18 fevereiro 2011

MILLÔR, ÚLTIMA INTELIGÊNCIA



Brasil de ágrafos

O jornalista Luciano Pires já afirmava que "qualquer coisa que Millôr se propõe a fazer, faz melhor que qualquer outro". E se declarava "fã de carteirinha dessa figura maravilhosa de ser humano pensante, homem, escritor, teatrólogo etc. etc. etc.!"

Feito o elogio, convidava-nos, ainda em 2005, a ler o que "esse deus das letras" escrevera, segundo ele, publicado pelo jornal La Insígnia, em 2 de setembro de 2005.



Foi uma visão porreta Sobre os livros — e aí nos lembramos da frase atribuída a Monteiro Lobato, de que um país se faz com homens e com livros. Faz-se ou não?




 Fato é que, como em tudo que fazia, Millôr sempre abusava da ironia, expunha feridas e tirava um grande sarro. Senão, leiamos:

SOBRE OS LIVROS

"Na deixa da virada do Milênio, anuncia-se um revolucionário conceito de tecnologia de informação, tecnologicamente chamado de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas -- ou, resumidamente, L.I.V.R.O. 

"O L.I.V.R.O. representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada e nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo! 

"Cada L.I.V.R.O. é formado por uma sequência de páginas numeradas, feitas de papel reciclável e capazes de conter milhares de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantém automaticamente em sua ordem correta.

"O uso intensivo do recurso TPA -- Tecnologia do Papel Opaco -- permite que os fabricantes usem as duas faces da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os seus custos pela metade! 

"Especialistas dividem-se quanto aos projetos de expansão da inserção de dados em cada unidade. E sabem que, para se fazer L.I.V.R.O.s com mais informações, basta se usar mais páginas.

"Isso, porém, os torna mais grossos e mais difíceis de serem transportados, fato que atrai críticas dos adeptos da portabilidade do sistema. 

"Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escameada opticamente, e as informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, em seu cérebro.

"Lembramos que, quanto maior e mais complexa a informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário.


"Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite o acesso instantâneo à próxima pagina. 

"Assim, o L.I.V.R.O. pode ser rapidamente retomado a qualquer momento, basta abri-lo. Ele nunca apresenta 'ERRO GERAL DE PROTEÇÃO', nem precisa ser reinicializado, embora se torne inutilizável caso caia no mar, por exemplo. 

"O comando 'broxe'* permite acessar qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. 

"E mais: a maioria dos modelos de 
L.I.V.R.O. à venda vem com o equipamento 'índice' instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados selecionados.


"Um acessório opcional, o marca-páginas, permite que você acesse o L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na ultima utilização, mesmo que ele esteja fechado.

"A compatibilidade dos marcadores de página é total, e permite que funcionem em qualquer modelo ou marca de L.I.V.R.O. sem necessidade de configuração. 


"Além disso, qualquer L.I.V.R.O. suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter selecionados vários trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima para o uso de marcadores coincide com o número de páginas.


"Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O., através de anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada — o L.A.P.I.S.. 


"Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. é apontado como o mais popular instrumento de entretenimento e cultura do futuro. 


"Por isso, milhares de programadores desse sistema continuam disponibilizando vários títulos e upgrades para utilização na plataforma L.I.V.R.O."

Pois é, Luciano Pires tem razão: Millôr é genial — e todo mundo sabe. Mas hoje, preocupa-nos.

Tudo porque, via twitter, a equipe do venerado desenhista, jornalista, dramaturgo e escritor, que já conta 86 anos, divulgou no dia 16/02 que Millôr, internado na clínica São Vicente, na Gávea, zona sul do Rio, estaria "melhorando lentamente".

Oras, nada foi dito sobre o seu estado de saúde. A pedido da família, não foi divulgada nem a data nem a razão da internação. Enquanto isso, diz-se que, em seu site no UOL, Millôr postou o seguinte texto:


"Há mais de cinco décadas escrevendo na imprensa, sempre me disseram, os que me disseram, que me admiravam, os que me admiravam, mas não me entendiam (quase todos). Admirado, no sentido de perplexo, procurei, centenas de vezes, descobrir quem eu era e o que fazia neste perfeito mundo profissional de vocês todos". 


A seguir, teria elencado frases intituladas como "(eis) algumas dessas tentativas de auto-entendimento — ou autotapeação." Bem, divirtamo-nos com sua verve e esperemos por sua saúde.



No blog da jornalista Lu Lacerda lê-se que o escritor, desenhista, dramaturgo e humorista Millôr Fernandes, "como sabido", está internado na Clínica São Vicente, na Gávea, Zona Sul do Rio, depois de um acidente vascular cerebral (AVC). "Millôr, inconsciente desde o começo de fevereiro, deixou a unidade intensiva nesta quinta-feira (17/02). Os três médicos que estão cuidando dele dizem que ele responde bem aos estímulos e supõem que seu estado neurológico seja bom. Quanto às eventuais postagens no Twitter, são de assistentes de Millôr."

Millôr, que participou da criação do combativo e brasileiríssimo Pasquim, é um dos principais tradutores de Shakespeare no País, além de cartunista, poeta, escritor, dramaturgo, jornalista  e uma das mais completas inteligências nacionais, também como pesquisador da semântica e das artes em diversos idiomas e suportes. 

Prova disso é que ele — sempre — recusou-se peremptoriamente a deixar-se dispor da intenção de que o fizessem participar da Academia Brasileira de Letras.

Porque seria? 


Pra saber, só mesmo perguntando ao Mestre!



*provável trocadilho com "browse", ação decorrente do
termo "browser" — "navegador", em Português do Brasil

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