12 dezembro 2014

PRECIOSO LÍQUIDO


WWF-Brasil lança publicação 

sobre gestão das águas 




O WWF-Brasil lançou ontem, em São Paulo, a publicação Governança dos Recursos Hídricos – Proposta de indicadores para acompanhar sua implementação, desenvolvida em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o HSBC. 

Sistematizado pelo cientista político Fernando Abrucio, o estudo analisou a administração das águas no País desde a aprovação da Política Nacional de Recursos Hídricos, em 1997 (Lei 9.443/97), e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), responsável por coordenar a gestão das águas, arbitrar conflitos e promover a cobrança pelo uso da água.


O diagnóstico mostrou que, passados mais de 17 anos, são necessárias mudanças para aperfeiçoar a governança. Nesse sentido, a publicação propõe a criação do “Observatório das águas” que, quando em funcionamento, contaria com uma ferramenta inédita para fiscalizar a capacidade dos governos de administrar os recursos hídricos do País: o "Índice de Boa Governança da Água”, nos moldes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

O indicador seria responsável por monitorar uma série de áreas do setor hídrico: a qualidade e efetividade das leis e da regulação; se os governos estão atuando de forma coordenada e se as metas, diretrizes e recomendações do SINGREH estão sendo cumpridas. 

O indicador seria responsável ainda por fiscalizar se os governos estão sendo capazes de articular a Política Nacional de Recursos Hídricos com as políticas estaduais e municipais relacionadas.

“Outro ponto importante do indicador é o monitoramento da participação da sociedade civil. Ele avaliaria se a sociedade está sendo incluída na agenda da água e nas discussões sobre o tema e também se essa participação está sendo efetiva”, explica a secretária-geral do WWF-Brasil, Maria Cecilia Wey de Brito.

TERMÔMETRO DA GOVERNANÇA
Para chegar à conclusão de que o setor hídrico no Brasil precisa ser aperfeiçoado, o estudo coordenado pelo WWF-Brasil analisou detalhadamente o SINGREH em diversas áreas e classificou cada uma delas conforme o estágio em que se encontram: “básico”, “intermediário” e “avançado”. Nenhuma das áreas alcançou o resultado “avançado” no “Termômetro da Governança”.

No estágio “intermediário” foi classificada a efetividade da legislação. O estudo considerou que a lei 9.443/97 apresenta avanços: define valor econômico para um recurso natural, garante a descentralização, participação da sociedade e possui instrumentos de gestão consistentes. Porém, não reconhece as especificidades dos biomas brasileiros e tampouco define o papel dos municípios no sistema hídrico do País. 

Verificou-se ainda que o SINGREH não é capaz de abraçar toda a agenda da água, especialmente no que se refere ao controle e gestão dos eventos críticos (secas e inundações).

A participação da sociedade na agenda da água obteve a pior classificação: estágio “básico”. O estudo considerou que a participação qualificada — ou seja, com conhecimento sólido sobre a política do setor — ainda é pouco expressiva. 


Faltam capacitação e conscientização dos cidadãos sobre a sua participação no sistema.


(Publicado por Nivia Omena em www.wwf.org.br)





24 novembro 2014

O QUE NOS RESTA


O feminismo não
é um humanismo*




Durante uma de suas “conversações infinitas”, Hans-Ulrich Obrist me pede para fazer uma pergunta urgente, que artistas e movimentos políticos deveriam responder em conjunto. Eu digo: “Como viver com os animais? Como viver com os mortos?”. 

Outra pessoa pergunta: “E o humanismo? E o feminismo?” Senhoras, senhores e outros, de uma vez por todas, o feminismo não é um humanismo. O feminismo é um animalismo. Dito de outro modo, o animalismo é um feminismo dilatado e não antropocêntrico.

Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial, mas sim o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e reprodutora, e os animais. As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas. 

Assim, o humanismo inventou um outro corpo que chamou humano: um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos desejos são os efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade, igualdade, fraternidade. 

O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime de escravidão, e depois o regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos “homens modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o reverso da igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da fraternidade.

O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial repousam, portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de máquinas (re-)produtivas. 

Se o animal foi um dia concebido e tratado como máquina, a máquina se torna pouco a pouco um tecnoanimal vivo entre os animais tecnovivos. A máquina e o animal (migrantes, corpos farmacopornográficos, filhos da ovelha Dolly, cérebros eletrodigitais) se constituem como novos sujeitos políticos do animalismo por vir. A máquina e o animal são nossos homônimos quânticos.

Já que toda a modernidade humanista soube apenas fazer proliferar tecnologias da morte, o animalismo deverá convidar a uma nova maneira de viver com os mortos. Com o planeta como cadáver e como fantasma. Transformar a necropolítica em necroestética. O animalismo torna-se portanto uma festa fúnebre. Uma celebração do luto. O animalismo é rito funerário, nascimento. Uma reunião solene de plantas e de flores em torno das vítimas da história do humanismo. 

O animalismo é uma separação e um acolhimento. O indigenismo queer, a pansexualidade planetária que transcende as espécies e os sexos, e o tecnoxamanismo, sistema de comunicação interespécies, são dispositivos de luto.

O animalismo não é um naturalismo. É um sistema ritual total. Uma contratecnologia de produção da consciência. A conversão para uma forma de vida, sem qualquer soberania. Sem qualquer hierarquia. O animalismo institui seu próprio direito. Sua própria economia. 

O animalismo não é um moralismo contratual. Ele recusa a estética do capitalismo e sua captura do desejo pelo consumo (de bens, ideias, informações, corpos). Ele não repousa nem sobre a troca nem sobre o interesse individual. 

O animalismo não é a revanche de um clã contra outro clã. O animalismo não é um heterosexualismo, nem um homossexualismo, nem um transssexualismo. O animalismo não é nem moderno nem pós-moderno. 

Posso afirmar, sem brincadeira alguma, que o animalismo não é um hollandismo. Não é um sarkozysmo ou bleumarinismo [N.T.: Referências a François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen]. 

O animalismo não é um patriotismo. Nem um matrionismo. O animalismo não é um nacionalismo. Nem um europeísmo. O animalismo não é nem um capitalismo, nem um comunismo. A economia do animalismo é um benefício total, do tipo não agonístico. Uma cooperação fotossintética. Um gozo molecular. 

