14 fevereiro 2007

ESTADO OU NAÇÃO?

Uma reflexão político-astrológica


Corre na língua do mito grego que no princípio existiam Rhea ou Gaia (a Terra) e Urano (o Céu Estrelado). Mãe e filho. E cônjuges: todas as noites, Urano (ou Saturno) deitava-se sobre Gaia e fertilmente ia gerando e multiplicando sua prole. Entretanto, a deusa, exausta dessa copiosa relação, pede a um de seus filhos, Chronos, que a retire deste seu destino tão sofredor. Chronos, compartilhando da dor de sua mãe, decide ajudá-la. Com sua foice, aproveitando um momento de distração de seu severo pai, corta-lhe os testículos. O sangue do castrado cai sobre a Terra, fertilizando-a, enquanto seu sêmen jorra entre as águas do mar, dando vida à deusa Afrodite — divindade do Amor e da Beleza.

Tendo a acreditar que confundimos Estado com Nação. Não saberia entendê-los como sinônimos. Como Nação, entendo povo. É a Lua. Nossas raízes, heranças, o que trazemos conosco. É nossa família, nossas rastros que se reúnem. Pedaços entrelaçados, que ajudaram a construir o início do que nos somos. Povo é sinônimo de Nação. Nação sem povo, inexiste. Entretanto, existe povo sem nação. Pessoas que, unidas, vinculadas pelo sangue, pela história e pelo destino forjam sua nação.

Por Estado, entende-se um aparelho burocrático, que na idéia inicial de construção de uma realidade digna para seus cidadãos, forja-se nas entranhas da Nação. Qual é o seu objetivo, afinal? Saturno, sendo regente natural da Casa 10 de uma carta astrológica, é nosso pai, as figuras de autoridade, aqueles que estão no poder, o Estado. A Lua, significadora do povo, é senhora natural da Casa 4, oposta à casa 10.

São casas opostas, que realizam entre si um aspecto tido como difícil dentro do Saber Astrológico: a função de ambos é unir-se e completar-se. Dialogar com suas diferenças, enamorar-se. Será que isso se mostra como uma verdade constante? O Estado dialoga com o povo? Onde está o verdadeiro namoro? Ao confundir Estado com Nação, perdemos o verdadeiro enamorar-se. Valores essenciais — como o patriotismo — esvaem-se. Pelos caminhos da História, percebe-se um vício constante: o poder, simbolizado pelo Estado, na figura de seus governantes humilha e declina daqueles que são — em tese — seus filhos.

O pai (que, como citado, é simbolizado pela Casa 10 e por Saturno) é aquele que cuida, protege e fornece a seus filhos os subsídios para seu crescimento e fortificação. Um ótimo entendimento entre Casa 4 e Casa 10. Um namoro perfeito entre a Lua e Saturno.

Mas, petrificados há muito tempo, estão os deveres do Estado. Entre eles, o de fornecer ao povo (seus filhos) os subsídios para um crescimento digno e uma vida sadia: saúde, moradia, escola, alimentação, segurança. Será que o raciocínio está errado? Onde estão os deveres do Estado? Perderam-se no caminho?

O Estado aparece contraditoriamente como uma figura castradora, retirando do povo sua fertilidade — assim como Chronos fizera com o pai. No Brasil de hoje, muito pode ser percebido através da "Carta Astrológica do Grito do Ipiranga", onde Saturno — castrador e cerceador — localiza-se na Casa 3, a casa do ensino e da aprendizagem. Um forte indicador da deficiência do ensino brasileiro.

Nada melhor do que alienar seus filhos (o povo) por meio de uma base educacional limitada e deficiente. Obviamente que a figura de Urano ou Saturno mostra-se coerente, ao impor limites necessários para a exclusão do caos. Entretanto, a ordem preestabelecida deve ser simétrica aos interesses dos filhos da Nação, e não aos mandos e desmandos dos senhores do Estado. Diz o mito que Afrodite nasce da castração. De um ato de terror, nasce a deusa do amor. Esperando que o amor supere o terror, finalizo estas parcas reflexões iniciais de filhos que desejam entender e dialogar com seus pais.


*Binho Silva é apaixonado pela Astrologia e carrega a esperança dentro do peito aonde quer que vá.

(A figura de Chronos integra o acervo da Michael Whelan Gallery)



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TRILHA DA VIDA LOCA

Amor nosso de cada dia


Olha, a primeira vez que eu estive aqui
Foi só pra me distrair, eu vim em busca do amor

Dario foi no balcão e pediu um montila. Era a primeira vez que ia no Leila's. Virou a dose de um gole, depois deu uma goipada no chão e esfregou o sapato em cima. Reparou na luz vermelha do teto, o efeito que ela dava no ambiente. Na máquina tocava uma música animada e uns casais dançavam entre as mesas. Dario deu uma coçadinha nos possuídos e pediu outra dose. Foi nesse momento que ela apareceu, vinda da penumbra do corredor. Usava sainha jeans e bustiê estampado de manga comprida. Ela se encostou na parede, mascou o chiclete e olhou pra ele de rabicho de olho. Ele a achou muita mimosa. Ela pregou o chiclete atrás da cortininha de babado e... sorriu.

