03 dezembro 2008

A MAIOR DA CIDADE

Quadrinhos para todo(a)s



Bandes dessinées, fumetti, tebeos, mangá, muñequitos, comics, comiczeichnungen, historietas, banda desenhada: diferentes formas de dizer, ao redor do mundo, o que no Brasil conhecemos como "histórias em quadrinhos".

Em Fortaleza, uma exposição foi inaugurada dia 22 de novembro, com a proposta de ser um recorte da produção independente contemporânea mundial de quadrinhos. O quadrinho independente (comix) surgiu nos anos 60 e fez desta mídia uma expressão artística, ao contrário do que acontecia até à década anterior, quando os gibis não eram mais que meios de entretenimento, explorados pelos grandes editores.

Reunindo 44 artistas representados por trabalhos originais e pranchas ampliadas — sendo sete cearenses, 17 de outros Estados brasileiros e 20 de países como África do Sul, Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, França, México e Suíça — praticamente todos os artistas estrangeiros participantes jamais tiveram seus trabalhos publicados no Brasil. Trata-se da maior exposição de HQ já realizada na capital cearense.

A "Monstra Comix", segundo os responsáveis pela produção e curadoria (Weaver Lima, Franklin de Oliveira e Érica Zoe, do Núcleo ArtZ), traz ainda atividades paralelas para agitar ainda mais a exposição, incluindo palestras e debates com autores de quadrinhos e mostra temática de filmes. A seguir o bate-papo que o jornalista Claude Bornél, que assina a coluna Seqüencial no portal www.opovo.com.br, teve com os responsáveis pela exposição.

Seqüencial - O que é a "Monstra Comix"?
Franklin de Oliveira - A exposição "Monstra Comix" é uma continuação natural dos trabalhos desenvolvidos por nós do Núcleo ArtZ, de valorização do trabalho autoral. A exposição faz parte de um projeto maior que demos início nesse final de ano (2008), o projeto Monstra – que se divide em vários eventos (exposições, encontros, oficinas, festas, feiras etc).
Weaver Lima - A "Monstra Comix", especificamente, é uma exposição que exibe um pouco da produção contemporânea de histórias em quadrinhos. Trabalharam na seleção das HQs 3 pessoas: eu, o Franklin de Oliveira e a Érica Zoe. Selecionamos autores que se destacam dentro da cena independente dos quadrinhos.
Érica Zoe - São artistas que se utilizam do meio das HQs para expressar sua visão de mundo.

S - Como surgiu a idéia de montar a exposição "Monstra Comix"? Quanto tempo demorou para organizá-la?
WL - O convite partiu da equipe do Sobrado Dr. José Lourenço. Selecionamos o material e montamos toda a exposição em duas semanas. Isso claro, só foi possível nesse tempo porque a gente já tinha o material em mãos e trata-se de uma área que temos conhecimento. Mas a "Monstra Comix" vai mudando, aos poucos vamos acrescentando coisas e lançando publicações como parte da programação da exposição.
FO - Podemos dizer que a exposição já estava montada, no sentido de que estamos sempre observando o q está sendo produzido, vamos catalogando e criando "listas" com os nomes mais interessantes que encontramos. A "Monstra Comix" teve que ser montada nesse pouco espaço de tempo para abrir junto com a Bienal Internacional do Livro do Ceará. O difícil foi decidir quais entrariam e quais teríamos que deixar de fora. Mas era conseguir realizar nesse tempo ou deixar para o ano que vem... Esquecemos o que era dormir e entregamos tudo a tempo.
EZ - A exposição vai ficar em cartaz até fevereiro de 2009, portanto até lá teremos muitos acréscimos. É bom ressaltar que a nossa idéia é que a "Monstra Comix" aconteça sempre e que viaje pra outros locais também, já que trata-se de uma exposição de intercâmbio.

