27 outubro 2014

FOODTRUCKS: PROBLEMA OU SOLUÇÃO?


Contracultura e feirinhas gastronômicas*



Em dia de eleição, você come democraticamente uma refeição republicana, na rua. Há muito os cozinheiros tentaram sair das cozinhas, agora que conseguiram, a cozinha os chama de volta. Não a cozinha de preparação, porque desta jamais devemos sair, mas a “cozinha” de forma metafórica ou figurada, o ambiente “quente”, “sujo” e “engordurado”. A mesma que era restrita às escravas no período colonial e onde se cumpria medidas punitivas até certo tempo atrás. E agora à sarjeta.

Proliferou-se pelo mundo a onde do Foodtruck. Não foi um movimento brasileiro e nem é algo novo. Foodtrucks são recorrentes e antigos em grandes metrópoles. Mas ela se renovou quando um empreendimento chamado “Le Camion Qui Fume”, um velho ônibus adaptado para vender cachorro quente, começou a circular e a fazer sucesso nas ruas de Paris vendendo sanduíches. Na mesma Paris, cujos restaurantes já foram acusados de ser a contra-cultura dos momentâneos rompantes socialistas; que desde 1750 foram símbolo de ostentação burguesa por parte de Grimod de La Reynière, distribuindo dois tipos de convites para seus jantares: um convite para quem podia comer e outro que só dava direito a olhar.

Nessa mesma Paris, de tantos contrastes e de tanta influência da alimentação em sua sociedade e economia, renasceu a comida de rua. Disseminou tanto e tão rápido que levas de cozinheiros e amadores têm corrido para realizar seu sonho empreendedor, montando sua casa de repasto na traseira de uma Kombi, achando que de lá serão solucionadas todas as questões que envolvem esse empreendimento e seus ideais.

No Brasil, mais especificamente em São Paulo, os locais das feirinhas já migraram da rua para estacionamentos privados. Os defensores do Foodtruck (comida sobre caminhão) não aceitam dividir espaço com barracas de “pobres”. A mesma segregação que leva cozinheiros experientes e tarimbados a trocarem restaurantes em imóveis para virarem ambulantes num caminhão de luxo, não aceitam o cozinheiro que vai numa carrocinha de hot-dog, assim como este também não aceita o cozinheiro que surge em tendinha de lona.

O país do individualismo incorporou como poucos a gastronomia como ferramenta de socialização e lazer, mas não o aceita como empreendimento econômico. Na mesma velocidade que cresce o campo da gastronomia, aumenta-se a oferta de empreendimentos, pipocam negócios de especialidade, que nascem com um destino da destruição de valor de determinados alimentos.

Destruímos os produtos de tanto consumo desenfreado, de deturpação do modo de preparo, destruímos os empreendimentos e seus empreendedores e incapacitamos os novos a atingirem o sucesso, porque no momento, o máximo que podemos ofertar para estudantes e profissionais de cozinha é montarem a sua barraquinha e viverem como ambulantes, esse é o ideal do momento e é o que o capital de pequenos empreendedores permite.

Os defensores do movimento Foodtruck sugerem que é um boicote aos aluguéis abusivos, é um incentivo aos pequenos empreendedores e uma forma de facilitar o acesso de mais pessoas à gastronomia. Concordo com todos os argumentos. Acho o Foodtruck uma boa ferramenta de marketing. Só não entendo porque para o campo da gastronomia foi reservado a possibilidade de se fazer “feirinhas” e evoluirmos para ambulantes e para outros segmentos da economia o estado organiza e facilita simpósios, convenções e congressos. Aos cozinheiros a “cozinha”. E à sociedade que se socializava envolta do conforto e da segurança de um restaurante, o estado te sugere a sarjeta.

*O chef Rodrigo Viriato é articulista do jornal O Povo.


02 outubro 2014

MPB POR EXCELÊNCIA


O inventor da
música brasileira*



Quando se fala que alguém inventou alguma coisa, não se está dizendo que foi sozinho. O pai de uma grande invenção é, portanto, aquela pessoa cuja inquietação, atitude e feito passou a contribuir destacada e significativamente para influir na vida das pessoas.

Foi assim com o alemão Gutemberg, inventor da imprensa; com os irmãos Lumière, franceses inventores do cinema; e com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864–1920), o inventor da música brasileira.

Embora maltratada pelo truste de mercado, que, na ausência de políticas públicas decentes para a cultura, deita e rola no País, a música brasileira é potencialmente um dos mais importantes recursos renováveis do Brasil.