O animalismo é o vento que sopra. É o caminho através do qual o espírito da floresta de átomos ainda alcança os seres que voam. Os humanos, encarnações mascaradas da floresta, deverão se desmascarar do humano e se mascarar novamente do saber das abelhas.

A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido. 

O que era o mais impossível e inimaginável, a escravidão ou o fim da escravidão? O tempo de animalismo é o do impossível e o do inimaginável. Este é o nosso tempo: o único que nos resta.



*Beatriz Preciado (Burgos/Espanha, 1970) é filósofa, autora de numerosos
ensaios e dos livros Manifiesto Contrasexual (Barcelona: Opera Prima, 2002) e,
mais recentemente, de Testo Yonqui: sexo, drogas y biopolítica (Madrid,
Espasa-Calpe, 2008). Atualmente, ensina Teoria de Gênero na Universidade
de Paris VIII, na École des Beaux Arts de Bourges (França) e no Programa de
Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona.

(Traduzido do francês por Charles Feitosa. Revisão Técnica: Alessandro
Sales e Paulo Oneto. Publicado originalmente em www.opovo.com.br)
Imagem: Painting-of-a-dog (Francis Bacon/1952) em www.poetanarquista.blogspot.com.br)


10 novembro 2014

PEQUENAS DIFERENÇAS


O mal-estar e o
ódio à democracia*




Em tempos de discursos tão inflamados e carregados de ódio, de manifestações propondo o impeachment da Presidente e a intervenção militar, de xingamentos à chefe da nação (lembram-se das cerimônias de abertura e encerramento da Copa? À época, fiquei imaginando se algum alemão xingaria sua primeira-ministra daquela forma, ou um inglês sua rainha), entre tantas outras cenas penso ser difícil não tentarmos buscar explicações para a origem e o significado desses "afetos". 

Muitos entrelaçamentos são possíveis: da nossa história colonial à recente democratização, passando pelo ódio à democracia. Como a castração impera, traço aqui um olhar a partir do volume “Mal-estar da civilização” de Freud, entrelaçando-o a um outro, igualmente fabuloso, “Ódio à democracia”, do filósofo Rancière.

Aprendemos com o velho Sigmund que por sermos seres de linguagem toda completude é impossível e que a ordem civilizatória aponta para um sacrifício pulsional de cada um de nós, para que a civilização possa desenvolver-se. Como as tendências destrutivas e antissociais demarcam a condição humana, o sofrimento (o mal-estar) é inevitável.

A ideia de que o País ficou "dividido" após as eleições e que precisa ser "unificado" é de uma ingenuidade tocante. Primeiro, porque as diferenças sempre existiram: seja dos ricos do sul e sudeste e dos pobres do norte e nordeste. Dos brancos e dos negros, dos homens e das mulheres. Dos cristãos e dos judeus. Dos espanhóis em relação aos portugueses, dos italianos do norte e os do sul. Dos torcedores do Ceará e os do Fortaleza. 

Segundo, porque a ideia de unificação é a mesma do nazismo. As diferenças, sejam elas quais forem, são necessárias e demarcam uma das razões de ser da democracia.

Os discursos de ódio aos nordestinos explicitados nas redes sociais apontam, na verdade, para um ódio à democracia, que se apresenta como ódio ao povo e seus costumes, à sociedade que busca igualdade, ao respeito às diferenças, ao direito das minorias. 

Sabemos que a individualidade é uma coisa boa para as elites, mas torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso, não é mesmo? Não consigo ver nas recentes manifestações ocorridas na capital paulista a defesa de interesses da civilização, e sim a defesa de interesses muito particulares.

A teoria da civilização de Freud considera a vida em sociedade como um compromisso imposto. As próprias instituições que funcionam para proteger a sobrevivência da humanidade também geram seu mal-estar. A agressividade é uma fonte de prazer a que os seres humanos relutam em renunciar após a terem experimentado. "Não se sentem bem sem ela", dizia ele. 

A agressividade serve como complemento ao amor: os laços libidinais que unem os membros de um grupo no afeto e na cooperação serão fortalecidos, se o grupo tiver pessoas de fora a quem possa odiar.

É o narcisismo das pequenas diferenças. Os homens parecem encontrar um gosto especial em odiar e perseguir, ou pelo menos ridicularizar, seus vizinhos mais próximos.


*Sabrina Matos é psicóloga, psicanalista e
professora da UNIFOR-Universidade de Fortaleza.



27 outubro 2014

FOODTRUCKS: PROBLEMA OU SOLUÇÃO?


Contracultura e feirinhas gastronômicas*



Em dia de eleição, você come democraticamente uma refeição republicana, na rua. Há muito os cozinheiros tentaram sair das cozinhas, agora que conseguiram, a cozinha os chama de volta. Não a cozinha de preparação, porque desta jamais devemos sair, mas a “cozinha” de forma metafórica ou figurada, o ambiente “quente”, “sujo” e “engordurado”. A mesma que era restrita às escravas no período colonial e onde se cumpria medidas punitivas até certo tempo atrás. E agora à sarjeta.

Proliferou-se pelo mundo a onde do Foodtruck. Não foi um movimento brasileiro e nem é algo novo. Foodtrucks são recorrentes e antigos em grandes metrópoles. Mas ela se renovou quando um empreendimento chamado “Le Camion Qui Fume”, um velho ônibus adaptado para vender cachorro quente, começou a circular e a fazer sucesso nas ruas de Paris vendendo sanduíches. Na mesma Paris, cujos restaurantes já foram acusados de ser a contra-cultura dos momentâneos rompantes socialistas; que desde 1750 foram símbolo de ostentação burguesa por parte de Grimod de La Reynière, distribuindo dois tipos de convites para seus jantares: um convite para quem podia comer e outro que só dava direito a olhar.

Nessa mesma Paris, de tantos contrastes e de tanta influência da alimentação em sua sociedade e economia, renasceu a comida de rua. Disseminou tanto e tão rápido que levas de cozinheiros e amadores têm corrido para realizar seu sonho empreendedor, montando sua casa de repasto na traseira de uma Kombi, achando que de lá serão solucionadas todas as questões que envolvem esse empreendimento e seus ideais.

No Brasil, mais especificamente em São Paulo, os locais das feirinhas já migraram da rua para estacionamentos privados. Os defensores do Foodtruck (comida sobre caminhão) não aceitam dividir espaço com barracas de “pobres”. A mesma segregação que leva cozinheiros experientes e tarimbados a trocarem restaurantes em imóveis para virarem ambulantes num caminhão de luxo, não aceitam o cozinheiro que vai numa carrocinha de hot-dog, assim como este também não aceita o cozinheiro que surge em tendinha de lona.