S - Qual é o principal objetivo da exposição?
EZ - Trabalhar um intercâmbio entre artistas ligados a HQ...
WL - Divulgar artistas que produzem boas histórias em quadrinhos. Divulgar artistas que buscam uma forma própria de produzir histórias em quadrinhos e conseguem bons resultados em suas tentativas.
FO - Desde 2005, quando realizamos o evento "Panorama Nona Arte", no Centro Cultural Dragão do Mar, buscamos identificar os produtores e repassar essa informação, principalmente para aqueles que não tem contato com histórias em quadrinhos. Nesse evento (PNA) focamos na produção de HQs no estado do Ceará. No ano seguinte, já dentro da Bienal do Livro, criamos uma programação exclusivamente dedicada às histórias em quadrinhos e à ilustração: o "Festival Internacional de Ilustração" (leia mais em www.opovo.com.br/colunas/sequencial/623536.html e www.opovo.com.br/colunas/sequencial/619564.html), que contou com a participação de Fábio Zimbres (SP/RS), Jean Galvão (SP) e do português José Carlos Fernandes e iniciou o processo de intercâmbio com artistas de outros estados e países. A exposição "Monstra Comix" continua esse trabalho de intercâmbio entre artistas e pretende apresentar até mesmo para os já iniciados em HQs, diversas propostas e estilos de se fazer histórias em quadrinhos, focando principalmente nos artistas independentes, e temos como artistas independentes aqueles que buscam formas alternativas, não apenas de impressão e comercialização de seus trabalhos, mas principalmente de concepção e realização de idéias.

S - Quantos países estão representados na exposição? Quais são os destaques em termos de autores e trabalhos?
FO - Dentro dessa edição da "Monstra Comix", três artistas ganharam salas especiais: Alberto Monteiro (RJ) considerado o mais influente nome da produção independente nacional dos anos 90; Rafael Sica (RS), desenhista que se destaca na atualidade por sua maneira singular de produzir tiras em quadrinhos; e José Carlos Fernandes (Portugal) autor de A Pior Banda do Mundo, premiada série que colocou o nome do artista entre os melhores autores de histórias em quadrinhos da atualidade.
WL - Até o momento, são 44 artistas de 11 países (Brasil, Portugal, Argentina, Espanha, México, França, Bélgica, África do Sul, EUA, Finlândia, Suíça) É difícil destacar um ou outro artista da exposição porque todos os selecionados são nomes importantes da atual produção mundial de HQs. Muitos, apesar de não tão conhecidos, são artistas que possuem obras muito bem resolvidas, que os destacam como grandes artistas além dos limites do meio das HQs. Quando a gente fez a seleção da exposição não procuramos selecionar artistas por países. A seleção foi feita priorizando a qualidade das HQs. Em decorrência do espaço físico, muita coisa ficou de fora. A "Monstra" é uma pequena mostra do que, na nossa opinião, existe de mais interessante no atual cenário atual da HQs.
EZ - No momento. (risos)

S - O que os visitantes da exposição vão encontrar sobre quadrinhos produzidos no Ceará?
FO - Separamos uma das salas para expor trabalhos realizados pelo Núcleo ArtZ, nem todos os trabalhos são histórias em quadrinhos, mas todos se utilizam da linguagem e da influência das HQs como suporte conceitual nas imagens expostas.
EZ - A exposição exibe trabalhos do Marcus Francisco, já falecido. Vamos tentar relançar em janeiro de 2009 a sua publicação Tipo blocomagazine que é uma raridade da história do quadrinho cearense...
WL - Tem também o Saulo Tiago, que é da nova geração de desenhistas de Fortaleza. É um cara que só lançou um zine, até o momento, mas seu trabalho possui uma forte carga pessoal que o destaca como uma das grandes promessas das HQs no nosso Estado.

S - A "Monstra Comix" é a maior exposição sobre quadrinhos já realizada em Fortaleza. Qual é o alcance que uma exposição como esta pode ter? Apenas quem curte quadrinhos ou um público mais amplo, ainda não iniciado na nona arte?
WL - A "Monstra Comix" exibe obras de artistas que utilizam o meio das histórias em quadrinhos para se expressar. é uma mostra de arte que discute muitas questões: ganância, fome, religião, filosofia, amor, costumes... São temas universais que interessam a todos.
FO - Nosso objetivo sempre foi esse, não delimitar para apenas um grupo específico. O que esta sendo exposto em primeiro lugar são idéias, observações sobre o mundo, há quem goste, há quem não goste. Há também aqueles não conhecem, que não sabiam que idéias como aquelas poderiam ser contadas através de quadrinhos.
EZ - São HQs pra quem tem estômago. Não são HQs pra menininhas mimadas... (riso geral)

S - De que forma a "Monstra Comix" pode contribuir para o público ver os quadrinhos de uma forma diferente, desprendendo-se do quadrinho comercial?
FO - Esperamos que o contato com tantas formas variadas de se usar a linguagem das HQs já sirva pra quebrar a regra de que quadrinho só pode ser feito de uma forma ou de outra, que só se pode abordar tal tema etc.

