08 fevereiro 2019

CURAS ANCESTRAIS



O Cachimbo da Paz 
no círculo restaurativo indígena

Foto: Romulo Baldez                                       

Cachimbo manufaturado pelo indianista Luiz Felipe Figueiredo, conhecido pelo nome indígena Tsiipré, autor do livro Uma jornada no tempo – das visões ao cachimbo sagrado”, em que relata como chegou a fazê-lo



Um cachimbo, fisicamente, divide-se em fornilho (recipiente onde se coloca o fumo) e tubo (por onde passa a fumaça para a boca). O simbolismo mostra-nos que o fornilho representa o aspecto feminino de todas as coisas vivas e o tubo é o símbolo do aspecto masculino de todas as formas de vida. A ação de colocar o fornilho no tubo significa união, criação e fertilidade.
 O Cachimbo da Paz é o que temos de mais significativo e marcante quando relacionamos indígenas e seus rituais de práticas referentes a cura de relacionamentos feridos ou rompidos. Os ancestrais de povos originários contam que receber o cachimbo em um círculo composto por parentes e outros convidados, permite às vezes, descobrir-se a união de todos. É aí que lembramo-nos da harmonia que pode ser alcançada através da união dos que nos cercam naquele momento. Simbolicamente, é com o cachimbo que nos esforçamos para dividir o nosso próprio espaço e a nossa experiência de vida.
O “portador do cachimbo” — conhecido pela maioria como sendo o Pajé —, possui seu encargo como sendo de muita honra e profunda vocação. Nos atuais círculos restaurativos, identificamo-lo como sendo “um facilitador”. Na tribo, sempre foi convocado para atuar em nascimentos, mortes, casamentos, ritos de passagem, acordos contratuais, conselhos e diversas outras cerimônias.
Na atualidade, olhamos a paz como sendo a ausência de guerra mas, a paz representa muito além que isto, em nosso modo originário de pensar. A paz transita pela forma de viver, criar, agir, saber, ouvir e falar. A paz surge do nosso interior e é resultante do nosso equilíbrio em reconhecer as polaridades; macho/fêmea; humildade/orgulho; ensino/aprendizagem e outros aspectos que possam contribuir com a harmonia.
Sempre que o “cachimbo da paz” é partilhado, os acordos feitos e as palavras ditas têm base na proposta indígena de honra, verdade e compreensão mútua que surgem da paz interior de cada um. A honra e a palavra se tornam tão sagradas que devem ser mantidas a qualquer custo.
O último censo do IBGE (2010), apontou um total 896.917 indígenas no país, o que nos leva a concluir que, após oito anos, essa totalização beira um milhão de indígenas. As terras já demarcadas e homologadas constituem perto de 13% do território brasileiro. Estados, como Roraima, têm quase 50% de seu território como sendo terra indígena. São Paulo possui 12.977 indígenas, um número bastante expressivo e desconhecido pelos brasileiros. A diversidade cultural existente entre os povos indígenas é muito grande, de forma que não devemos nos referir à cultura indígena como se fosse uma única. São povos diversos, com línguas, religiões e olhares diferentes para o universo. Um Guaraní de São Paulo não tem a mesma cultura que um Macuxi de Roraima, assim como um Fulni-ô de Pernambuco não tem o mesmo olhar para o mundo que um Yanomami da Amazônia ou um Kaingangue do Rio Grande do Sul.
Os sistemas de Justiça existentes nas estruturas sociais das etnias, quase sempre, nos foram invisíveis e desconhecidos. Na verdade, temos muito que aprender em se tratando de maneiras que os tornam eficientes no processo de resolução de conflitos. Mesmo considerando que grande parte dos povos indígenas perderam bastante da estrutura social original devido as influências e contatos com a comunidade a nível nacional. Grande número de comunidades indígenas mantém seus sistemas de aplicação de justiça como sempre foram, originalmente.
Na visão desses povos, os aplicadores da justiça retributiva (tradicional) sempre foram invasores que desconsideram as leis e mecanismos de aplicação das mesmas desenvolvidas por eles ao longo de milhares de anos. A imposição do sistema judicial retributivo não faz o menor sentido para os indígenas. As tentativas de utilizar-se das regras criadas dentro da cultura e sistema político dos não-indígenas, em povos que possuem meios de resolução de conflitos próprios, constantemente, mostram-se desastrosas. A desconsideração habitual quanto a existência de elaborados sistemas jurídicos próprios no seio das comunidades indígenas brasileiras promove a negação da eficiência e funcionabilidade para todos. É como se jogássemos por terra sofisticados mecanismos elaborados ao longo da existência ética e étnica destes povos, como excelente forma de resolução de conflitos e práticas da paz.