O país do individualismo incorporou como poucos a gastronomia como ferramenta de socialização e lazer, mas não o aceita como empreendimento econômico. Na mesma velocidade que cresce o campo da gastronomia, aumenta-se a oferta de empreendimentos, pipocam negócios de especialidade, que nascem com um destino da destruição de valor de determinados alimentos.

Destruímos os produtos de tanto consumo desenfreado, de deturpação do modo de preparo, destruímos os empreendimentos e seus empreendedores e incapacitamos os novos a atingirem o sucesso, porque no momento, o máximo que podemos ofertar para estudantes e profissionais de cozinha é montarem a sua barraquinha e viverem como ambulantes, esse é o ideal do momento e é o que o capital de pequenos empreendedores permite.

Os defensores do movimento Foodtruck sugerem que é um boicote aos aluguéis abusivos, é um incentivo aos pequenos empreendedores e uma forma de facilitar o acesso de mais pessoas à gastronomia. Concordo com todos os argumentos. Acho o Foodtruck uma boa ferramenta de marketing. Só não entendo porque para o campo da gastronomia foi reservado a possibilidade de se fazer “feirinhas” e evoluirmos para ambulantes e para outros segmentos da economia o estado organiza e facilita simpósios, convenções e congressos. Aos cozinheiros a “cozinha”. E à sociedade que se socializava envolta do conforto e da segurança de um restaurante, o estado te sugere a sarjeta.

*O chef Rodrigo Viriato é articulista do jornal O Povo.


02 outubro 2014

MPB POR EXCELÊNCIA


O inventor da
música brasileira*



Quando se fala que alguém inventou alguma coisa, não se está dizendo que foi sozinho. O pai de uma grande invenção é, portanto, aquela pessoa cuja inquietação, atitude e feito passou a contribuir destacada e significativamente para influir na vida das pessoas.

Foi assim com o alemão Gutemberg, inventor da imprensa; com os irmãos Lumière, franceses inventores do cinema; e com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864–1920), o inventor da música brasileira.

Embora maltratada pelo truste de mercado, que, na ausência de políticas públicas decentes para a cultura, deita e rola no País, a música brasileira é potencialmente um dos mais importantes recursos renováveis do Brasil.

E para chegar a ser reconhecida assim, um dos seus mais relevantes pontos de inflexão ocorreu na passagem do século XIX para o XX, momento em que mudávamos da monarquia para a república. Nesse cenário, a catálise se deu com base na figura irrequieta de Nepomuceno, que nasceu em Fortaleza no dia seis de julho há 150 anos.

Alberto Nepomuceno queria viver em um lugar que tivesse o seu jeito próprio de compor, tocar e cantar, mas que, simultaneamente, pudesse estar em linha com as tendências estéticas do mundo em seu tempo.

Os estilos valorizados pela Corte Imperial, a exemplo da ópera italiana e da música sacra, não abriam espaço de diálogo com a miscigenação étnico-cultural pulsante nos meios urbanos e rurais da então incipiente vida republicana.

Em sua tese de doutorado Canto da Língua: Alberto Nepomuceno e a Invenção da Canção Brasileira (USP, 2009), o músico e pesquisador paulista Dante Pignatari afirma que “para que o Brasil pudesse se tornar uma fonte geradora de música de valor internacional, era preciso inseri-lo na vanguarda da música europeia. Nepomuceno é o grande responsável por trazer a modernidade à música brasileira, modernidade esta representada especialmente por Wagner, do lado germânico, e Debussy, do francês” (p. 63).

Em um meio intelectual seduzido pela espetacular força referencial da Belle Époque e descolado das fontes culturais emanadas das manifestações populares, era comum, inclusive, o preconceito de que a língua portuguesa não era adequada para o canto.

E Nepomuceno conseguiu romper com isso, compondo e estimulando a criação musical em português e com temas brasileiros. No seu esforço para influir nesse ambiente musical restrito ele passou a valorizar a música camerística e concertos sinfônicos voltados à diversificação de repertório.

Defensor das causas abolicionistas e natural do Ceará – onde a abolição se deu quatro anos antes de 1888, data oficial de libertação dos escravos no Brasil –, Alberto Nepomuceno compôs em 1887 a música Dança de Negros, obra sinfônica de inspiração afro, posteriormente inserida em sua "Série Brasileira" com o título Batuque.

Em 1887, quando Nepomuceno já combinava a musicalidade negra com técnicas progressistas da linguagem musical, nasceu o compositor Villa-Lobos (1887-1959), a quem o maestro cearense incentivou na busca do desenvolvimento de uma linguagem musical notadamente brasileira.

Na condição de diretor do Instituto Nacional de Música (INM), Alberto Nepomuceno foi muitas vezes ironizado por apoiar artistas e pesquisadores como Villa-Lobos. Foi criticado também por convidar músicos populares a se apresentarem em salas de concerto.

No Rio de Janeiro de 1908, quando promoveu recitais com o violonista maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863–1946) e com o pianista carioca Ernesto Nazareth (1863-1934), foi vaiado por sua ousadia. A resistência à aproximação da música espontânea com a música formal era grande, mas, mesmo assim, ele trabalhou o quanto pôde na formação de músicos e de plateias.

A luta de Alberto Nepomuceno para a criação das bases que levaram ao desenvolvimento da diversidade inventiva da Música Plural Brasileira tinha, entre seus atributos, a grandeza da não xenofobia. Os anos de estudos de música na Itália, na Alemanha e na França serviram para reforçar seu desejo por uma música com a cara do Brasil.

Essa música seria construída com o aproveitamento dos elementos sortidos da brasilidade e com o abrasileiramento do que fosse apropriado de outros lugares. Foi defensor da educação musical, compôs modinhas – essa fecundação de elementos ibéricos com italianos que gerou a canção brasileira –, fez a melodia do “Hymno do Ceará” e colocou reco-reco em orquestra sinfônica.

Entrevistado pela revista A Época Theatral (RJ, 27/12/1917), revelou seu sonho com o surgimento de “um gênio musical sertanejo, imbuído de sentimentos regionalistas, que, segregando-se de toda influência estrangeira, consiga criar a música brasileira por excelência, sincera, simples, mística, violenta, tenaz e humanamente sofredora, como são a alma e o povo do sertão”.

