02 outubro 2014

MPB POR EXCELÊNCIA


O inventor da
música brasileira*



Quando se fala que alguém inventou alguma coisa, não se está dizendo que foi sozinho. O pai de uma grande invenção é, portanto, aquela pessoa cuja inquietação, atitude e feito passou a contribuir destacada e significativamente para influir na vida das pessoas.

Foi assim com o alemão Gutemberg, inventor da imprensa; com os irmãos Lumière, franceses inventores do cinema; e com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864–1920), o inventor da música brasileira.

Embora maltratada pelo truste de mercado, que, na ausência de políticas públicas decentes para a cultura, deita e rola no País, a música brasileira é potencialmente um dos mais importantes recursos renováveis do Brasil.

E para chegar a ser reconhecida assim, um dos seus mais relevantes pontos de inflexão ocorreu na passagem do século XIX para o XX, momento em que mudávamos da monarquia para a república. Nesse cenário, a catálise se deu com base na figura irrequieta de Nepomuceno, que nasceu em Fortaleza no dia seis de julho há 150 anos.

Alberto Nepomuceno queria viver em um lugar que tivesse o seu jeito próprio de compor, tocar e cantar, mas que, simultaneamente, pudesse estar em linha com as tendências estéticas do mundo em seu tempo.

Os estilos valorizados pela Corte Imperial, a exemplo da ópera italiana e da música sacra, não abriam espaço de diálogo com a miscigenação étnico-cultural pulsante nos meios urbanos e rurais da então incipiente vida republicana.

Em sua tese de doutorado Canto da Língua: Alberto Nepomuceno e a Invenção da Canção Brasileira (USP, 2009), o músico e pesquisador paulista Dante Pignatari afirma que “para que o Brasil pudesse se tornar uma fonte geradora de música de valor internacional, era preciso inseri-lo na vanguarda da música europeia. Nepomuceno é o grande responsável por trazer a modernidade à música brasileira, modernidade esta representada especialmente por Wagner, do lado germânico, e Debussy, do francês” (p. 63).

Em um meio intelectual seduzido pela espetacular força referencial da Belle Époque e descolado das fontes culturais emanadas das manifestações populares, era comum, inclusive, o preconceito de que a língua portuguesa não era adequada para o canto.

E Nepomuceno conseguiu romper com isso, compondo e estimulando a criação musical em português e com temas brasileiros. No seu esforço para influir nesse ambiente musical restrito ele passou a valorizar a música camerística e concertos sinfônicos voltados à diversificação de repertório.

Defensor das causas abolicionistas e natural do Ceará – onde a abolição se deu quatro anos antes de 1888, data oficial de libertação dos escravos no Brasil –, Alberto Nepomuceno compôs em 1887 a música Dança de Negros, obra sinfônica de inspiração afro, posteriormente inserida em sua "Série Brasileira" com o título Batuque.

Em 1887, quando Nepomuceno já combinava a musicalidade negra com técnicas progressistas da linguagem musical, nasceu o compositor Villa-Lobos (1887-1959), a quem o maestro cearense incentivou na busca do desenvolvimento de uma linguagem musical notadamente brasileira.

Na condição de diretor do Instituto Nacional de Música (INM), Alberto Nepomuceno foi muitas vezes ironizado por apoiar artistas e pesquisadores como Villa-Lobos. Foi criticado também por convidar músicos populares a se apresentarem em salas de concerto.

No Rio de Janeiro de 1908, quando promoveu recitais com o violonista maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863–1946) e com o pianista carioca Ernesto Nazareth (1863-1934), foi vaiado por sua ousadia. A resistência à aproximação da música espontânea com a música formal era grande, mas, mesmo assim, ele trabalhou o quanto pôde na formação de músicos e de plateias.

A luta de Alberto Nepomuceno para a criação das bases que levaram ao desenvolvimento da diversidade inventiva da Música Plural Brasileira tinha, entre seus atributos, a grandeza da não xenofobia. Os anos de estudos de música na Itália, na Alemanha e na França serviram para reforçar seu desejo por uma música com a cara do Brasil.

Essa música seria construída com o aproveitamento dos elementos sortidos da brasilidade e com o abrasileiramento do que fosse apropriado de outros lugares. Foi defensor da educação musical, compôs modinhas – essa fecundação de elementos ibéricos com italianos que gerou a canção brasileira –, fez a melodia do “Hymno do Ceará” e colocou reco-reco em orquestra sinfônica.

Entrevistado pela revista A Época Theatral (RJ, 27/12/1917), revelou seu sonho com o surgimento de “um gênio musical sertanejo, imbuído de sentimentos regionalistas, que, segregando-se de toda influência estrangeira, consiga criar a música brasileira por excelência, sincera, simples, mística, violenta, tenaz e humanamente sofredora, como são a alma e o povo do sertão”.

Duas décadas depois de sua morte, como uma espécie de materialização desse desejo, surgia o genial Luiz Gonzaga (1912–1989). E, como o compositor e cantor pernambucano, outros grandes artistas não pararam de surgir e de engrandecer a nossa música.

*O jornalista Flávio Paiva é  também escritor e autor de livros nas áreas de cultura,
cidadania, gestão compartilhada, mobilização social, memória e infância.
Imagem: Retrato do Maestro Alberto Nepomuceno por Eliseu
d’Angelo Visconti (1866-1944), em www.eliseuvisconti.com.br

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www.flaviopaiva.com.br