, estão bem preparadas para as variações climáticas.

A grande biodiversidade da área, a base de seu sistema agrícola, permite adaptar suas práticas agrícolas com facilidade às variações do clima.Essa comunidade também está acostumada a administrar o ambiente e os recursos naturais de forma adequada e sustentável, arraigada em seus costumes e conhecimentos tradicionais, o que as torna resilientes a inundações e secas.

Os sistemas agrícolas ancestrais costumam ser considerados muito arcaicos pelos governos centrais, mas têm muito a ensinar ao mundo, especialmente diante dos desafios apresentados pela mudança climática e a insegurança alimentar.A partir dos conhecimentos indígenas, agricultores de todo o continente conseguiram acumular muita experiência e inovação de sucesso em matéria agrícola.

Esses esforços se desenvolveram de forma consistente nas últimas décadas, após as secas que atingiram muitos países nos anos 1970 e 1980.No Quênia, o sistema de agricultura biointensiva foi desenhado nos últimos 30 anos para ajudar os pequenos agricultores a cultivarem maior quantidade de alimentos nas terras mais pobres e com um mínimo de água.

Cerca de 200 mil agricultores quenianos, que alimentam aproximadamente um milhão de pessoas, adotaram a agricultura biointensiva, que utiliza até 90% menos água do que com a alternativa convencional, alémde reduzir entre 50% e 100% a compra de fertilizantes, graças a um conjunto de práticas agroecológicas que fornecem mais material orgânico ao solo, a quase continuidade da cobertura de terras cultivadas e uma fertilidade adequada para a boa saúde das plantas e raízes.

A região do Sahel, na fronteira do deserto do Saara, é conhecida por suas duras condições ambientais e pela ameaça da desertificação. O que não se sabe muito é a respeito do enorme êxito das ações adotadas para deter o avanço das terras áridas.Lançado nos anos 1980, o Projeto de Desenvolvimento Rural Keita, em Níger, demorou 20 anos para recuperar o equilíbrio ecológico e melhorar drasticamente a economia agrária na região.

Nesse período, foram plantadas cerca de 18 milhões de árvores, a superfície florestal aumentou 300%, enquanto a estepe com arbustos e dunas diminuíram 30%. Além disso, as terras cultiváveis se expandiram em cerca de 80%.Em toda a região, um grande número de projetos utilizou soluções agroecológicas para restabelecer as terras degradadas e poupar os escassos recursos hídricos, ao mesmo tempo aumentando a produção de alimentos e melhorando a resiliência e o sustento dos agricultores.


Frederic Mousseau coordena as pesquisas a partir do
Instituto Oakland, sediado na Califórnia, EUA.
(Foto: Cortesia do autor)

Em Tombuctu, norte de Mali, o Sistema de Intensificação do Arroz conseguiu resultados surpreendentes com produção de nove toneladas desse cereal por hectare, mais que o dobro do que permitem os métodos convencionais, ao mesmo tempo em que foi possível economizar água e outros insumos.Em Burkina Faso, as técnicas de conservação de água e do solo, incluída uma versão modernizada da tradicional forma de plantar com poços, teve muito êxito na recuperação das terras degradadas e melhoria da produção de alimentos e da renda.

Os países da África austral lidam com contínuas secas, que geram grandes perdas nos cultivos de milho, o principal cereal da região. Há vários anos, agricultores e governos criaram uma variedade de soluções agroecológicas para evitar as crises alimentares e impulsionar a resiliência frente aos impactos climáticos.O enfoque comum foi abandonar o cultivo exclusivo de milho, que é altamente vulnerável às variações climáticas, além de muito custoso e de exigir a compra de insumos, como sementes híbridas e fertilizantes.

As soluções sustentáveis e acessíveis de sucesso incluem gestão e coleta de água da chuva, ampliação da agricultura de conservação e regenerativa, promoção da produção e do consumo de mandioca e outros tubérculos, diversificação da produção e integração de cultivos com árvores fertilizantes e plantas leguminosas que fixam o nitrogênio.

Os exemplos anteriores procedem de uma série de 33 estudos de caso, divulgados pelo Instituto Oakland, que ilustram o enorme sucesso da agricultura agroecológica em todo o continente africano diante da mudança climática, da fome e da pobreza. Um dos aspectos que todos apresentam em comum é que os agricultores, entre os quais há muitas mulheres, estão à frente de seus próprios projetos de desenvolvimento.

Outro elemento comum é que não se baseiam em insumos agrícolas externos, como as sementes comerciais, os fertilizantes sintéticos e os pesticidas químicos, a base da agricultura chamada convencional.Os principais insumos para a agroecologia são a própria energia das pessoas e o senso comum, conhecimentos compartilhados e, naturalmente, o respeito pelos recursos naturais e seu uso adequado.

A pergunta sobre a razão de esses casos de sucesso não serem conhecidos é pertinente; ficam enterrados sob a retórica do discurso favorável a um desenvolvimento baseado em um coquetel destrutivo de ignorância, cobiça e neocolonialismo.

Desde a crise dos preços dos alimentos em 2008, ouviu-se uma e outra vez o argumento de que a África necessitava do investimento estrangeiro na agricultura para “desenvolver” o continente, de uma revolução verde, de mais fertilizantes sintéticos e de cultivos transgênicos para combater a fome e a pobreza. 

Pois bem, os estudos de caso da agroecologia jogam por terra esses mitos.

A evidência, fatos e dados irrefutáveis, estão ali: milhões de africanos já desenharam suas próprias soluções para seu próprio beneficio e conseguiram se adaptar tanto aos sistemas agrícolas insustentáveis herdados da época colonial com aos atuais desafios que a mudança climática e a degradação ambiental apresentam.

Outra boa notícia é que a transição para a agroecologia é acessível para os governos africanos, que já gastam milhares de milhões de dólares por ano em subsídios para fertilizantes e pesticidas. No Malawi, os subsídios à agricultura chegam a cerca de 10% do orçamento nacional anual.

A evidência existente, baseada na experiência de milhões de agricultores, deveria impulsionar os governos africanos a optarem pela única alternativa razoável: que o continente seja o protagonista na superação da fome e na exploração corporativa e avanço para uma forma sustentável e adaptada ao clima para a produção de alimentos para todos. 


*Frederic Mousseau é diretor de políticas 
do Instituto Oakland e coordenador da 
pesquisa do projeto de agroecologia.
Conteúdo publicado em www.envolverde.com.br