Duas décadas depois de sua morte, como uma espécie de materialização desse desejo, surgia o genial Luiz Gonzaga (1912–1989). E, como o compositor e cantor pernambucano, outros grandes artistas não pararam de surgir e de engrandecer a nossa música.

*O jornalista Flávio Paiva é  também escritor e autor de livros nas áreas de cultura,
cidadania, gestão compartilhada, mobilização social, memória e infância.
Imagem: Retrato do Maestro Alberto Nepomuceno por Eliseu
d’Angelo Visconti (1866-1944), em www.eliseuvisconti.com.br

SAIBA MAIS
www.flaviopaiva.com.br

08 setembro 2014

O MUNDO É UM CAMPO MINADO


A tormenta*


Apesar de nos ter sido emprestada há milhões de anos, tão limitados e incompetentes que somos, ainda não conseguimos tomar posse da vida.

O ser humano já é incompreensível até por definição, quando diverge daquilo que é, o ser propriamente dito, concebido pela natureza involuntária, talvez pela transa irresponsável de estrelas num orgasmo da Via Láctea, daquilo que o faz ser humano, em seu caráter integral, consciente e merecido, de quem é pelo que se faz ser.

Viver é tão único e tão solitário que é difícil mensurar o quanto perdemos, ou mesmo o que ganhamos nessa conjunção coletiva, sinuca de alteridades, na complexidade de nossa relação com o que está além da nossa individualidade, dos nossos desejos, do nosso ser gratuito, tão desconhecido de nós, mas, certamente, íntimo de todos e qualquer um.

O mundo é um campo minado, e não uma colina de flores do campo, e daí exige a perda da ingenuidade, a atenção redobrada, a sensibilidade e a noção exata do peso da nossa pisada.

No correr da História, e da histeria, rumamos culturalmente num saco de gatos universal, apoteótico, com destino certo ao espetáculo, ao grande teatro do absurdo, cuja nossa audiência útil amuralha o império de forças que têm como argumento, principalmente nos tempos modernos, os caríssimos anúncios e a publicidade chula, criados por agências de pseudointelectuais devoradores de long-necks e drinks coloridos. 

A máquina não para, movida sempre pela intensa e cruel brutalidade financeira, causa maior, quase sagrada, dos espíritos opressores da humanidade, insaciáveis porcos comedores de bacon, genocidas, fascistas e admirados postadores de selfies europeus, levantando taças de vinho cor-de-sangue brasileiro, ou abrindo os braços como manjadas estátuas, pontes e postes dignos de gerar a inveja nos tão medíocres quanto eles.

O fogo do poder e da ambição se alastra nos intestinos magnânimos desses porcos egoístas, corroendo-lhes as vísceras e deixando-lhes em cirróticas cinzas o lúmen de sua alma original. 

Resta-lhes, para disfarçar o carcoma, cobrir-se com roupas caras, banhar-se com perfumes franceses, andar em carros do ano, comprar toda bobagem ultramoderna, dar de presente garrafas de bebidas envelhecidas para parceiros (leia-se “interesseiros”) com quem dividem suas aparentes vitórias e conquistas. 

À noite, o fantasma da ansiedade e do medo não os deixa dormir, ou os acompanha na hemorroida doída ou no desdém indesejado do(a) companheiro(a) de leito.

Para suportar a dor desta vergonha inconfessável, adoçam a boca com álcool, entopem o sangue com drogas, consomem sapatos e acessórios no shopping mais próximo, mas nada, simplesmente nada, afasta deles o medo de perder tudo aquilo que eles bem sabem ser apenas uma farsa.

Porém, mesmo assim, somos nós quem os alimentamos, os incentivamos e permitimos que esses porcos dominem o mundo, subam as rampas, vistam-se em togas, nos representem, ganhem voz aos microfones, decidam a nossa vida, gastem o nosso dinheiro com armas, com projetos de fachada, náufragos e megalômanos, em negociações vergonhosas.

Permitimos que eles decidam os destinos das nossas crianças, que deixem nossos velhos ao relento, que esqueçam das populações mais pobres e sentenciadas pelo não-poder, que cultivem um celeiro de segregação, de injustiça, de desigualdade, de gente que nunca vai saber até onde poderia chegar se tivesse alguma oportunidade.

Diante de tão opressora e impassível realidade, sofre quem ainda se indigna com o sofrimento alheio, quem é sensível às possibilidades do ser e do mundo, quem muito gostaria de crer na possibilidade de algo diferente.

Escolher nos parece sempre tão difícil... mas, sinceramente, o que queremos mudar se nem mesmo aprendemos a colocar o lixo na lixeira?


*O escritor Raymundo Netto é designer, quadrinhista, 
produtor cultural e editor-adjunto da Fundação Demócrito Rocha

05 setembro 2014

SOU DA MINHA TRIBO


A Escolha*




Qualquer pessoa que tenha estudado as questões que envolvem moral e ética, em algum momento deparou-se com o conceito do Imperativo Categórico, criado pelo filósofo Immanuel Kant por volta de 1785. 

“Imperativo”, no contexto utilizado por Kant, pode ser entendido como “mandamento”. E “categórico” é o que não aceita dúvidas, o “indiscutível”. Imperativo Categórico então seria um Mandamento Indiscutível, que Kant explicou assim: "Aja apenas segundo a máxima que você gostaria de ver transformada em lei universal." 

Simplificando: você deve agir baseado em princípios que desejaria ver aplicados para todo o mundo. 

Você vai ao estádio assistir a um jogo de futebol, entra no embalo da torcida e decide fazer parte do coro que xinga o goleiro do time adversário, que é negro: 

- Macaco! 

Tá todo mundo xingando, pô! Você é só mais um(a), que mal há em zoar o adversário? Afinal de contas, estádio de futebol é o lugar onde a gente xinga todo mundo, não é? Pois é. 

Mas então você recorre ao Imperativo Categórico de Kant: “E se aquele goleiro fosse eu? Me sentiria bem ao ser chamado de macaco?” 

É claro que não! Então, apesar do calor da torcida, você decide não xingá-lo. Esse é o princípio que você gostaria que fosse seguido por todo mundo. 

Pois é. 

