02 março 2012

VERGONHA DE MIM MESMO

Esse negócio de felicidade*


A vida já é tão precária e nós nem nos damos conta de que desperdiçamos boa parte dela com besteiras, que bem poderiam ser facilmente evitadas, se assim o desejássemos.
 
Entretanto, comumente deixamos de lado as coisas às quais deveríamos emprestar mais importância e perdemos tempo ocupados com vanidades perfeitamente dispensáveis, enquanto nem sequer percebemos que o tempo que nos foi dado para perambular por este mundo se esvai numa rapidez implacável, estonteante. 


Esquecemo-nos de que a vida é pra valer, a vida é pra levar e que só se vive uma vez, pois não passamos de viajantes perdidos em um transitório transitar por esse mundo. Mais dia, menos dia a vida finda, de repente, quando menos esperamos, pondo por terra o tolo sentimento de que a festa "dura para sempre", inconscientes de sua terrível brevidade. 


Ah, por vezes chego a me espantar ao perceber como somos bobos, como nossa onipotência e arrogância nos levam a olvidar nossa humana finitude. Que pobres animais ingênuos somos nós, que tentamos inutilmente ignorar nossas fraquezas, nossas fragilidades! Carregamos dentro de nós uma bomba-relógio, prestes a explodir a qualquer momento, hoje ou amanhã.


E ao invés de aproveitarmos ao máximo as pequenas e grandes maravilhas que a vida nos oferece, de graça, de bandeja, vivemos ocupados em nos tornarmos vencedores, a acumular o maior número possível de bens materiais, de conquistar poder, de nos alçarmos, não importa os meios e os fins utilizados, acima de nossos semelhantes, escudados numa suposta superioridade que, no fim das contas, se revela imensamente enganosa.
Traçamos um roteiro capaz de nos conduzir ao topo da pirâmide social e passamos a segui-lo cegamente, seja lá como for, contanto que consigamos nosso intento. 
Olhamos de cima de nosso orgulho vão aqueles que consideramos perdedores, como se fossem nossos inferiores, uns seres incapazes, por preguiça ou por incúria, de subir na escala social, que só servem para atravancar nosso caminho de belos, impávidos, colossos conquistadores. 
A eles, quando o remorso atiça nossa falsa generosidade, atiramos com um certo desprezo indisfarçável as sobras dos nossos banquetes.
Quem sabe eu não esteja falando isso, externando tais opiniões, que podem parecer ressaibos de um oculto ressentimento, por não ter me tornado sócio do seleto, glorioso clube dos que venceram na vida e essas palavras que ora escrevo reflitam uma desmedida inveja daqueles que chegaram lá. 
Talvez, no fundo, eu desejasse fazer parte do grupo de privilegiados, ser um deles, me ombrear com eles de igual para igual, ter uma vida tão interessante, plena de brilho como a deles. Contudo, nego peremptoriamente ser um sujeito recalcado, amargurado, repleto de rancores por não haver conseguido sair do rés do chão, sem subir os degraus do que se convencionou chamar sucesso. 
Porém, quem me conhece sabe que não sou assim, feito um poço sem fundo de amarguras. Nem me acho um derrotado pelo fato de, na minha idade, nada possuir de valioso, em matéria de haveres, a deixar aos meus herdeiros, que lhes proporcione um futuro tranquilo e confortável.
Claro que, ocasionalmente, vejo-me sujeito a encarar-me como um retumbante fracasso, em todos os sentidos. A única coisa de valor que deixarei à minha mulher é um seguro de vida, cujas prestações faço questão de pagar religiosamente, para deixá-la amparada, remediada, depois que eu esticar as minhas magras canelas. 
Quer dizer, a esta altura do campeonato da existência, cheguei à óbvia conclusão de que valho mais morto do que vivo. Muitas vezes, sozinho na escuridão da noite, atacado pela habitual insônia, começo a pensar no que fiz durante o tempo em que existo. 
Certo, escrevi livros sem nenhuma importância, plantei árvores, semeei meus desdobramentos celulares, participei de movimentos políticos durante a ditadura, estudei feito um cavalo, fui aprovado em concursos, amei com as forças do coração, fiz amigos fiéis que me são verdadeiros irmãos. 
Só não consegui amealhar dinheiro que me garantisse uma velhice sem sobressaltos. Se sou feliz, juro que não sei nem quero saber. Aliás, porque esse negócio de felicidade é coisa muito relativa. Talvez seja poder olhar-me no espelho e não sentir vergonha de mim mesmo.



*O médico-psiquiatra Antônio Airton Machado Monte 
publica textos no Jornal da Praia desde os anos 1980.
Imagem em http://scienceofenergyhealing.com