23 novembro 2016

TRAGÉDIA HUMANA


A terra queima*





Eu vejo o sertão ardendo e o diabo montado num redemoinho, tocando fogo no mundo. A terra está ressequida, agonizando na sua lição de pedra. A caatinga semimorta hiberna seivas e segredos da vida, para vencer a vastidão da morte. Os açudes são poças de lama ou chão rachado, os peixes expostos ao sol parecem mumificados. 

Ao meio-dia, os animais sobreviventes (só couro e ossos) estão escondidos nas sombras, nos buracos, nas frestas, nas locas das pedras, e espiam com seus olhos frios — onde guardam os segredos das origens das espécies, inclusive da espécie humana (são nossos ancestrais). As carcaças dos bois, de brancuras reluzentes, esperam a noite para refletir o brilho das estrelas e a prata da lua.

Olhando a insuportável beleza dessa paisagem, lembrei-me de Josué de Castro, autor de "A Geografia da Fome", que via na caatinga retorcida, em agonia cósmica, erguer-se um palco para a representação da tragédia humana. 

Essa condenação do homem poderia ser até castigo de Deus (como numa tragédia grega), se não fosse toda essa miséria também provocada, durante séculos, por uma elite perversa, desde as sesmarias até os latifúndios, e, destes, aos currais neoliberais e pós-modernos. 

Neste império de injustiças, a água é um tesouro, e dele se apossam os poderosos. Não há limite para essa ambição. Como disse o poeta Patativa do Assaré, se o rico pudesse, ficaria com a brisa e daria ao pobre o furacão!

Deus deve estar ausente. Diz uma canção dos Tuaregs, do deserto do Saara, que Deus fez os lugares férteis, com montanhas, árvore e rios, para neles Ele habitar e teria feito os desertos para que neles os homens procurassem a sua alma. Aqui estou, nesse sertão sem-fim, em busca da minha alma, com o corpo queimando ao sol. 

Num momento de desvario, pensei até em olhar para o sol em busca de Deus, mas o céu límpido de nuvens escassas, dominado pela intensa luminosidade, proíbe o meu olhar, sob o risco de que minhas retinas sejam queimadas e eu fique cego de tanta luz. 

Padre Ibiapina, Antonio Conselheiro e Padre Cícero, santos cearenses que tiveram os couros curtidos pela luz desse sertão, talvez possam interceder por nós junto à insondável vontade divina, enquanto nos preparamos para a luta, pois correm boatos e notícias de que o governo quer privatizar a água. 

Se isso acontecer, será possível ler, nos portais dos sertões, a frase que Dante determinou para o portal do inferno: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”.

No entanto, não será tão fácil a consumação desse crime. Nesta terra, onde os horizontes se derramam no sem-fim, os homens do sertão resistem como gigantes. O DNOCS, mesmo sucateado, sobrevive, e a Cagece resiste bravamente. 

Com certeza, as populações se levantarão contra as tentativas governamentais de privatizar a água. O povo cearense, vítima secular das secas, mas sobretudo das elites perversas e do capitalismo desumano, não deixará que tal hecatombe aconteça. 

A água é um direito inalienável do homem, assim como ar, a vida e a liberdade. 




*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br.

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