Mas ao decidir não xingar, você abre mão de parte do exercício de combater o adversário. Você se coloca fora da tribo. Ou melhor, do coletivo, pra ficar na moda. Afinal, o papel da torcida é motivar seu time a seguir adiante e desmotivar o adversário para que ele perca o jogo. A única forma de fazer isso é... torcendo! Gritando, vaiando, cantando, xingando! E quem acha que não é assim é porque nunca pisou num estádio. 

Ao ser coerente com seus valores morais e não xingar, você deixa de tomar parte num rito importante do torcedor, não faz mais parte da patota na plenitude. Se bobear é até criticado(a) e corre o risco de não ser aceito(a) pelo grupo. 

Tá certo, estou exagerando, mas no fundo esse é o conceito: xingo pois todos xingam e assim sou aceito pela tribo. 

Em minha palestra Tudo bem se me convém, falo desse que é o grande dilema da humanidade: agonizar com os prejuízos de fazer o que é certo, honrar a palavra dada, agir com compaixão... ou ser bem-sucedido ignorando esses valores? 

Bem, depende do que você considera ser "bem-sucedido", não é? Se dar bem com a desgraça do Outro é ser bem-sucedido? E se o Outro for você? 

Negociar ambições, riscos, ilusões e trocas consigo mesmo(a) tem sido nosso grande desafio ao longo dos tempos. 

Quem vive verdadeiramente seus valores agoniza diante de escolhas morais. Corre o risco de não ser aceito pela tribo. 

Já quem deixa esses valores apenas pairarem sobre sua vida, nem percebe que essas escolhas precisam ser feitas. E chama o goleiro de macaco. 

- Mas e se o goleiro se sentir ofendido? 

- Ah, tudo bem se me convém. 

Agora que você já sabe o que é o Imperativo Categórico de Kant, talvez consiga reconhecer as pessoas que não vivem de acordo com ele. 

E escolha não fazer parte dessa tribo. 



*O jornalista e palestrante Luciano Pires comanda um baita serviço de despocotização .

SAIBA MAIS
www.portalcafebrasil.com.br

17 julho 2014

UM LUGAR MELHOR


"Às vezes ouço o canto
de uns passarinhos..."*

Bucolismo: "The Reflection Pool" com "The Singing Tower" ao fundo

Em Julho de 2014 a tradicional revista mensal norte americana Ladies’ Home Journal, com 131 anos de idade, publicará a sua última edição. A revista continuará apenas na internet, mais um sinal da mudança dos tempos. Ao ler a notícia me lembrei de um “causo”.

Conheci o Ladies' Home Journal através de um de seus editores, Edward Bok (de origem holandesa, seu nome de batismo era Eduard Willem Gerard Cesar Hidde Bok. Nascido em outubro de 1863, partiu em janeiro de 1930, levando consigo um prêmio Pulitzer), que escreveu um livro chamado The Americanization of Edward Bok

Nele ele conta a história de seu avô, que viveu na Dinamarca e foi designado pelo rei para liderar um grupo de soldados no combate a piratas que infernizavam uma região da costa dinamarquesa. Bok instalou seu quartel-general numa ilhota desolada e, após alguns anos de luta, conseguiu dizimar os piratas. Agradecido, o rei perguntou a Bok o que ele gostaria de receber como retribuição, e ouviu atônito o pedido: um pedaço de terra na tal ilha desolada. 

Ninguém entendeu, pois a ilha era um pedaço de nada, sem qualquer estrutura; como alguém poderia querer viver ali? E Bok respondeu: “Quero plantar árvores, quero tornar a ilha um lugar bonito”. Enlouquecera? Além da desolação, a ilha era constantemente assolada por temporais e fortes ventos! Ele seria incapaz de plantar qualquer coisa ali!

Diante da insistência, o rei concedeu o pedido e Bok mudou-se para a ilha, construiu uma casa e levou consigo sua esposa. Por anos os dois, laboriosa e persistentemente, plantaram árvores, grama e arbustos pela ilha. Gradualmente a vegetação tomou conta e, numa manhã, eles acordaram com o canto de pássaros. Até então, jamais havia aparecido um pássaro por lá! Com o tempo a ilha se tornou um lugar aprazível, que hoje é visitado por milhares de turistas. Ao morrer, o velho Bok pediu que inscrevessem em sua lápide: “Faça o mundo um pouco mais bonito e melhor porque você viveu nele.”

Muitos anos depois, Edward Bok, o neto, aos 50 anos de idade se aposentou do Ladies’ Home Journal e, um dia, viajando pela Flórida, ao conhecer um lugar chamado Iron Mountain, o ponto mais alto da Flórida, teve uma ideia: por que não repetir o feito de seu avô?

Ele então comprou o terreno e transformou a área no Mountain Lake Sanctuary, em Lake Wales. Ao morrer, deixou a propriedade para o estado da Flórida. Hoje o local é uma atração turística — também conhecida como Bok Tower Gardens, que você pode apreciar em boktowergardens.org.

Na lápide de Edward Bok, o neto, está escrito: “Faça o mundo um pouco mais bonito e melhor porque você viveu nele.”

Conto essa história para celebrar os 10 anos de lançamento de meu livro Brasileiros Pocotó que floresceu para dar no que hoje é o Café Brasil, minha vida, meu propósito, o que sou. Em 2004 eu tinha 48 anos de idade e a intenção de ajudar a desemburrecer o Brasil e fazer o mundo um pouco mais bonito e melhor, sabe porquê?

Porque vivo nele.

Dez anos depois, constato que não é fácil, todo dia é uma luta, às vezes dá desânimo, sensação de impotência e vontade de desistir. Mas aí ouço o canto de uns passarinhos...

“Fazer o mundo um pouco mais bonito e melhor porque você viveu nele.”

Obrigado por compartilhar do mesmo propósito.



*Luciano Pires é jornalista, blogueiro e trabalha com muito
afinco no afã de tentar despocotizar a mente da brasileirada.
Imagem: The Singing Tower, em Bok Tower Gardens (FLA)


30 junho 2014

QUANTOS TÃO BELOS?!?


Uma cidade 
e um Theatro* 






O Theatro José de Alencar completou 104 anos e a data merece comemoração. A junção de estilos associada à configuração espacial resultou em territórios distintos que fazem do centenário Theatro uma lenda. 

O jardim desenhado por Burle Marx e a sede do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional formam um conjunto arquitetônico belíssimo, harmonioso e monumental numa cidade carente de edifícios de prestígio. 

Só isso já justifica sua inserção na iconografia urbana, e muitos, especialmente, os de fora, associam imediatamente a imagem do José de Alencar com a própria cidade. O que seria de Fortaleza sem ele?