E para chegar a ser reconhecida assim, um dos seus mais relevantes pontos de inflexão ocorreu na passagem do século XIX para o XX, momento em que mudávamos da monarquia para a república. Nesse cenário, a catálise se deu com base na figura irrequieta de Nepomuceno, que nasceu em Fortaleza no dia seis de julho há 150 anos.

Alberto Nepomuceno queria viver em um lugar que tivesse o seu jeito próprio de compor, tocar e cantar, mas que, simultaneamente, pudesse estar em linha com as tendências estéticas do mundo em seu tempo.

Os estilos valorizados pela Corte Imperial, a exemplo da ópera italiana e da música sacra, não abriam espaço de diálogo com a miscigenação étnico-cultural pulsante nos meios urbanos e rurais da então incipiente vida republicana.

Em sua tese de doutorado Canto da Língua: Alberto Nepomuceno e a Invenção da Canção Brasileira (USP, 2009), o músico e pesquisador paulista Dante Pignatari afirma que “para que o Brasil pudesse se tornar uma fonte geradora de música de valor internacional, era preciso inseri-lo na vanguarda da música europeia. Nepomuceno é o grande responsável por trazer a modernidade à música brasileira, modernidade esta representada especialmente por Wagner, do lado germânico, e Debussy, do francês” (p. 63).

Em um meio intelectual seduzido pela espetacular força referencial da Belle Époque e descolado das fontes culturais emanadas das manifestações populares, era comum, inclusive, o preconceito de que a língua portuguesa não era adequada para o canto.

E Nepomuceno conseguiu romper com isso, compondo e estimulando a criação musical em português e com temas brasileiros. No seu esforço para influir nesse ambiente musical restrito ele passou a valorizar a música camerística e concertos sinfônicos voltados à diversificação de repertório.

Defensor das causas abolicionistas e natural do Ceará – onde a abolição se deu quatro anos antes de 1888, data oficial de libertação dos escravos no Brasil –, Alberto Nepomuceno compôs em 1887 a música Dança de Negros, obra sinfônica de inspiração afro, posteriormente inserida em sua "Série Brasileira" com o título Batuque.

Em 1887, quando Nepomuceno já combinava a musicalidade negra com técnicas progressistas da linguagem musical, nasceu o compositor Villa-Lobos (1887-1959), a quem o maestro cearense incentivou na busca do desenvolvimento de uma linguagem musical notadamente brasileira.

Na condição de diretor do Instituto Nacional de Música (INM), Alberto Nepomuceno foi muitas vezes ironizado por apoiar artistas e pesquisadores como Villa-Lobos. Foi criticado também por convidar músicos populares a se apresentarem em salas de concerto.

No Rio de Janeiro de 1908, quando promoveu recitais com o violonista maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863–1946) e com o pianista carioca Ernesto Nazareth (1863-1934), foi vaiado por sua ousadia. A resistência à aproximação da música espontânea com a música formal era grande, mas, mesmo assim, ele trabalhou o quanto pôde na formação de músicos e de plateias.

A luta de Alberto Nepomuceno para a criação das bases que levaram ao desenvolvimento da diversidade inventiva da Música Plural Brasileira tinha, entre seus atributos, a grandeza da não xenofobia. Os anos de estudos de música na Itália, na Alemanha e na França serviram para reforçar seu desejo por uma música com a cara do Brasil.

Essa música seria construída com o aproveitamento dos elementos sortidos da brasilidade e com o abrasileiramento do que fosse apropriado de outros lugares. Foi defensor da educação musical, compôs modinhas – essa fecundação de elementos ibéricos com italianos que gerou a canção brasileira –, fez a melodia do “Hymno do Ceará” e colocou reco-reco em orquestra sinfônica.

Entrevistado pela revista A Época Theatral (RJ, 27/12/1917), revelou seu sonho com o surgimento de “um gênio musical sertanejo, imbuído de sentimentos regionalistas, que, segregando-se de toda influência estrangeira, consiga criar a música brasileira por excelência, sincera, simples, mística, violenta, tenaz e humanamente sofredora, como são a alma e o povo do sertão”.

Duas décadas depois de sua morte, como uma espécie de materialização desse desejo, surgia o genial Luiz Gonzaga (1912–1989). E, como o compositor e cantor pernambucano, outros grandes artistas não pararam de surgir e de engrandecer a nossa música.

*O jornalista Flávio Paiva é  também escritor e autor de livros nas áreas de cultura,
cidadania, gestão compartilhada, mobilização social, memória e infância.
Imagem: Retrato do Maestro Alberto Nepomuceno por Eliseu
d’Angelo Visconti (1866-1944), em www.eliseuvisconti.com.br

SAIBA MAIS
www.flaviopaiva.com.br