05 junho 2009

HÁ CRESCIMENTO?

MITO ECONÔMICO


Com o costumeiro alarde, há algum tempo foi apresentado à sociedade brasileira o PAC–Programa de Aceleração do Crescimento. Se o retorno a algo de planejamento público é fato positivo, não devemos pôr todas as apostas no mero crescimento econômico. A finalidade da argumentação (quase uma nota técnica) que se segue, é apenas qualificar (ou desmitificar) a crença no crescimento, demasiadamente repetida com ares de verdade absoluta.

Por exemplo, na edição de O Povo de 31.10.2006, lia-se: “O que o País precisa é de crescimento econômico, um fator que não tem componente ideológico...” Sabiamente, o colunista acrescentou: “Unindo-se ao crescimento das políticas de combate às desigualdades...” Repensou melhor, ou seja, pensou em desenvolvimento.

Como todo discurso, o das Ciências Sociais pode ser traiçoeiro, tornando-as facilmente atacáveis por um vírus inarredável, muito bem disfarçado (até inconscientemente) e conhecido pelo nome de “ideologia”. Por exemplo, a taxa anual de crescimento do produto (renda) total parece ser um simples número estatístico-contábil. Uma percentagem, número puro sem dimensão, sobretudo ideológica. Mas... não é.

Num antigo e excelente livro-texto, introdutório à teoria do desenvolvimento, o professor Michael Todaro faz um esclarecedor exercício, ademais muito simples, por utilizar Matemática elementar. Examina a taxa anual de crescimento (aumento da renda dividido pela renda inicial) e revela três situações: regressiva, em que o crescimento tende a aumentar a desigualdade; status quo, em que a desigualdade tende a permanecer a mesma; e progressiva, ou seja, desenvolvimento, em que há crescimento com tendência à diminuição das desigualdades sociais.

Assim, tudo depende das prioridades (pesos) que sejam dadas aos ricos e aos pobres. Isto é importante. Desta forma, numa abstração simples, divide-se a sociedade em duas classes: ricos e pobres. Todaro demonstra matematicamente que a taxa de crescimento da renda total é uma média aritmética ponderada da taxa de crescimento da renda dos ricos e da taxa de crescimento da renda dos pobres.

Aquela citada nas estatísticas oficiais e na imprensa é referente à situação regressiva: seus pesos são a percentagem da renda auferida pelos ricos (que tende a ser alta) e a percentagem da renda que cabe aos pobres (que tende a ser baixa). Então, os ricos valem mais do que os pobres — eis a ideologia sub-reptícia e os interesses absconsos dos que enfatizam apenas o crescimento econômico.

Situação regressiva: quando eu estudava em Berkeley, no início dos anos 1970, o professor e brasilianista Albert Fishlow comparou o período entre os dois Censos brasileiros de 1960 e 1970. Tornou-se aqui persona non grata, ao concluir que a renda dos ricos aumentara em 80% e a dos pobres em 8%.

Simplificando o presente exercício, consideremos (aritmeticamente) 8% e 0,8% ao ano; e tomemos as rendas do trabalho como renda dos “pobres” e as rendas do capital como renda dos “ricos”. Recentemente (2002), foram obtidas as seguintes estimativas: rendas do capital, 44%; do trabalho, 31%; do governo, 25%. Dividamos (conservadoramente) as rendas do Governo em 15% para os “ricos” e 10% para os “pobres”.

Obteremos a seguinte taxa de crescimento: 8% x 59% + 0,8% x 41% = 4,72% + 0,33% = 5,05%. Vemos que a taxa de crescimento da renda total (5,05%) é dominada pela importância da renda dos ricos (4,72%). O que indica, da parte dos mais aquinhoados, o interesse pelo crescimento e, de outro lado, o aumento da desigualdade relativa. Não há desenvolvimento.

Situação do status quo: utilizemos a tal média ponderada, adotando, porém, como pesos, as percentagens da população, distribuída entre ricos e pobres. Digamos que, no Brasil, há 20% de “ricos” e 80% de “pobres”. A nova taxa de crescimento apresentar-se-á como: 8% x 20% + 0,8% x 80% = 1,6% + 0,64 = 2,24%.