Foi-se o tempo em que as casas de espetáculos de grande porte, equipadas para suntuosas apresentações, ocupavam lugar de destaque na paisagem urbana. Fortaleza conta com palcos para os mais variados espetáculos. Contudo, nenhum se destaca. Podem contar com modernos recursos cênicos, mas não compõem o perfil urbano da cidade. 

Essa condição e qualidade são exclusividades do charmoso Theatro. Raros são os artistas que não registram sua emoção ao se apresentar no palco do garboso José de Alencar.

Sua arquitetura majestosa se destaca na extremidade sul da Praça com o mesmo nome. A cidade cresceu, seguiu novas direções e o velho Centro se ressente muito. Tentaram tirar tudo do bairro mais tradicional de Fortaleza. Entretanto, o velho Theatro resiste, contraria os que apostavam em sua decadência.

O povo reverencia o José de Alencar a seu modo. Ninguém é indiferente à sua grandiosidade. Os adeptos da dramaturgia e de outros espetáculos continuam prestigiando sua programação. Ficam pouco tempo. Formam fila na bilheteria, assistem às apresentações e saem rapidamente. Nas ocasiões de grandes solenidades, o Theatro se engalana, amplia sua sala de estar avançando pelos jardins e garante festas concorridas e elegantes. 

Entretanto, é na faina cotidiana da vida da cidade, no meio de um povo apressado, que se percebem os vínculos afetivos do cidadão com a tradicional casa de espetáculos. Ninguém passa por ele de forma indiferente. Uns se benzem. Pensam tratar-se de igreja. Outros alteram o ritmo dos passos e, curiosos, olham as portas enormes, o frontal, a vidraça da fachada interna. Observam o jardim.

O tempo passou e o Theatro resistiu. Uma visita guiada é imperdível. Contemplar as pinturas de Ramos Cotoco, subir as escadinhas helicoidais das torrinhas e do alto constatar a ousadia da fachada vitral com suas cores fortes. 

Atravessar as passarelas, transpor a moderna cortina de vidro, garantia da climatização do foyer, parar e admirar a delicada estrutura de ferro, os balcões, as cadeiras de palhinha, o teto ricamente pintado e seu belo lustre. Fortaleza faz muito bem em se orgulhar de seu belo Theatro. Quantos são tão belos quanto ele?






*José Borzacchiello da Silva é geógrafo e professor titular da Universidade Federal do Ceará.


29 maio 2014

ALTERNÂNCIA ENLOUQUECEDOIRA


Amar e punir*


Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou e mandou para o Senado a Lei da Palmada, ou Lei Menino Bernardo (em homenagem a Bernardo, assassinado recentemente, aos 11 anos, no RS). A lei fará que pais e educadores não possam recorrer a castigos corporais, mesmo moderados, ainda que sejam na intenção de educar as crianças.

Há argumentos contra: a vontade de não deixar o Estado invadir o espaço privado da família e o receio de que educar se torne mais impossível do que já é.

Eu sou mais a favor da lei do que contra ela, porque a violência é contagiosa: reprimir a violência de pais e educadores talvez quebre o círculo vicioso pelo qual tendemos a reproduzir a violência da qual fomos vítimas.

Mesmo assim, cuidado: o que enlouquece as crianças não são as palmadas, mas as oscilações repentinas do humor dos adultos.

Harold Searles, numa obra (1959) que continua sendo uma referência, descreveu O Esforço para Tornar o Outro Louco. Ele revelou, por exemplo, as consequências enlouquecedoras de um comportamento dos pais feito de alternâncias rápidas e contínuas entre amor visceral e fúria punitiva.

Essa alternância não é obra de malucos. Ao contrário, ela é trivial, sobretudo quando os adultos amam muito seus rebentos (ou seus educandos) e, portanto, querem dar tudo (e mais um pouco) para eles: tempo, atenção, esperanças, bens materiais etc.

Repetidamente, o adulto que ama demais explode, porque não aguenta o sacrifício de sua própria vida, que as crianças não lhe pedem, mas que ele se impõe como se as crianças lhe pedissem. Cada explosão, por sua vez, produz culpa e uma nova onda de extrema paixão amorosa. E a coisa recomeça.

Essa alternância de beijos molhados e punições terrificantes mina a confiança da criança no mundo e é muito mais enlouquecedora do que, por exemplo, uma severidade constante, mesmo que ela se expresse em castigos físicos.

De novo, uma criança não enlouquece porque seus pais utilizam a palmatória; mas algumas crianças enlouquecem porque os pais passam de apertões e declarações de amor a gritos raivosos e tentativas de estrangulamento.

Conclusão: talvez a maior violência contra as crianças não seja a palmada, mas o amor excessivo dos adultos.

Falando em "maior violência contra as crianças", durante a discussão na Câmara, no dia 21, o deputado pastor Eurico disse que a Xuxa cometeu "a maior violência contra as crianças", referindo-se ao fato de que, em 1982, num filme vagamente erótico, Xuxa (então com 18) contracenou com um garoto de 12 anos (cá entre nós: o verdadeiro problema com o filme em questão é que ele não é exatamente uma obra-prima).

Enfim, para o pastor Eurico, a maior violência contra as crianças consiste em deixar um menino de 12 anos acariciar um seio.

Por coincidência, no dia seguinte à patacoada do pastor Eurico, o Ministério Público de São Paulo ratificou um Termo de Ajustamento de Conduta com a Igreja Universal do Reino de Deus para impedir que crianças e adolescentes sejam expostos publicamente, durante cultos ou eventos.

A promotora de Justiça responsável pelo TAC, Fabiola Moran Faloppa, entendeu que são humilhantes ou degradantes as situações em que, no púlpito ou na TV, o ministro religioso revela informações íntimas sobre as crianças (suas doenças, seus abusos sofridos etc.). 

Concordo com a promotora. E acrescento um comentário.

Há várias razões para expor as crianças à religião. Entre elas, a ideia de que a autoridade divina possa ajudar pais e educadores —a ameaça do inferno substituindo castigos e palmadas. Pode ser. 

Mas é também possível que, para as crianças, a religião seja mais perigosa do que a palmada ou o vago erotismo de um filme.

O Deus da Bíblia é muito parecido com a mãe ou o pai que enlouquecem seus filhos: ele nos ama a ponto de nos criar e nos entregar as chaves do mundo, mas pode se transformar num castigador absurdamente intransigente (palmadas eternidade adentro).

