29 novembro 2012

"FAÇA O MELHOR QUE PUDER"

Decisões morais*




É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.


Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.

O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, Disparos, de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. Disparos é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.



*o psicanalista italiano Contardo Calligaris é Doutor em Psicologia Clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School (NY, USA) e foi professor de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia em Berkeley (CA, USA). Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo -- as patológicas e as ordinárias. Texto publicado na versão impressa do caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo (www1.folha.uol.com.br). (imagem por iga.com em http://videogamecritic.net)






14 novembro 2012

O SOM DO FEELING

Overdose sonora

Jeff Beck exibe garra, destreza e timbres muito pessoais. Este guitarman é, ao lado de Jimmy Page e Eric Clapton, o responsável pela alta qualidade e experimentalismo do Rhythm & Blues procedente da Grã-Bretanha há cerca de 40 anos.







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12 novembro 2012

CIÊNCIA & CONSCIÊNCIA ANIMAL

Descoberta aquece debate*

O grau de humanização de uma sociedade pode ser
medido pela forma como nela são tratados os animais


   
As confusões reinantes no planeta por conta de guerras e crises financeiras tiraram de foco um importante manifesto lançado, há duas semanas, por neurocientistas, alertando para confirmações de pesquisas que apontam a existência de graus de consciência —mais do que os suspeitados— em animais. As implicações de tais resultados poderão revolucionar a forma como os humanos veem e se relacionam com os animais.

A prova de que não se trata de sensacionalismo está na respeitabilidade de instituições envolvidas na pesquisa – tais como os institutos de tecnologia Caltech, MIT e Max Planck. A eles pertence o grupo de neurocientistas responsável pelo manifesto no qual se afirma que o estudo da neurociência evoluiu de modo tal que não é mais possível excluir mamíferos, aves e até polvos do grupo de seres vivos que possuem consciência. 

A declaração está sendo encarada como um possível marco divisor na forma como o pensamento filosófico e o pensamento político encararam a questão dos animais até agora.

Tais conclusões reforçam a luta pelos direitos dos animais. O racionalismo ocidental havia quebrado a respeitosa visão originária das antigas tradições em relação aos bichos. No entanto, no próprio Ocidente, a evolução da doutrina dos direitos fundamentais levou à incorporação também de outros seres vivos, além dos humanos. 

Hoje, não é possível conceber o Estado Democrático de Direito sem incluir uma legislação protetora dos animais. É a base para se combater a crueldade contra eles.

Por isso, o grau de humanização alcançado por uma sociedade pode ser medido também pela forma como nela são tratados os animais. O combate à crueldade deve ser feito não só pela repressão, mas, sobretudo, pela educação. 

Em certas áreas rurais, por exemplo, considera-se natural a tortura empregada por crianças e adolescentes contra animais silvestres e domésticos. Isso embota a qualidade da compaixão e cria as condições psicológicas para a violência contra o próprio ser humano.

Que esta nova descoberta da ciência sirva para remover tal deformação cultural e melhorar a legislação e as formas de tratar os animais, inclusive, os meios de abate dos que são sacrificados para servirem de alimento ao bicho homem. Até que um dia, quem sabe, o próprio abate possa ser dispensado para sempre.


(Editorial publicado em www.opovo.com.br)
(imagem em petshopandmore.com)



10 novembro 2012

DESPEDIDA

Mudanças*



Mais uma semana começa sem alarde, discreta, iniciando seu ciclo igual a todas as semanas de sempre. E minha vida também parecer recomeçar com ela, pois assim caminha, descaminha a humanidade em qualquer lugar desse mundo velho sem porteiras nem fronteiras. Certamente, se o inesperado não mostrar a sua cara, todos os dias decorrerão tão rotineiramente semelhantes feito irmãos gêmeos e o tédio será, sem dúvida, minha companhia mais frequente. Nada poderei fazer para mudar tal estado de coisas. 

Só me restará seguir, acompanhar obediente o marchar do resto do rebanho a batalhar, sem descanso, pela sobrevivência. Raros homens estão libertos desse cotidiano, esmagador destino. Dessas obrigações, desses compromissos dos quais é impossível escapar, fugir, desde que Adão e Eva foram expulsos injustamente do terrenal paraíso por um locador de maus bofes. E eu, que sonhava tanto, quando moço, em ser um sujeito completamente livre, preocupado apenas comigo mesmo e ninguém mais. Entretanto, a juventude nos dá esse direito de sermos tolos e ingênuos, preparando a alma para suportar, mais tarde, o terrível peso da realidade.

