24 maio 2010

TIPOS DE TEMPO

O intruso da casa*



Um tortuoso hábito de reflexões me pôs a pensar nos objetos que detestamos, mas que por alguma razão somos obrigados a possuir. Pois, de todos os pertences impostos, o mais antipático talvez seja o relógio.

Provavelmente a infância acaba no momento em que se aprende as horas. Na mais tenra idade, uma criança tem a liberdade de acordar pela manhã sabendo apenas isso: que é manhã.

Não precisa, como os adultos, saber que são 6h15min, que é preciso tomar o café durante três minutos, depois um banho de, no máximo, 10 minutos, para perder sabe-se lá quanto tempo rumo a um destino previamente agendado.

Argumentem que a culpa não é dos relógios, mas do sistema de obrigações que nos força a atividades cronometradas. Esse raciocínio com certeza é lógico, mas não me convence.

Para mim, o instante em que se posta um filho diante do grande relógio da sala, a lhe ensinar os mistérios do tempo, é decisivo. Instalar a noção abstrata (e absurda) de que cada espaço entre um risco e outro representa cinco minutos, força um amadurecimento repentino.

Algo interrompe todo o fluxo imaginário que permitia à criança associar aquele instrumento com um círculo contendo dois bracinhos, rascunho de boneco ou brinquedo secreto. A perda desse potencial imaginativo ocorre em paralelo com uma redução do próprio conceito de "dia".

Se antes esse período significava uma passagem suave entre as palavras "manhã", "tarde" e "noite", depois do aprendizado a criança resume o dia em números, de acordo com as horas. Viver regulado(a) por algarismos, e não mais por imagens, é a grande perda nesse processo.

O abandono da infância acontece com essa aceitação do tempo como algo calculável. No instante em que negamos as outras possibilidades -- tão mais belas e criativas -- para sentir a passagem de uma existência, viramos coisas previsíveis e funcionais, tão monótonas quanto um tic-tac.

Tive dificuldade em aprender as horas. Talvez já adivinhasse que esse tipo de iniciação me roubaria a inocência. Até os 11, 12 anos, tinha de usar relógio digital para evitar o vexame, se alguém me perguntasse o horário.

E mesmo assim, usava com má-vontade aquela pulseira -- sentia o seu caráter de algema: o tempo me carregava pela mão, me obrigava a seguir a trilha dele. Por isso é que, ainda hoje, a primeira providência que tomo quando chego em casa é me soltar do relógio de pulso, para sentir as batidas cardíacas liberadas.

Sim, admito que sou um pouco dramática. Reconhecer essa característica me faz flexível, e acabo seguindo as velhas convenções. Embora não concorde com a escravização que o tempo -- assim representado por um mero objeto -- ordena, obedeço a ela, chegando pontualmente a meus compromissos.

Já em casa, território que considero único, tenho três relógios, e cada qual indica um horário um pouco diferente do outro. Para confundi-los, gosto de atrasar a hora de um, adiantar a do outro... É o meu modo de mostrar (para eles e para mim mesma) que não sou totalmente submissa e que conheço também outros tipos de tempo.


* Tércia Montenegro é escritora, fotógrafa e professora da UFC-Universidade Federal do Ceará (image by Ossi -- "Generations in the course of time")

LEIA MAIS
http://literatercia.blogspot.com

03 maio 2010

SUPERIORIDADE FEMININA

Intimidade íntima*



Nos últimos meses, tenho debatido com meus alunos e amigos uma ideia que tem me chamado a atenção: o fato de as mulheres reclamarem de que não conseguem ter intimidade com os respectivos maridos ou namorados.

No entanto, quando pergunto o mesmo para os homens, eles acham que têm, sim, intimidade com suas parceiras — com quem compartilham momentos que consideram muito íntimos, como fazer sexo, beijar, carinhos, ficar nu.

Para eles, a intimidade é da ordem do corporal, do toque, da visão. É uma intimidade sexual. É uma intimidade física.

Elas reagem: esta não é a verdadeira intimidade, não é uma intimidade íntima. Intimidade, para elas, é um tipo muito particular de estar juntos, de conversar, de escutar, de compartilhar o silêncio, um nível mais profundo de comunicação psicológica. É uma intimidade emocional.