Em outras palavras, Deus passa do amor à punição com a mesma ferocidade de uma mãe ou de um pai ciclotímicos. Será que os ganhos sociais do ensino precoce da religião compensam seus efeitos enlouquecedores?

Seja como for, se quisermos punir menos as crianças, deveríamos começar por amá-las menos, adotando um novo provérbio: quem ama demais castiga demais.

*O psicanalista italiano radicado no Brasil Contardo Calligaris é Doutor em Psicologia Clínica e colunista da Folha de S. Paulo. 


01 maio 2014

PARTICIPAÇÃO ESTATAL


Por que há tanta
corrupção no Brasil?*





Entram governos, saem governos, e uma variável insiste em persistir no cenário político brasileiro: a corrupção. A impressionante recorrência de escândalos envolvendo malversação de recursos públicos leva à questão: por que há tanta corrupção no Brasil?

Há, na certa, muitos fatores. Mas é importante entender, em primeiro lugar, que o brasileiro não nasce corrupto. A corrupção no Brasil é fruto das nossas instituições, moldadas por séculos de tradição ibérica, patrimonialista e cartorialista, onde o público se confunde desde as entranhas com o privado. 

Somos a república dos cartórios, dos alvarás, das concessões e, sem surpresa, do jeitinho. Criam-se dificuldades para, logo em seguida, oferecerem-se facilidades devidamente comissionadas ao agente público que presta o serviço, claro.

Adicionalmente, vemos em curso no país o desenvolvimento de um perigoso “capitalismo de compadres”. Torna-se cada vez mais rentável para uma empresa o investimento em “empreendedorismo político” e o atendimento às demandas de agentes públicos – em contraposição ao empreendedorismo de mercado, buscando a inovação e o atendimento às necessidades do consumidor. 

Quando tarefas tão prosaicas e, ao mesmo tempo, tão vitais ao crescimento e desenvolvimento do país, como a abertura de um negócio, a obtenção de uma licença ou o pagamento de tributos tornam-se tão complexas, é natural, e até instintivo, que os agentes busquem maneiras de contornar tais obstáculos. 

Acaba se tornando uma questão de sobrevivência em muitos casos. Some-se a isso a falta de uma cultura de transparência e prestação de contas por parte dos poderes públicos e um sistema penal leniente e temos um terreno fértil para a corrupção em suas diversas formas.

Sair desta lógica demanda a redução da participação estatal na sociedade. É necessário que o governo limite sua atuação a algumas poucas áreas (segurança, educação, saúde e infraestrutura básica), deixando o resto à iniciativa privada. 

Mundo afora, a correlação entre grau de intervenção do Estado na economia e os índices de corrupção é inequívoca. É também uma questão de bom senso: quanto maior a participação do Estado na economia e a autoridade conferida a seus agentes, maiores são as oportunidades de corrupção.

A iniciativa para uma mudança de tal profundidade não partirá de nossa classe política, zelosa em manter seus poderes e privilégios. Mas políticos também são indivíduos racionais que respondem a incentivos. 

Cabe, portanto, à sociedade brasileira dar-lhes o sinal por meio das instituições democráticas: queremos mais liberdade e menos Estado em nossas vidas. Somente assim nos livraremos da chaga da corrupção, que corrói diariamente nossas instituições e trava nosso desenvolvimento.

*O cientista político da PUC-RS Fábio Maia Ostermann é Bacharel em Direito
(UFRGS) e graduado em Liderança para a Competitividade Global (Georgetown University) 



15 abril 2014

CORAGEM & AMOR


Gestos que contam*





Garanto que vocês nunca ouviram falar em Samara Oliveira, Jéssica Silva, Camila Beatriz e Jéssica Camarço. Nem eu. Mas, cada uma delas recebe meus aplausos e mil beijos de gratidão.

Seguinte: o Lar Torres de Melo foi assaltado no dia 20 de março e os ladrões levaram toda a grana dos velhinhos. Quem já anda mal, imagine quando lhes roubam tudo.

Estas garotas, estudantes universitárias, resolveram por conta própria, lançar uma campanha de ajuda/socorro à instituição. Tudo que seja alimento não perecível e leite em pó, aveia, café, açúcar, biscoitos, roupas, toalhas, material de higiene pessoal (pasta, escova etc.). 

Elas combinaram com alguns centros acadêmicos que se tornaram pontos de arrecadação. As doações foram entregues no sábado seguinte.

Não tenho a informação de quanto foi arrecadado, pois nenhuma notícia saiu na imprensa sobre a coleta. Parece não ser assunto palpitante. Não anima pauta. Não tem sangue.

Entretanto, quando se fala tanto em “mundo perdido”, que a juventude “não está nem aí”, que “formam um bando de alienados” e outras coisas que tais, aparecem estas meninas, dizendo e fazendo o contrário. Passagem ao ato.

Elas não criticam o governo, que não faz. Que se mostra totalmente alheio. Nem condenam os ladrões… De uma maneira silenciosa, elas reprovam os bandidos dizendo que a sociedade sempre terá mais força e mais solidariedade para mostrar.

Fatos como este precisam ser divulgados, mostrados. Deveriam torna-se exemplo para outros jovens. E até virar um movimento social de transformação da sociedade. 

Um dia, uma costureira negra recusou-se a ceder o seu lugar no ônibus a um homem branco (1.o de dezembro de 1955). Os Estados Unidos viviam o racismo brabo. Ela não aceitou a humilhação. Foi detida e condenada à prisão.

O pequeno gesto deu origem à mais profunda transformação da sociedade americana: o fim do racismo. Hoje, essa mulher – Rosa Parks – é símbolo dos movimentos dos direitos civis dos negros.

Sinceramente meninas, fico muito orgulhoso do gesto de vocês. Mostra que a coragem e o amor ainda são as maiores armas que possuímos.

*Antonio Mourão Cavalcante é médico, antropólogo e professor universitário
(imagem em www.wvwc.edu)



09 abril 2014

RESOLUÇÃO DO CONANDA n.º 163/2014


Infância livre
de publicidade*





Há oito anos, quando fui convidado a colaborar com o projeto Criança e Consumo, que estava sendo criado pelo Instituto Alana, a primeira ideia que me veio à cabeça foi a de que a sociedade brasileira não deveria medir esforços na produção de convergências que fossem capazes de enfrentar os interesses dos responsáveis pela exploração comercial da inocência por meio da indução compulsiva ao consumo.