Claro que a vida, embora seus pesares, indubitavelmente vale a pena de ser vivida. Não profiro aqui nenhuma novidade. Tampouco besta não sou de pensar o contrário, porque se assim o fosse, de há muito já teria dado cabo da minha por desespero e desencanto totais. Por maiores e mais graves que sejam os problemas que nos afligem, nos atormentam, roubam descaradamente o nosso sono, existe sempre um jeito de resolvê-los, de encontrar uma solução, uma saída de uma maneira ou de outra, por bem ou por mal, quer nos custe mais ou menos. 

Ou então, na pior das hipóteses, de conseguir atenuá-los do melhor modo possível que esteja ao nosso alcance. Nada é definitivo. Tudo é circunstancial, deletério, provisório, assim acredito. Para quem já esteve perto da morte e viu, de vislumbre, a sua assustadora carantonha como eu, a vida passa a possuir um valor de imensidão desmesurada. Aprendi, com tal aterradora experiência, a procurar viver intensamente um dia de cada vez, preso a cada momento, a cada instante do tempo presente, do aqui e agora, despido de preocupações quanto ao futuro, pois sei que ele chegará impreterivelmente, pontual como um cobrador, ao meu encontro. Enquanto o amanhã não acontece, somente o hoje me importa, interessa, faz parte do meu show, seja ele alegre ou triste, me mostre uma cara simpática ou me exiba um sardônico sorriso.

Há gente que escolhe viver à moda peru de Natal, morrendo de véspera, cingido pelo abraço doentio da ansiedade. Já fui assim nas antigas quebradas do meu existir. Se as coisas não ocorriam como eu as havia planejado, costumava armar uma tosca tragédia de circo mamulengo. Mergulhava de cabeça numa cava depressão e a vida perdia, então, todo e qualquer sentido. Em verdade, comportava-me qual um adolescente mimado quando meus desejos e quereres eram contrariados, sem dar-me conta que me tornava um chato insuportável para todos aqueles que comigo conviviam dentro e fora de casa. Faltava-me senso de humor suficientemente capaz de me fazer rir das minhas próprias desgraças e desditas. E sem senso de humor, até uma prosaica topada num paralelepípedo assume ares de uma tremenda catástrofe. 

Pronunciava a palavra "azar" por qualquer dá-cá-aquela-palha, sem perceber que a má-sorte sempre atende a quem a chama, a invoca com imbecil assiduidade. Custei a aprender a viver, mas fui forçado a adquirir esse demasiado necessário aprendizado, que diferencia os homens dos meninos na hora da onça beber água. Disse, uma vez, o poeta Torquato Neto: “Levem um homem e um boi ao matadouro. O que berrar primeiro é o homem, mesmo que seja o boi”. A velhice e o sofrimento podem não nos tornar mais sábios, mas nos ensinam a compreender que as coisas são como são. Algumas podem ser por nós mudadas e outras, não. As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.

Hoje, a minha tolerância ficou mais elástica, inclusive para com a burrice alheia. Claro que não desenvolvi a infinita paciência de um monge trapista, porém deixei de correr continuamente o risco de morrer de raiva, de um ataque de apoplexia, enfurecido por qualquer besteira. Findei por descobrir a verdade mais simples de que não posso controlar tudo aquilo que acontece ao meu redor, a falar menos e escutar mais, tornar-me mais flexível em minhas opiniões, mantendo, entretanto, a rigidez dos meus princípios éticos. Até chego a levar, como não fazia dantes, desaforo pra casa, desde que não me sinta profundamente ofendido nem desrespeitado, porque aí o negócio muda de figura e minha reação é do tamanho ou maior que a ação. 

Meu sangue continua quente, contudo aprendi como esfriá-lo nos momentos em que se faz preciso tentar resolver os conflitos usando a calma de um pacifista. Manter a tranquilidade tornou-se uma arte que busco exercitar todos os dias e vi que minha vida melhorou bastante em qualidade. Sei que inda falta muito o que aprender na dura escola do existir, porém procuro ir me transformando em um aluno bem comportado — mas não tanto que termine por virar covarde e saia correndo, rabo entre as pernas, diante dos insultos e ameaças alheias.