Os Ingarikó, povo que habita a região setentrional do Brasil, no norte da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, ao pé do Monte Roraima, não têm um código escrito, mas possuem normas que são transmitidas oralmente, de geração em geração. São regras de aplicação de justiça em conformidade com as suas próprias instituições. Quando regras da comunidade são quebradas, o sistema de resolução de conflitos próprio é acionado. 
Os Xukuru do Ororubá, localizados entre os municípios de Pesqueira e Poção, no estado de Pernambuco, chegaram a diminuir, significativamente suas demandas conflituosas junto às autoridades policiais e judiciais através da execução dos próprios meios de fazer justiça. Os Nambikwara foi a etnia que mais evidenciou os processos contidos em práticas restaurativas. Foram eles que se notabilizaram por estratégias que intermediavam a resolução de conflitos gerados por disputas. A resistência às inúmeras investidas de evangelização fez com que os Nambikwara mantivessem seus rituais de cura, de religiosidade e de justiça de maneira muito próxima da ancestralidade.
Os povos indígenas Maori, da Nova Zelândia, são um grande exemplo na história da justiça restaurativa. De como um modelo tribal ganhou visibilidade e legitimidade suficiente, a ponto de ser incorporado pela justiça tradicional neozelandesa. O modelo de justiça restaurativa oriundo das tribos Maori foi o resultado da insatisfação dos membros dessa tribo em ver os seus jovens institucionalizados no sistema repressivo tradicional neozelandês.
No Canadá, o modelo também é inspirado nas culturas indígenas. Os protagonistas sentam em círculo e utilizam um objeto que é passado de mão em mão representando a posse da palavra, no Brasil, utilizamos o cachimbo como sendo este objeto. A reunião tem como objetivo a convergência da percepção para a solução do conflito significando a realização de um círculo restaurativo. Nesse país a Constituição de 1982 e a edição do artigo 718.2(e) do Código Penal canadense fixaram os Princípios Básicos para a Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, sofrendo influências das tradições das populações autóctones, como são chamadas as nações indígenas e Inuit (os esquimós), pelos franco-canadenses.
Nas comunidades nativas de territórios colonizados, a presença de práticas restaurativas, devia-se, principalmente, da necessidade de uma justiça distinta da punição baseada essencialmente na privação de liberdade, bastante utilizada pelas sociedades modernas. A própria estrutura das comunidades, onde cada indivíduo exercia um papel significativo para o ordenamento social, favorecia as práticas restaurativas, considerando que os indivíduos que houvessem cometido alguma infração as leis da comunidade deveriam ser julgados com vistas a permanecer exercendo sua atividade social, evitando-se, assim, a ruptura dos seus vínculos comunitários.
O ressurgimento dos modelos restaurativos na sociedade atual, deveu-se, em grande parte, às reivindicações de povos indígenas que exigiram e os que continuam a exigir da justiça estatal, respeito a seus processos de resolução de conflitos: Justiça Restaurativa Indígena – uma iniciativa brasileira que veio para colaborar com as diversas comunidades indígenas, no resgate ao sistema de justiça próprio, oriundo dos seus ancestrais, totalmente amparada pela Constituição Federal e pela Convenção OIT 169,  entre outras legislações e procedimentos.
A justiça restaurativa instalada no poder judiciário brasileiro tem origem como sendo o sistema jurídico próprio dos povos indígenas. A Justiça Restaurativa Indígena é direito consuetudinário (habitual aos costumes de um povo). Por serem ágrafos (não possuem linguagem escrita), os povos ancestrais vieram resistindo aos ataques à sua cultura, mas mesmo assim muito se perdeu. Muitas pressões externas contribuíram para que as comunidades fossem impedidas de buscar soluções próprias para os seus próprios conflitos. Dessa forma, o Mato Grosso do Sul, possuindo a segunda maior população indígena do país, saiu na vanguarda e iniciou, oficialmente, o trabalho de resgate e implantação da JRI junto às comunidades indígenas brasileiras, de forma que, em breve, teremos povos indígenas praticando o seu próprio sistema de fazer justiça, com toda autonomia a que têm direito. É rápido, gratuito, justo e executado pela própria comunidade.

*Marco Aurélio Luz é escritor, pesquisador, fundador do Instituto 
de Práticas Restaurativas de MS e coordenador da implantação 
de Núcleos de Justiça Restaurativa Indígena em todo o Brasil.