Um dos maiores problemas identificados naquele momento era a forma desregrada e, por vezes, inconsequente, com que muitas das empresas de produtos e serviços destinados ao consumo infantil usavam as mais variadas técnicas de publicidade para seduzir crianças no Brasil, causando toda sorte de problemas de estresse familiar e escolar. 

Por outro lado, era alentador saber que, se em vários outros países essa prática de sedução comercial não era permitida, nem tudo estava perdido.

De 2006 a 2014, foram muitos debates, embates, articulações e vontade de “fazer valer nossos valores essenciais para influir em nossas escolhas de vida”, de modo que a infância não se resuma a uma “possibilidade de negócio, mas a possibilidade de um mundo melhor”, como procurei sintetizar da fala de Ana Lúcia Villela, fundadora e presidente do Alana, em um artigo intitulado Sociabilidade Infantil (DN, 01/04/2006). Nesse período o Instituto, com apoio do Ministério Público, obteve muitas conquistas para deter excessos do mercado na relação com a infância, em ações envolvendo retiradas de comerciais do ar e multas inibidoras.

Os avanços por uma infância livre de publicidade tiveram, entretanto, na sexta-feira passada (4), um dia histórico, quando foi publicada no Diário Oficial da União a norma que proíbe a publicidade dirigida à criança em todo território nacional. 

A Resolução n.º 163 (13/03/2014) do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) – órgão do qual o Alana faz parte, como uma das entidades da sociedade civil, ao lado de ministérios do governo federal – já está, portanto, em vigor, tipificando como abusiva esta prática de comunicação mercadológica em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais de televisão, creches, escolas (inclusive uniformes e materiais didáticos), pontos de venda e nas embalagens de produtos.

É provável que haja questionamento da resolução do CONANDA junto ao Poder Judiciário, por parte de agentes do mercado que exploram a credulidade infantil, mas os direitos de cidadania da criança estão cada vez mais evidentes, e uma forma de demonstrarmos respeito a eles é colocarmo-nos na posição da criança, como defendeu e fez o escritor, médico e educador polonês Janusz Korczak (1878-1942), autor do ensaio O direito da criança ao respeito, no qual traça uma perspectiva das considerações que viriam a ser dadas à pessoa criança, como um tipo particular de sujeito de direito.

Não deixar que a publicidade aborde diretamente a criança é um passo para uma nova infância, com liberdade para filhos e alívio para pais e educadores. Na nova arquitetura sociopolítica que se pretende para o mundo pós-hipermoderno, não cabe mais a violência do vínculo forçado ao consumo pelo assédio perturbador das empresas, em comunicações de mercado que tornam a criança refém da publicidade e os pais reféns das crianças. 

A norma do CONANDA dá um basta nessa anomalia social, libertando meninas e meninos dessas técnicas de domesticação do desejo, a fim de que possam usufruir de suas reservas de espontaneidade.

O nivelamento entre crianças e adultos na publicidade tem sido um dos responsáveis pela supressão do tempo da infância. Não é mais aceitável esta perda generalizada de espaços imaginativos, por conta do estímulo ao consumismo. 

As corporações que se valem do argumento de que, como cidadãs, as crianças também precisam ter acesso direto às informações de produtos e serviços postos à venda e que seriam do seu interesse, não se dão conta, ou agem de má-fé, por desdenharem da representação da infância em sua igualdade diferenciada.

No plano do Direito, a justiça se dá na distinção existente entre os iguais, na igualdade da diferença. A importância de a sociedade cuidar para que a publicidade de produtos e serviços infantis seja dirigida aos pais e adultos cuidadores, e não ao público infantil, está no reconhecimento de que a criança é um Outro – com necessidades e capacidade de participação próprias –, apesar de semelhante. Uma infância livre de publicidade está mais próxima da emancipação do si-mesmo.

Na história da infância, entre episódios de incompreensão, repressão, exclusão e avanços conceituais e práticos, pode-se dizer que a norma do Conanda para que as empresas deixem as crianças em paz é um marco a ser comemorado pela sensatez da dinâmica democrática. 

Esta conquista leva em consideração uma infância do presente, e não aquela do vir a ser, pregada pela ideologia geracional. Com ela, a criança conta com uma força legal capaz de protegê-la dessa sanha gananciosa, que a tudo transforma em mercadoria e a todos em estatísticas de consumo.
(publicado por Flávio Paiva em www.opovo.com.br)
(imagem em www.wallsave.com)

08 abril 2014

CHEGOU A HORA?


Alinhamento entre Terra,
 Sol e Marte antecipa
 o "fim do mundo"



Um evento cósmico raro é esperado para esta noite, 
 antecedendo as "quatro luas de sangue" — que alguns 
 acreditam ser um presságio do fim do mundo 



Para alguns fiéis, as luas de sangue são mais que um evento cósmico raro,
representando um presságio para o fim do mundo (Foto: Nasa / Divulgação) 

 Marte, Terra e Sol vão se alinhar no espaço na noite desta terça-feira, um evento conhecido também como “oposição de Marte” que só acontece uma vez a cada 778 dias. 

 Porém, o que faz o acontecimento cósmico marcante é ele antecede as "luas de sangue", um fenômeno que poderá ser visto da Terra na próxima semana e que é interpretado por muitos como um sinal bíblico do fim dos tempos. 

 De acordo com a Nasa, a rara sequência de quatro eclipses lunares (as ”luas de sangue”) é conhecida como tétrade, e será seguida por seis luas cheias. 

O ciclo começa na semana que vem, no dia 15 de abril, e terminará apenas em 28 de setembro deste ano. Ainda segundo a Nasa, as quatro "luas de sangue" só foram vistas por três vezes em mais de 500 anos: a primeira vez na Idade Média, em 1493, quando os judeus foram expulsos pela Inquisição Católica na Espanha; a segunda, em 1949, quando o Estado de Israel foi estabelecido na Palestina, e a terceira em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias entre Árabes e Israelenses. 

 Para alguns fiéis, as luas de sangue significam mais que um evento cósmico raro: são um presságio para o “fim do mundo” e o retorno de Cristo à Terra para o Juízo Final. 

 A passagem bíblica do Livro de Joel, no Antigo Testamento, diz: “O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor” (Joel, 2:31).


 (conteúdo publicado em http://noticias.terra.com.br)