27 agosto 2015

COM OU SEM CULPA


Mentirinha crônica*

Em tom meio de deboche, meio de desafio, o amigo quis saber se conseguiria escrever apenas com a verdade, como se propusesse escrever sem as vogais ou as consoantes. 

Como se a verdade limitasse o campo de abordagem de quem, por ofício ou divertimento, resolve patinar na escrita.

Mas não qualquer verdade, acrescentou esse amigo, já animado. Mas a Verdade, essa com maiúscula, pronunciada nos tribunais, ao pé do ouvido, no auge da bebedeira e na hora do casamento. 

Respondi que tinha deixado a 5.ª série pra trás havia uns bons anos. Logo, entenderia a sugestão como uma dessas provas de coragem a que se submetem os meninos da escola quando têm lá seus 10 ou 12 anos. Ele insistiu: seria mais que uma gincana. Uma espécie de faxina mental.

Pensei um pouco antes de repetir: não, muito obrigado, mas mentir faz parte das andanças humanas. Posso abrir mão de qualquer coisa; não da mentira, sem a qual não se chupa um picolé, já dizia Nelson Rodrigues. 

Das marcas que distinguem homens de bichos, talvez a mais importante seja mentir, que se relaciona com a capacidade de falsear a realidade. Com ou sem culpa.

Sem a mentira, os governos desmoronam, as bolsas despencam, o dólar cai, as matérias-primas se desvalorizam, os presidentes se desestabilizam, os laços maritais se desfazem, os chefes de Estado vão ao cadafalso, os professores se desempregam, os ministros claudicam, os padres largam a batina, os pastores se complicam, as acareações perdem sentido, as trocas de cartas se embaralham, os amantes perdem o tino e os políticos se tornam obsoletos como ábacos em plena era digital.

A mentirinha é a fiadora da governabilidade social humana. Sem ela, seríamos como os autômatos de Orwell e sua novilíngua, cuja obra aborda o sofrimento crônico e autoritário que acompanha qualquer tentativa, ainda que bem intencionada, de quem prescindir do pecado.

Construímos nosso edifício moral com tijolos aparentes e argamassa de invenção. Em seguida, aplicamos uma demão de tinta acrílica para fixar a versão de nós mesmos que melhor convém à ocasião: não raro, a mais bonita, sob o melhor ângulo, sem os pontos cegos que nenhum radar capta nas fotos e vídeos explodindo de contentamento. 

Uma narrativa de extrema satisfação consigo mesmo(a), a fim de convencer amigos/empresas de que a minha história (meu nome-fantasia) está intimamente associada ao sucesso. Autoengano: forma clássica de mentir.

Com a profissionalização da mentira em ambiente virtual, cada um(a) é coaching e plataforma de negócios de si mesmo(a). A sua própria moeda corrente; o seu personal.

Enganosamente, a mentira faz crer que ninguém, exceto eu, tem problemas com a autoestima ou medo de fracassar no emprego ou de estar empilhando ridículos sempre que abre a boca. 

Do ponto de vista do ego, ela cria uma espécie de autodefesa que mantém afastados os visigodos – toda e qualquer ameaça ao meu bem-estar e à minha impostura.

Para o cronista, então, a mentirinha é mais que acessória: é parte integrante da oração. 

É mais que remédio: é Viagra estilístico. 

É mais que esquema tático: é a essência do jogo. 

É mais que disfarce: é o próprio reflexo. 

É mais que brincar com palavras: é uma maneira de proteger as verdades — não essa com V capitular, flácida e difícil de encontrar no dia a dia. 

Mas essa verdade miúda, pé-duro, vizinha do amor e de outros sentimentos igualmente fortes e frágeis a um só tempo.


*Henrique Araújo é jornalista.
Conteúdo publicado em
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