S - Acredita que a exposição pode evoluir para uma Bienal Internacional de Quadrinhos, como a que foi realizada no Rio de Janeiro em novembro de 1991? Por quê?
WL - Aí no caso seria regredir... (risos)
FO - Não é nosso objetivo ter uma Bienal Internacional de Quadrinhos e sim ter um evento de cultura pop, que abrange sim as histórias em quadrinhos, mas não se restringe a elas.
EZ - As HQs precisam dialogar com o mundo, não é? As HQs que estão na "Monstra Comix" fazem isso.
WL - Já acontecem vários eventos de quadrinhos no Brasil seguindo o formato dos eventos de quadrinhos que acontecem no mundo (convenções). Com a "Monstra Comix" queremos ser uma alternativa a mais. A proposta da Monstra é ser a Monstra mesmo...

S - Qual é a diferença entre quadrinho independente e quadrinho comercial (os Marvels e DCs)?
WL - Nos quadrinhos comerciais, escritores e desenhistas produzem produtos que têm que se adequar a regras e modismos para continuar a vender. Tudo é pensado em função do lucro financeiro. É impossível um artista trabalhar dentro da indústria comercial de quadrinhos. Quando eu cito artista, estou referindo-me a alguém que tem embasamento cultural e sabe o que é ser um artista na atualidade. A produção independente parte (em sua maioria) do desejo de se expressar artisticamente. Os artistas que trafegam nesse segmento nem sempre conseguem lucro financeiro com o seu trabalho, mas são responsáveis por mudanças significativas para o desenvolvimento e o reconhecimento das HQs enquanto arte.
FO - O termo independente não inclui o zineiro que escreve e desenha suas próprias histórias do Superman para tentar entrar na DC Comics.
EZ - Tem muita gente que edita suas próprias revistas, mas segue fórmulas das HQs comerciais. É um tipo de gente que se vende como independente, mas o que estão a produzir não representa o espírito da cultura independente.

S - Como você define o quadrinho independe no Ceará? De que forma ele se insere como manifestação cultural da rica cultura do Estado?
WL - No Ceará não existe uma tradição de quadrinho independente que possa definir algo. Mesmo se existisse uma tradição, tendo como base a nossa produção em outras áreas artísticas (musica, teatro, audiovisual etc) não seria tão fácil ser definida. A produção artística cearense tem como sua principal característica: "cada um, cada um". O formato "história em quadrinhos" é uma categoria artística como outra qualquer (literatura, audiovisual, musica, teatro, dança, artes visuais) que artistas utilizam para se expressar. Infelizmente, apesar de existir bastante gente produzindo quadrinhos no Ceará ainda não há incentivo específico para a área de quadrinhos em nosso estado. O motivo disso é a falta de conhecimento sobre essa área por parte dos responsáveis pelo incentivo as artes no nosso Estado.
EZ - Com falta de perspectivas, poucas pessoas dão continuidade à produção de HQ... No Ceará existe uma produção invisível que fica restrita a um publico segmentado, que vai se renovando através de desenhistas que surgem e somem rapidamente...
WL - A idéia do quadrinho independente tem se espalhado pelo mundo e isso vêm gerando uma série de HQs que apresentam outras propostas, criando um campo de discussão mais rico dentro das HQs. É claro que sempre vai existir quem prefira os enlatados. Mas, felizmente, agora podemos dizer que já existe um público que não quer mais os enlatados. É um processo lento, mas as coisas estão mudando.
FO - A "Monstra Comix" serve pra mostrar que um quadrinho de qualidade independe do local onde é feito.

