29 janeiro 2010

DESGLÓRIAS VÍVIDAS

Antes que a chuva*



(I - Da Temporada 2010)
Férias, sol, suor e cerveja: alegria na cidade! Está aberta a nova temporada de caça ao turista.

O taxista engrena três meninas novas no pedaço, combinam porcentagens, discutem locais... o porteiro do hotel da Beira-Mar, do motel da Parangaba e da quitinete no Centro concordam com os índices. Os pais das meninas também.

Os restaurantes confeccionam novos cardápios, sempre com alguns números a mais.

Os meninos doiradinhos de sol descem o morro, canelas secas e ligeiras atrás do "gringo velho" que desapareceu no Novo México -- e, dizem, reapareceu em Iracema.

Os sujeitos das vans caçam vítimas: "Atenção, senhor! Três praias por 80 réis..."

Buggies assassinos esperam novas vítimas. Enquanto isso, cavalos, burros e jumentos cagam na onda branquinha.

O paredão de som ameaça com o "mais novo sucesso" da axé music e do forró eletrônico.

Três novos garçons foram contratados na barraca. Os olhos vermelhos miram câmeras e celulares.

No velho teatro, pseudo-humoristas desenferrujam velhas piadas, bufônicas, histriônicas e carregadas de preconceitos. Sacaneiam o carequinha, o gordito, o branquelo... arrancam o riso a fórceps.

Fecham o velho turismo nosso dos "três PPP": Praia, Prostituição Infantil e Piada de Mau Gosto.

"Está aberta, senhores, a nova temporada de caça aos turistas. Mas por favor, não os assustem, para que voltem! Vivos!"


(II - De paradidáticos)
E depois da famigerada corrida às compras de Natal e Ano Novo, os esfomeados comerciantes já afiam novamente suas garras, por trás dos mil livros escolares...

Além, os primos-pobres ensaiam sadismos, entre as árvores da Praça dos Leões.

— Olha aqui, freguês! Me mostra sua lista! Aqui a gramática novinha, já com o novo acordo ortográfico... Não tá riscada!... Custa 80 paus na livraria...

O "freguês" se esquiva do vendedor, do trombadinha e vai atrás do Papai Noel, que cortou a barba e é especialista em paradidáticos...

Quando se sente segura, telefona para o marido. "É melhor comprar no colégio, dividido em seis vezes..." Não chegam a um acordo e ela sai apressada, arrastando o menino e três sacolas cheias na direção do Passeio Público.


(III - De Pré-Carnavais)
Ano bom que se preze só se inicia depois do Carnaval, o meu apenas após a Semana Santa. E olhem lá!!!

E uma das desculpas preferidas do cearense é a de que "o Carnaval não, mas o Pré-Carnaval aqui é ótimo". Lenda urbana, igual à da Perna Cabeluda (que é de Recife), a Loira do Banheiro e a recente "Railux Preta".

(Aliás, somos pródigos em lendas urbanas, as mais variadas e nocivas possíveis: a de que o turismo beneficia a todos, a de que temos por aqui futebol, a de que a cidade é bela... e outras mil mais.)

Pois bem, se o Carnaval em três dias (?) já incomoda meio-mundo, imaginem os diversos pré-carnavais em cada canto desta nossa desvalida loirinha desvirginada pelo sol.

Do Periquito da Madame ao Vai dar o Carlito, do Cachorra Magra ao Rosca de Chifre do Zé Walter, do Num Ispaia senão Ienche, do Luxo da Aldeia ao finado Quem é de Bem Fica.

E tomem marchinhas mal-tocadas pelos ouvidos afora, e tomem fedor de mijo pelas calçadas semana adentro, e tomem cerveja quente pelo fígado alheio, e tomem "saidinhas" de blocos pelas ruas adjacentes...

E tomemos nós, insossos fortalezenses, barulhos sem-fim pelo mês de janeiro em diante...

E tomemos, nesse andor todos nós, no...



*Pedro Salgueiro constroi contos e crônicas e enreda palavras (de amor) à capital cearense como só ele sabe


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