Com as mesmas taxas anteriores de crescimento das rendas dos “ricos” e dos “pobres”, a taxa de crescimento total é, agora, muito inferior (2,24% status quo ou a manutenção das desigualdades.

Situação progressiva: na Ciência Econômica convencional, não há uma teoria macroeconômica da distribuição da renda. A Teoria Econômica, ut sic, trata de alocação e eficiência econômicas e não de distribuição ou justiça. A distribuição é questão política, com pesos para cada classe social decididos politicamente.

Para diminuirmos as desigualdades na distribuição da renda (fluxos), os pesos para os pobres devem ser maiores do que sua proporção demográfica. E nem estamos falando de distribuição da riqueza (estoques)... Conservando as taxas de crescimento da renda das duas classes socioeconômicas, demos politicamente pesos de 10% para os “ricos” e de 90% para os “pobres”.

O resultado será: 8% x 10% + 0,8% x 90% = 0,8% + 0,72% = 1,52%. Pelo presente exercício, a importância das duas classes tornou-se praticamente igual (0,8% e 0,72%), no crescimento da renda total (1,52%). Somente com um peso, para os pobres, maior do que sua proporção na população (e uma maior taxa de crescimento de sua renda), serão diminuídas as desigualdades na distribuição da renda (não, ainda, da riqueza). Eis o significado de “políticas de combate às desigualdades”.

De qualquer modo, chama a atenção (em nosso exercício) o fato de que, à proporção em que fomos melhorando a distribuição, a taxa de crescimento da renda total apresentou-se como menor (5,05%, 2,24% e 1,52%). Enfatizemos, porém, que nos três exemplos não variaram as extremadas taxas de crescimento da renda de cada classe (8% e 0,8%).

Temos dois pontos: 1) a taxa de crescimento global diminuiu, mas as desigualdades também; 2) se conseguirmos aumentar significativamente a taxa de crescimento da renda dos pobres, reverteremos o decréscimo da taxa global e diminuiremos muito mais as desigualdades. É o que buscam os Programas Sociais.

Como o Presidente Lula argumentou, em um dos debates da campanha eleitoral, já tivemos períodos de elevadas taxas de crescimento da renda, concomitantemente com a das desigualdades (o “Milagre” brasileiro). Era a velha teoria ideológica do “crescimento do bolo”, a crença nos efeitos de gotejamento (trickle-down effects) ou transbordamento (spill-over effects).

A experiência nos mostra que nem o crescimento, nem o mercado sozinhos distribuem com justiça os fluxos econômicos. As iniqüidades sociais não podem então diminuir, sobretudo em um País que, em sua formação histórica, não repartiu entre todos os cidadãos os estoques da riqueza. Torna-se necessária a “opção preferencial pelos pobres”, enunciada pela Igreja católica na América Latina. A questão é política.

Temos que decidir que tipo de sociedade construiremos: será iníqua, desequilibrada, violenta, autoritária, “a Sociedade do Mal-estar”, ou será justa, decente, pacífica, democrática, “a Sociedade do Bem-estar”? (Ser ou não ser, eis a questão. Ou, o desenvolvimento é o novo nome da paz).

Por tudo isso, é preciso ter cuidado com a palavra “crescimento”, desbragadamente utilizada. Mas, além disso, nem introduzimos aqui as qualificações adicionais que levanta a nova ciência da Economia Ecológica. Por exemplo, estudos da Pegada Ecológica indicam que, se toda a população mundial buscasse atingir o padrão de vida do norte-americano médio, teríamos necessidade de 5,2 planetas Terra!.. Mais do que o crescimento, o que importa é a qualidade de vida. Há panos para muitos outros artigos...
(imagem: The Rich Jew and the Poor Jew: www.galerea.com)

*Osório Viana é Livre-docente em Desenvolvimento Sustentável, aposentado da UFC (PRODEMA) e do BNB (ETENE)