*Autores que integram a "Monstra Comix": Everton (SP/CE), Érica Zoe (CE), Franklin de Oliveira (CE), Marcílio S. (CE), Marcus Francisco (CE), Saulo Tiago (CE), Weaver Lima (CE). Alberto Monteiro (RJ), Allan Sieber (RS/RJ), André Kitagawa (SP), Caco Galhardo (SP), Cavalcante (RJ), Clayton (PR), Fabio Zimbres (SP/RS), Guazelli (RS), Jaca (RS/SP), LAW (RS), Lourenço Mutarelli (SP), Melius (DF), MZK (SP), Odyr (RS/RJ), Paulo Batista (SP), Rafael Sica (RS), RHS (PR). Aurelie Guillerey (França), Cizo & Winshluss (França), Conrad Botes (África do Sul), Daniel Clowes (EUA), Gully (México), Hans Nissen (Finlandia), Jorge Alderete (México), José Carlos Fernandes (Portugal), Liniers (Argentina), Luís Lázaro (Portugal), Maria Colino (Espanha), Martinez (Espanha), Matt Groening (EUA), Paco Alcázar (Espanha), Phillipe Vuillemin (França), Remi (Bélgica), Stephane Blanquet (França), Thomas Ott (Suiça).


SAIBA MAIS
Monstra Comix, exposição organizada pelo Núcleo ArtZ Produção Cultural www.orkut.com/Main#Profile.aspx?uid=14258415608625743465
a Monstra ocupa quatro andares no Sobrado Dr. José Lourenço,
à rua Major Facundo, 154 - Centro - Fortaleza/CE

Entrada: Grátis
Funcionamento: De terça a sexta, das 9h às 19h; aos sábados, das 10h às 19h; e aos domingos, das 10h às 14h
Aberta ao público até fevereiro de 2009

QUE MUNDO QUEREMOS?

É hora de ativar o "sitocômetro"


Encaremos a seguir algumas impressões abalizadas sobre as contradições dos líderes europeus de direita que falam em um "novo acordo de Bretton Woods" e — antes que estivessem definidos os resultados das eleições por lá — a afirmação de que a liderança dos EUA sofre um declínio irreversível e que a hegemonia norte-americana só se sustenta atualmente graças ao poderio militar e político do país.

Nesta entrevista, o renomado teórico trotskista francês Daniel Bensaïd fez também duras críticas à social-democracia européia e aponta a falta de um projeto de esquerda na Europa. E, a despeito de afirmar não conhecer muito bem a situação da América Latina, Bensaïd acredita que os governos de esquerda da região podem, sim, constituir uma alternativa local à crise. Para ele, chegou a hora de dizer qual "outro mundo possível" realmente queremos.

Carta Maior – Quais são suas impressões, em linhas gerais, sobre a atual crise financeira mundial? Estamos diante de uma crise terminal do sistema capitalista?
Daniel Bensaïd – O capitalismo não vai acabar sozinho. Esta é uma crise histórica, e não somente uma crise ordinária, como o capitalismo conheceu a cada 10 ou 15 anos. Essa crise era também previsível, porque é impossível exigir — como fazem os acionistas — um retorno sobre seus investimentos da ordem de 15% ao ano frente a um crescimento que em média, no caso dos países desenvolvidos, é de 2% ou 3% ao ano. Alguns dizem que a crise financeira pode chegar à economia real, o que é uma fórmula um pouco absurda porque as finanças fazem parte da economia, elas não são irreais, efetivamente. Por trás dessa crise financeira já havia uma crise de produção. Ao menos para os países europeus — não conheço as estatísticas sobre o Brasil — a divisão do valor agregado entre salário e trabalho se deslocou 10% em favor do capital, ou seja, do ganho do capital em detrimento do trabalho, o que provoca uma crise incontrolável. Para continuar a vender — porque se existe o produto é preciso vendê-lo — houve um aumento totalmente louco do crédito, e não somente do crédito hipotecário imobiliário nos EUA. Também aumentou o crédito ao consumo, o crédito às empresas etc. A crise, desse ponto de vista, era previsível.
Por outro lado, ela não é simplesmente uma fatalidade, é o resultado de decisões políticas que se acumularam por 20 anos, porque a desregulamentação das bolsas, a livre circulação de capitais, o desenvolvimento dos ganhos do capital não fiscalizados, tudo isso foi precedido por uma série de medidas legislativas tomadas pelos diferentes parlamentos na Inglaterra, na França, na Alemanha etc. No que concerne à Europa, isso foi sistematizado pelos diferentes tratados da União Européia, de Maastrich em 1992 até o Tratado de Lisboa no ano passado, que codificaram o livre mercado europeu. Portanto, essa era uma crise previsível e ela é muito grave porque é globalizada, esse é seu caráter inédito. Mas, por trás de tudo isso, eu creio que o capitalismo poderá se restabelecer, ele já resistiu a outras crises. O problema é saber a qual preço e quem vai pagar o preço, pois essa é, afinal de contas, uma crise mais profunda. No jargão marxista, podemos dizer que a lei do valor atualmente funciona muito mal. Hoje, não podemos medir pelo tempo do relógio um trabalho social muito complexo, que cada vez mais mobiliza conhecimento acumulado, como não podemos tampouco medir a crise ecológica pela flutuação das bolsas de valores.