Olha, foi então que eu lhe conheci
Naquela noite fria, em seus braços
Meus problemas esqueci

Uma hora depois ele saiu de cima dela e foi se limpar na bacia que ficava sobre a mesinha de madeira. Quando voltou, ela estava sentada na cama e segurava um copo. "Peguei um montila pra você, por minha conta" – ela falou. Ele agradeceu, bebeu um pouco e perguntou se ela queria. Ela disse que não gostava, mas que ia beber porque estava gostando de estar com ele. Ela tomou um gole e fez careta. E Dario achou lindo a careta dela. Ela acariciou seus cabelos e disse que achava ele parecido com aquele cantor. Ele riu, descontraído. De repente a semana cansativa, o trabalho desgastante, o crediário atrasado da tevê, tudo passou a ser apenas detalhes insignificantes a evaporar ao toque dos dedos dela...

Olha, a segunda vez que eu estive aqui
Já não foi pra distrair, eu senti saudade de você

Uma semana depois, quando ele chegou e perguntou pela Josélia, e a gerente disse que ela estava ocupada, ele se esforçou pra disfarçar a tristeza. Ele então disse que era o próximo e pediu uma dose pra esperar. Mas a gerente respondeu que tinha quatro na frente. Quatro? Será que escutara direito? E olhe que hoje a clientela dela tá fraca, a gerente explicou enquanto anotava o nome dele num caderno de 7 matérias cheio de fotos de artistas. Dario virou a dose e pediu uma dupla. E foi sentar na mesa do canto, perto da maquininha de música.
Olha, eu precisei do seu carinho Pois eu me sentia tão sozinho Já não podia mais lhe esquecer Duas horas depois, quando ela apareceu e o levou ao quarto, ele enjoou e vomitou na porta 8 montilas, duas coxinhas e um sarrabulho. Ela levou-o ao banheiro e deu banho nele. Depois deitou-o na cama e começou a tirar a roupa, mas ele a interrompeu e disse, engolindo as sílabas, que daquela vez queria ficar abraçado com ela, só isso. Surpresa, Josélia ajeitou o travesseiro e ele deitou, se aconchegando ao corpo dela. Ela o beijou no rosto com suavidade e fez carinho em sua cabeça. E Dario adormeceu.

Eu vou tirar você desse lugar
Eu vou levar você pra ficar comigo
E não interessa o que os outros vão pensar

O salário como vendedor na loja de autopeças não era muito bom, mas ele conseguira um empréstimo e estava montando uma carrocinha de cachorro-quente na esquina do fórum. Ela poderia ajudá-lo a tomar conta da carrocinha, não era um trabalho complicado. Sentados na mesa do canto, a preferida dele, ela o escutava falar. Um cliente da loja era dono de um colégio, ele tentaria uma bolsa pra ela estudar. Nesse instante ela não conseguiu mais segurar a lágrima que insistia em escapar de seu olho. Ele percebeu e tocou seu rosto, desviando a lágrima para seu dedo, a luz vermelha refletindo na gotinha. "O que foi?" — ele perguntou. E ela então falou de Goiânia, as cartas que enviava pros pais, onde contava sobre como ia bem no supletivo — mentira que renovava já fazia 2 anos. Acho até que eles já sabem, ela murmurou, chorosa. Dario sorriu, compreensivo, e disse que adoraria conhecê-los. "Eles devem ter vergonha de mim" — ela disse. Ele pegou no queixo dela, ergueu seu rosto e olhou nos olhos dela: "Mas eu tenho orgulho."

Eu sei que você tem medo de não dar certo
Pensa que o passado vai estar sempre perto
E que um dia eu posso me arrepender

Enquanto ele comprava outro saco de pipoca, ela não conseguia deixar de admirar o cartaz do filme. Estava radiante. Imaginava que cinema era algo bonito mas não imaginava que fosse tanto. Ele a escutou falar excitada do filme, das músicas românticas, de como a moça era bonita e de como não esperava que o moço voltasse pra resgatá-la. Ele a pegou pela mão e atravessaram a rua, rumo à pracinha. Ela não queria ir pra lá mas ele disse que não havia problema e insistiu tanto que ela cedeu. Então, sentados no banquinho, ela disse que ele era um homem muito bom, que gostava muito dele, mas o problema é que ela era... Ele não a deixou terminar: segurou seu queixo e a beijou na boca. E Josélia pela primeira vez não afastou os lábios. Foi nesse momento que ele escutou, vindo de um grupo de rapazes que bebiam na birosca ao lado: "Grande Dario, me chupando por tabela..."

Eu quero que você não pense em nada triste
Pois quando o amor existe, não existe tempo pra sofrer

Hoje faz um ano que Dario e Josélia se conheceram. Semana passada, ela ganhou o anel de noivado e o abraçou, chorando emocionada. Ela ainda trabalha no Leila's onde, aliás, está cada vez mais requisitada, principalmente depois que passou a usar o anel. E é justamente pelo movimento que proporciona à casa que a gerente aceitou suas reivindicações. Uma delas é que agora ela só começa os programas depois das 11, que é a hora que chega do supletivo. E a outra é que ela tem sempre direito a 10 minutos de intervalo — e ela faz questão de aproveitar todos eles. Tomando um montila com Dario em sua mesinha predileta.


(A música "Vou tirar você desse lugar" é de autoria de Odair José)

*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra, 3.ª pedra do Sol