Para eles, a intimidade tem gradações, níveis, escalas. Eles podem ter mais ou menos intimidade, pouca ou muita intimidade, falar de um problema com alguns familiares e de outro com amigos.

Eles hierarquizam e medem a intimidade que têm com as pessoas, e classificam com quem podem (ou não) falar sobre mulheres, trabalho, futebol, política etc. É uma intimidade repartida, partida.

Para alguns homens, a intimidade é da ordem do segredo, do que pode ser dito apenas para aqueles em quem confiam (pais, irmãos, esposa, namorada, amigos) ou do que não pode ser dito para ninguém: "É algo só meu, do meu interesse".

Muitos disseram que só têm intimidade total consigo mesmos: que existem coisas que só podem e devem ser ditas para si próprios. Coisas que não interessam a mais ninguém, que devem ser guardadas, reservadas, protegidas.

Alguns homens me disseram que, quando estão com problemas no trabalho ou com a mulher, desabafam com o amigo, que diz: "Vamos beber". Consideram que, assim, conseguem esquecer o problema — o qual, efetiva e eventualmente, passa.

Já as mulheres, ruminam, por muito tempo, os seus problemas. Repetem exaustivamente a arquitetura dos mesmos conflitos, sem buscarem uma solução. Nenhuma me disse que adota a tática do "Vai passar! Vamos beber e esquecer!"...

Pois é, os homens querem esquecer, e as mulheres relembram incessantemente. Eles querem resolver o problema, de preferência muito rapidamente. Elas querem refletir sobre o problema, sem necessariamente resolvê-lo.

Os familiares e amigos íntimos são fundamentais para reforçar tanto a postura de resolver como a de refletir sobre os problemas. Os homens têm uma visão prática da intimidade. É uma intimidade objetiva. Já as mulheres têm uma percepção reflexiva da intimidade. É uma intimidade subjetiva.

Para as mulheres, a intimidade parece estar relacionada a uma forma específica de conversar, não ao seu conteúdo. É uma intimidade sem gradação, nível, escala. Ou se tem, ou não se tem intimidade. É uma intimidade única.

É um jeito de falar sobre si, e de ser escutada pelo Outro. Sem interferências, sem medo de ser julgada, de ser rejeitada, criticada, ironizada. É um tipo de conversa especial, de entrega singular, de quem fala e de quem escuta.

É uma conversa em que existe aceitação, respeito, troca, apoio. Em que os dois podem ser vulneráveis e revelar suas fragilidades e medos. Pode ser uma intimidade silenciosa.

O importante é que não exista ruptura, ruído, atrito, neste tipo de encontro. Uma intimidade singular, especial, a dois. Que não necessita de um tópico especial ou de um segredo.

É um jeito muito particular e valorizado de falar e, principalmente, de ser escutado(a). O Outro deve ser maleável, flexível, adaptável, para saber como ser passivo, e simplesmente escutar sem interferir, ou, quando necessário, ser ativo e dar algum tipo de resposta.

Um nível profundo e psicológico de comunicação e de reciprocidade. É a intimidade íntima. Coisa que — elas dizem —, os homens são incapazes de compreender.

É possível perceber que as mulheres falam de si mesmas como se fossem superiores aos homens, neste domínio tão valorizado por elas e tão pouco elaborado na vida deles. Elas se consideram mais sensíveis, maduras e profundas do que eles, que são vistos como mais carnais, físicos, sexuais.

A intimidade íntima parece ser um privilégio e, também, um poder feminino. O que mostra que as mulheres podem exercer dominação exatamente nos domínios em que constroem e hierarquizam diferenças de gênero. Domínio em que os homens são esmagados pela superioridade feminina.

É interessante pensar que esta onipresença da ideia de intimidade nas minhas pesquisas pode ser parte de um discurso de dominação, que legitima o poder feminino em tudo o que se relaciona ao mundo privado, ao mundo das emoções, dos sentimentos e das relações entre os gêneros.



*Mirian Goldenberg é antropóloga, professora da UFRJ e autora de "Infiel: notas de uma antropóloga" (Ed. Record)