CM – A crise ambiental, com o problema do aquecimento global, torna a crise financeira ainda mais grave. Estamos vivendo uma crise da humanidade?
DB – Sim, e a crise ambiental não é um problema qualquer. Quando pensamos nas conseqüências, que virão durante séculos ou talvez milhares de anos, da estocagem de lixo nuclear, da destruição das florestas, da poluição dos oceanos e, agora, das mudanças climáticas, vemos que todos esses problemas não poderão ser controlados simplesmente pelos mecanismos do mercado que, por definição, são mecanismos que arbitram no curto prazo ou de maneira instantânea. Está no centro do que chamamos de organização social a prática de medir toda riqueza, toda relação social, e mesmo a relação da sociedade humana com a natureza, pelo único critério do tempo de trabalho abstrato.

CM – Os países da Europa tomaram a dianteira contra a crise com medidas protecionistas e forte presença do Estado. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, afirmou que os países devem caminhar para um novo Bretton Woods. Como o senhor analisa a posição européia?
DB – Existe uma contradição em uma crise como esta. Como a globalização esta aí e é, em parte, irreversível, todo mundo hoje, e mesmo os antigos liberais fanáticos de outrora, pensa que é preciso estabelecer uma regulação e novas regras do jogo. Todo mundo fala de uma regulação em escala mundial, um novo Bretton Woods, ou ao menos em escala continental como, se pegarmos o exemplo da Europa, a criação do Fundo Soberano Europeu. Estas são as intenções. Ao mesmo tempo, dentro de uma crise grave como esta, cada um tenta jogar de forma solitária, e nós observamos desde o início da crise interesses diferentes como, por exemplo, na Alemanha e na Irlanda, que quiseram proteger seus próprios capitais e seus próprios bancos.
É cedo demais para dizer quem vai levar a melhor ou se haverá uma espécie de solidariedade entre capitalistas suficientemente forte para criar mecanismos de controle da crise e de solução para os nossos problemas. Ou ainda, ao contrário, se vamos assistir a um agravamento muito forte da concorrência intercapitalista, interimperialista ou entre os grandes blocos. Uma crise como a atual cria também tendências centrífugas muito fortes.

CM – O senhor acredita que esta crise consolida o declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial?
DB – Do ponto de vista econômico, o declínio do império americano começou há muito tempo. Os EUA são o país mais endividado do mundo, que continua a desempenhar um papel hegemônico, em grande parte, por causa do seu poderio militar, que representa 60% dos armamentos e das despesas com armamentos em todo o mundo. E, atualmente, existe um efeito perverso, pois a dívida americana havia sido neutralizada pelo deslocamento de capitais dos países produtores de petróleo e da China aos EUA sob forma de Obrigações do Tesouro, ou seja, em dólares. Se esse capitais se retiram, eles fazem o dólar cair e os EUA perdem de todo jeito. Portanto, do ponto de vista econômico, existe uma espécie de mecanismo que deixa os EUA na condição de refém. Enquanto os EUA mantiverem a hegemonia militar, o cenário atual poderá durar, mas a gente vê muito bem hoje, e via mesmo antes da crise, que o euro — ou mesmo o yen, mas, sobretudo o euro — pode se tornar a moeda de reserva no lugar do dólar, que ainda guarda seu papel de moeda de troca internacional muito mais por causa da potência política e militar estadunidense do que por causa da solidez da economia dos Estados Unidos. Por isso, eu creio que hoje o declínio dos EUA é irreversível.