*O médico-psiquiatra Antônio Airton Machado Monte, poeta do cotidiano que publicara textos 
no Jornal da Praia já nos anos 1980, deixou-nos em 10/09 passado. Deus o guarde, cronista





06 novembro 2012

MATERNIDADE PLANETÁRIA

Quando vamos crescer?*




A infância nos faz deparar com a surpresa, com o encantamento, com o olhar sensível às belezas esquecidas. A infância é capaz de despertar no adulto o desejo de proteger e de ser melhor. Talvez sejam esses alguns dos motivos pelos quais a maternidade é um presente.

Ser mãe, cada vez mais, é uma opção e não uma consequência de ser casada ou de ser mulher. Embora muitas mulheres pensem assim, há poucas décadas isso era impensável e ainda hoje há quem acredite  que ser mãe é a principal função da mulher, e que a vida sem filhos é vazia ou mesmo egoísta.

"Uma grande opressão paira sobre toda a feminilidade terrena, desde que foi difundida a ilusão de que o destino principal de uma mulher seria a maternidade", considera o escritor Abdruschin, na obra Na Luz da Verdade.

Muitas ideias contaminam o solo do senso comum, sem que se saiba exatamente sua origem e, de repente, cresce um exército, que caminha sem consciência ou convicção, numa mesma direção.

"A sociedade contemporânea prega esse ideal da igualdade não individualizada porque necessita de átomos humanos, cada um idêntico ao outro, para fazê-los funcionar em massa, suavemente, sem atrito. Todos obedecendo aos mesmos comandos, embora todos estejam convencidos de que estão seguindo seus próprios desejos", analisa o psicanalista Erich Fromm.

Ainda que obedecer possa ser uma virtude, de vez em quando é preciso levantar a cabeça e avaliar a que comandante estamos obedecendo e por qual motivo. Convicção, comodismo ou ignorância?

Os grandes desafios e inúmeros encantos que envolvem a maternidade e a paternidade são indiscutíveis. Porém, contribuir para marcar a infância de forma positiva e ser referência não é papel exclusivo dos pais, que geralmente já carregam uma carga grande de responsabilidades e culpas.

Basta fazer um breve exercício de imaginação: como seria criar filhos num mundo diferente? Em um país com publicidade responsável? Numa sociedade em que adultos cuidam de crianças, independentemente de quem sejam seus pais? Em um agrupamento que efetivamente respeita direitos e deveres, que cultiva a ética e os interesses coletivos?

Além da minha mãe, grandes mulheres marcaram a minha infância e continuam marcando a minha vida. Mulheres que buscam humanizar as relações e o cotidiano. Mulheres pensantes, que conseguem misturar ternura e tenacidade. Lembro-me de uma professora que cuidou da minha infância: ela não fazia todas as nossas vontades e era exigente, mas era capaz de me cativar na mesma medida em que me estimulava a ser melhor. Ela sabia acolher sem perder de vista o rumo.

Nós todos podemos proteger as crianças, definir que tipo de atitude teremos enquanto adultos frente à infância que nos cerca. Mais do que gerar uma criança, é preciso ter a consciência sobre a relevância de ser adulto, de ser humano, sem perder a conexão com o encantamento.

"Não é em vão que nas recordações da infância se insere uma leve melancolia. Trata-se do sentimento inconsciente de ter perdido alguma coisa que deixou um vazio, a incapacidade de intuir ainda infantilmente. Mas decerto tendes notado muitas vezes o efeito maravilhoso e revigorante que causa uma pessoa, apenas com sua presença silenciosa, de cujos olhos irrompe de vez em quando um brilho infantil", escreve Abdruschin. A minha professora tinha um brilho infantil no olhar.

Quando vamos crescer a ponto de sermos exemplos para as crianças? Quando vamos exercitar uma maternidade planetária, que cuida de tudo o que é vivo e precisa de proteção? Quando a nossa pegada pelo planeta vai ser menos árida e mais fértil? Me ajuda a sonhar?


*o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Hughes Galeano é autor de As Veias Abertas da
América Latina
, O Livro dos Abraços e Memória do Fogo, entre mais de 40 livros 


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www.graal.org.br/