CM – Qual sua avaliação sobre o posicionamento da esquerda frente à crise financeira? O senhor acredita que os governos de esquerda da América Latina podem ter papel importante na busca de soluções para a crise?
DB – Eu não conheço muito bem o contexto da América Latina. Eu não sei qual vai ser, por exemplo, a capacidade da Venezuela se o preço do petróleo continuar a cair, portanto é mesmo possível que os efeitos da crise sejam mais duros para paises como a Bolívia ou a Venezuela do que para o Brasil, que tem uma exportação mais diversificada. Eu penso que a crise se fará sentir também no Brasil, mas talvez menos forte. Agora, se a reação à crise vai começar a partir de um pólo bolivariano ou a partir da tentativa do Banco do Sul para se tornar autônomo em relação ao dólar, se vai ser criada uma solidariedade energética e alimentar entre os países da América Latina, se isso tudo vai avançar ou não, a questão está aqui e a resposta está aqui. Eu não tenho resposta.

CM – E na Europa, existe um projeto da esquerda?
DB – A social-democracia, que é a maior força de esquerda na Europa, vem destruindo metodicamente nos últimos 20 anos os mecanismos do Estado-providência e do Estado de Bem-Estar Social. Atualmente, diante da brutalidade da crise, vemos dirigentes do Partido Socialista na França falarem novamente de nacionalização. O que fez Sarkozy não foi em hipótese alguma a nacionalização dos bancos. O que ele fez foi dar aos bancos a segurança do Estado sem nem mesmo solicitar o direito a voto nos conselhos de administração, foi meramente um socorro aos bancos.
Certas vozes de esquerda pedem o relançamento de uma política de aumento dos salários, mas isso exigiria uma política séria em escala européia, porque existe o desafio de fazer em nível europeu o contrário do que fizeram os partidos socialistas nos governos nacionais nos últimos vinte anos, ou seja, reconstruir os serviços públicos europeus, harmonizar a fiscalização européia, desenvolver uma fiscalização fortemente progressiva e retomar o poder de compra. Isso significa destruir todos os tratados sobre os quais foi construída a União Européia desde 1992. Eu não acredito que exista nem a vontade política de fazer isso nem a força social para fazer. Por uma razão, pois, através do processo que atravessou, a social-democracia européia perdeu muito do seu apoio popular. Por outro lado, ela se integrou muito fortemente ao topo, às empresas privadas e às finanças globalizadas. O símbolo disso é a presença de dois social-democratas franceses como homens de confiança do capital à frente da OMC (Dominique Strauss-Khan) e do FMI (Pascal Lamy). Isso resume um pouco a situação.

CM – O economista François Chesnais afirma que esta crise é a primeira etapa de um processo muito longo e que não sabemos como ele vai acabar. O senhor sempre foi um crítico contumaz tanto do capitalismo e da globalização financeira quanto dos regimes socialistas constituídos sob a ótica stalinista. O senhor acredita que a humanidade está preparada para construir uma terceira via?
DB – A terceira via não passa nem pela gestão estatal e burocrática que faliu nos países do Leste da Europa, notadamente na União Soviética, nem pelo liberalismo. Muita gente diz hoje em dia que a crise não foi causada pelo capitalismo em si, mas pelos excessos e abusos cometidos. Não, a crise foi causada fundamentalmente pela própria lógica do capitalismo. Eu acredito que passamos da fase dos slogans simpáticos dos fóruns sociais. Se um outro mundo é possível, chegou a hora de dizer qual. Nós saímos de um século que terminou, sob o meu ponto de vista, com uma derrota histórica das esperanças de emancipação. Nós entramos no século XXI com muito menos ilusão do que nossos ancestrais entraram no século XX, sobretudo os socialistas, que acreditavam no fim das guerras e da exploração.
O problema atual é que estamos no início de uma longa reconstrução, mas, ao mesmo tempo, numa corrida contra o relógio, mais do que nunca, pois vivemos uma crise de destruição não somente social, mas também ecológica. Para mim, há somente uma alternativa: opor à concorrência e à lógica do todos contra todos uma lógica do bem comum, dos serviços públicos e da solidariedade. Podemos chamar isso de socialismo, comunismo ou democracia autogestionária. É preciso tentar. Se nós não tentarmos mudar o mundo, ele vai nos esmagar.

* entrevista com o cientista político e filósofo francês Daniel Bensaïd concedida no Rio de Janeiro a Maurício Thuswohlo (da agência Carta Maior), por ocasião de sua recente vinda ao Brasil para uma série de palestras que acompanham o lançamento do livro Os irredutíveis, teoremas de resistência para o tempo presente (Ed. Boitempo)